quinta-feira, 16 de julho de 2009

Cristianismo: uma visão pessoal [T.i.p. Text in progress]

Volto aqui a abordar um tema que me é cultu(r)al (e até existencialmente) caro: o da relevância referencial-cultu(r)al que para mim, como indivíduo conscientemente não-católico, assume o cristianismo, designadamente o de incidência ou de 'expressão' especificamente católica, ainda hoje genericamente predominante entre nós.

Pessoalmente, há muito que, como disse, não sou católico---o que não significa, porém, como também disse (ou sugeri) que, de uma forma indirecta ainda que muito marcante tenha, no limite, diminuído a importância de um certo pensar 'vulgarmente católico' (e, inclusive de um certo imaginário genérico e mais ou menos difuso de sinal idêntico) no contexto da construção contínua da minha própria visão pessoal do mundo e até, no limite, da minha própria identidade como tal.

A diferença é que, para mim, hoje, o catolicismo não representa já, como representou em tempos agora distantes, um «modelo» exclusivo e, sobretudo, um modelo impositivamente afirmativo de pensar (e até, reconheço, de algum modo, de sentir) senão que opera, hoje-por-hoje, de um modo muito mais amplo, muito mais dinâmico e, essencialmente muito mais fecundo porque incomensuravelmente mais descomprometido e aberto (porque aberto) no contexto da minha relação dialéctica pessoal estável com a "realidade", digamos assim.

É esse, suponho mesmo, o grande (possível) contributo cultu(r)al e até civilizacional do cristianismo nos nossos dias: a saber, não já o de impor um modo e um modelo únicos de ler e organizar específica e, também, por conseguinte, exclusivamente a realidade mas, de um modo muito mais lato, muito mais abarcante e também humildemente fecundo o de aceitar operar, para nós todos como «sociedade temporal» e sobretudo, como «sociedade mental e crítica», como «sociedade cognitiva e epistemológica» fornecer a todos, nessa condição genérica de 'cultura' (de 'cultura', portanto, "in the making" ou "in progress") um referencial duplo, inteleccionalmente aberto, de aferimento contínuo das nossas próprias formulações pessoais (chamemos-lhes: autónomas) sobre o real, em todas as áreas ou sectores que genericamente o (no-lo) compõem.

No fundo, aquilo que um Régio ou um Torga (poetas a que, pessoalmente, admito não conceder peso ou predominância particulares no conjunto das minhas preferências literárias mas cujo significado existencial---e, num dado passo da minha própria vida, existenciante---particular, ainda assim, não rejeito: alguma da minha formação como pessoa fez-se, repito, com (ou sob a influência dos) caracteristicamente soturnos monólogos existenciais de Régio envolvendo uma elusiva divindade cuja sombra obsessiva, de algum modo bem reconhecível e até frequentemente confesso, o atormentou apararentemente de forma existencialmente dilacerante tanto quanto, afinal, paradoxalmente protectora, tutelar, providencial e íntima, ao longo de toda a vida); no fundo, ia dizendo, o que Régio ou Torga fazem em muitas das suas obras quando especificamente com "Deus" estabelecem uma relação que é já, em muitos casos, abertamente dialéctica, extremamente viva, com frequência acalorada, de amor-ódio---relação essa que, no limite, os traz, a um e a outro, ulteriormente enriquecidos ou ulteriormente "espessados" (e também consideravel ainda que apenas temporariamente um pouco mais pacificados) como pessoas, como indivíduos, "de volta para si mesmos".

Não vejo, hoje, com efeito, retomando o raciocínio atrás iniciado, o cristianismo oficial---a instituição objectiva e sobretudo subjectiva e interior do papado---como algo mental e criticamente possível.

A mim, volto a dizer, afigura-se-me que para os não-católicos (que são cada vez mais, de resto e não por acaso...) o cristianismo deve operar, basicamente, como uma espécie de "limiar" ou "fronteira crítica" (ou mais genericamente criticional), isto é, como uma tese hegeliana ou mesmo marxista que se expressa de forma "instintiva" e "natural" numa língua cultu(r)al que nos é, no fundo, comum a todos enquanto comunidade histórica e mental (um «latim cosmovisional» onde todos nos encontramos linguística e também criticamente convergentes)---tese essa a cujo confronto directo podemos, assim, trazer---podemos, assim, oferecer!---naquela condição operativa de "fronteira epistemológica referencial", as nossas próprias (e tentativas---"tentative") antíteses, a fim de tornar possível a obtenção "final" de sínteses operativas que nos permitam, com segurança crítica e epistemológica razoável, "progredir" continuamente (mas, sobretudo, progredir com um mínimo de segurança "de episteme", de estabilidade crítica) na realidade.

A própria disponibilidade metodológica que este paradigma de relacionalidade epistemológica básica, não tanto com "Deus" (que é aqui, sobretudo, o "instrumento operativo" na construção de um paradigma crítico minimamente fiável de realicidade) mas com o próprio "real" que através Dele se visa alcançar, representa, admito, a negação básica (primária mas não... primária) elemental mesmo, do paradigma de relacionalidade canónica (de natureza final ou finalista) com a divindade.

Aqui o que se procura é, com efeito, ultrapassar dialéctica---portanto sempre fundamentadamente---o próprio "Deus" com um dos rostos exteriores possíveis da realidade---que o é também simultaneamnte da nossa possibilidade concreta de "conhecer": "Deus" interpondo-se, enquanto projecção da consciência entre esta e o real possível mas não propriamente como "adversário" ou "inimigo" desse mesmo "conhecer" senão que como acicate ou estímulo dialéctico ou, no mínimo, impulsionador dialectiforme da sua própria instrumental negação.

Aqui o que se procura é, pois, de facto, a "realidade": se para tanto se tornar operativo e fecundo "utilizar Deus", por que não?...

É ao tomar conhecimento de alguns posicionamentos teóricos do 'teólogo' (hoje Papa) Joseph Ratzinger sobre, por exemplo, a condição feminina em diversos aspectos da vida (designadamento dos que começam por se prender com a intervenção humana com o tal nos actos de culto) que mais consistente (porque também mais criticamente) eu posso "ajustar" a minha própria visão pessoal do (para mim falso---e essa é já uma conclusão que, se não extraio propriamente porque lhe é anterior, com certeza, consolido e reforço dialecticamente no referido confronto); é, dizia, ao tomar conhecimento de diversas das formulações "teóricas" e especificadamente "teológicas" de Ratzinger neste domínio (mas não só) que reforço, afinal, de um modo que envolve também necessariamente os outros «Eus» que comigo partilham um "idioma cosmovisional" básico e que tal como eu procuram algumas certezas mínimas nesta (como noutras) matérias; é assim, dizia, que reforço, pois, no limite, organizada e fundamentadamente, a minha própria visão pessoal do falso "problema" da Mulher... "com Deus pelo meio", se assim me posso exprimir.

Nessa "questão" [para o cristianismo vaticano há, claramente, uma "question féminine" num sentido que se torna, por vezes, perigosamente afim daquele que subjaz a expressões---e, sobretudo, a conceituações---do tipo das que estão implicitamente presentes em fórmulas como "question juive", por exemplo---e por exemplo (talvez) máximo...; uma "questão" que continua, ainda hoje, absurdamente à procura de uma impossível sustentação "teológica" que só pode obviamente continuar, de forma fatal e irremediável a escapar-lhe ...]; mas nessa "questão", dizia, como na do casamento homossexual ou na do preservativo, é, afinal, de um modo e de uma perspectiva dialécticas estritas, "bom"---é seguramente, sempre dessa perspectiva dinâmica, crítica e dialéctica estável, de abordagem inteleccional da realidade, positivo---que o cristianismo, na sua versão "oficial", nos forneça continuamente modelos referenciais estáveis a superar.
II
O "Público" de 12.07.09 com um texto de Frei Bento Domingues intitulado "Caritas in Veritate: algo de novo?" fornece ulterior margem para reflexão sobre os tópicos constantes desta 'entrada'.
O texto em causa (um vibrante elogio do posicionamento 'teórico' do Vaticano em matéria económico-social relativamente) é um excelente exemplo do modo como, em meu entender, a relevência civilizacional contemporânea do papado se centra hoje no modo como suscita de uma forma a que poderíamos chamar central, nuclear (porque social e geocultu(r)almente equidistante) o debate sobre aspectos essenciais da vida histórica, social e política no mundo de hoje.
Na verdade (e ao contrário do que defende o autor) o posicionamento do papa limita-se, na essência, a repetir velhos equívocos teóricos---no fundo, (in) exactamente os mesmos que fazem da democracia hoje, ela mesma, um enorme e permanentemente irresolvido equívoco.
Não é, obviamente, que isso (o repetir ou melhor: o repercutir) de velhos equívocos seja, em si mesmo, uma coisa boa.
É-o, todavia, no exacto (e dialéctico!) sentido em que fonece um referencia fixo de erro que é, por sua vez, perfeitamente visível de todos os pontos e lugares do geossocial e geopolítico, digamos assim.
Ou seja: quando Joseph Ratzinger (sumariado no que posso supor, fazendo fé no texto de Fr. Bento Domingues, ser o essencial do seu posicionamento teórico nestas matérias) em última análise nada mais faz do que caucionar um modelo ou um paradigma estruturacional específico de "economicidade" "colando-lhe" por fora e por cima uma etiqueta "moral" exógena ao próprio funcionamento do sistema aquilo que está, na realidade, a fazer é admitir (e inegrar no referido posicionamento teórico) a tese da "dupla socialidade" ou da "sociedade esquizofrénica" e "inorgânica" com uma "economia" a funcionar, para um lado enquanto que, para outro, é suposto que intervenha uma 'ética' social e política, completamente independente dela (uma "ética" que tem óbvias dificuldades em persuadir-nos que não se trata da velha e---lá está!---social e politicamente inorgânica 'caridade' cristã promovida à pressa a "Ética" genuína).
Ora, essa é a tara epistemológica nuclear de que sofre, na base mesma, o paradigma demomórfico comum nas sociedades geralmente designadas por 'democráticas' no mundo de hoje: a incapacidade de, desde a própria base ou núcleo activo do sistema, gerarem formas realmente orgânicas de relacionalidade democrática, própria, específica, ínsista ao modelo e endogena e naturalmente inseparáveis do seu funcionamento como tal.
Defender, como faz aparentemente Bento XVI que a infra-estrutura económico-financeira do modelo é 'boa' necessitando, ainda assim, de um maior investimento exterior no que Frei Bento chama expressamente 'ética' em nada se distingue, repito, do pensamento teorético implícito no desenho teórica mas, de igual modo, prático das 'democracias ocidentais' contemporâneas.
Não é, seguramente, por acaso que, a dado passo do seu elogio da posição teórica do papado relativamente a estas matérias, Frei Bento escreva expressamente que esta "mensagem" do papa "embora procure ser uma mensagem para o mundo [...] nunca poderá ser bem entendida fora da expressão católica da fé cristã".
Nem "bem entendida", diria eu nem, satisfatória---porque previsivelmente praticável de forma significantemente lata---praticada.
O que me parece particularmente grave (e em si mesmo desapontador) é que o Vaticano, no fundo, se limite a colocar 'ética' onde antes se colocava "Estado social".
Sempre disse que este, tal como veio a ser utilizado (e sublinho "utilizado"...) nas impropriamente chamadas "democracias ocidentais") operou sempre, na realidade, como um inestimável utensílio de pretensa "legitimação" social e política do paradigma específico de infraestruturalidade económico-política solidamente instalado no seu centro e (mais grave ainda!) como um "excelente pretexto teórico" para manter a própria História artificialmente acorrentada a si mesma e impedida de deslocar-se, social e politicamente, em direcção ao futuro.
A um futuro que não fosse, obviamente, a mera contínua duplicação do próprio modelo no seu todo.
É, repito, crítica e dialecticamente bom que o papa tenha vindo a público defender aquilo que, em meu entender, não passa de uma simples "mutação argumentativa" e remotamente "teórica" de um velho defeito ou de uma antiga tara de episteme do sistema ou sistemas políticos (económico-políticos) que (demasiado...) vulgarmente confundimos na contemporaneidade teórica e prática com Democracia.
É-o porque exactamente e como atrás digo universaliza geográfica e social (ou mexmo politicamente) o discurso oficial do 'regime' reabrindo e alargando, desse modo, o debate em torno daquilo que nele está, diria eu: elementalmente mal.
Diz Frei Bento que o discurso do papa não pretende interpor-se entre "colectivismo marxista" e "capitalismo liberalista".
Que ele não é «política», portanto.
Na realidade, não é outra coisa: a base implicitamente ideológica de que ele parte e sobre a qual assenta tudo o mais nele é que a História chegou económico-financeira, social, política e até, no limite, civilizacionalmente ao seu termo efectivo, ao seu termo como (chamemos-lhe assim, desfigurando um pouco o sentido original da expressão:) como "sistema integrado" restando por fazer meras correcções funcionais---que outra coisa não posso considerar que seja a tal "injecção" de 'ética' que a encíclica papal preconiza como solução para os (múltiplos e gritantes) males do próprio 'regime'.
A "caridade" é inorgânica.
A "Fé" compromete apenas quem a possui---ou afirma possuir.
Não pode, de facto, haver um modelo civilizacional (espanta na realidade que haja quem o preconize) cuja sanidade dependa de um modo tão essencial e nuclerar de actos individuais ou sectoriais, grupais, da mera vontade, autónoma e espontânea, de sectores dentro de si.
Se fosse fácil, por que não existiria já há muitos séculos ou, no mínimo décadas---desde que o cristianismo é cristianismo e/ou de que o papado é papado?...
Desde que há cristãos.
Na verdade, não é o debate dentro da igreja que nos interesa como sociedade económica e política.
É o diálogo e o debate também fora dela (admitindo, obviamente, que ela é parte legítima da comunidade humana, coisa que evidentemente é): é o debate no conjunto dessa mesma comunidade humana que interessa mas esse não tem necessariamente de vir de dentro da igreja.
De dentro desta virão---já estão pelos vistos, a vir--contributos, pelas razões que atrás aduzo, seguramente significativos e relevantes para esse debate alargado que é, disso não tenho a menor dúvida, cada vez mais urgente e essencial que seja feito.

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