segunda-feira, 8 de novembro de 2010

"O «Tea Party»" [praticamente revisto]


Digam o que disserem os "do-gooders" da nossa praça mediática [essa estreita língua de terra que se estende, como é sabido, mar---da desgraça!---adentro, ligando as diversas formas de ignorância que proliferam no [e caracterizam o] Portugal de hoje e a demagogia mais extrema, um, em geral, não-espaço que se torna bruscamente habitado logo que qualquer forma, mesmo ténue e fugaz, de inteligência começa politicamente a mexer-se por perto...]; digam, pois, esses "do-gooders" o que disserem [e têm dito várias coisas, muitas delas francamente preocupantes...] temo na mesma medida em que, por razões de dignidade intelectual e aprumo cívico básico, desprezo, o tal "Tea Party" que a "América profunda"---o não-país e não-lugar, o no fundo, "não-coisa alguma" cívica, cultu[r]al e política que dá vulgarmente por esse nome---recentemente parece ter [re] descoberto com um fragor público, para mim, volto a dizer, profundamente inquietante.

Fritz Lang, um dos meus realizadores preferidos, retrata mas, sobretudo, desmonta nas suas peças essenciais; na sua primaríssima des/estrutura mental e material básica [no perturbador mas também, a mais de um título, esplendoroso "M...", um dos melhores e mais excitantes filmes que alguma vez tive ensejo de ver na vida, aquilo que eu entendo ser a infernal máquina mental da "democracia totalitária" que haveria de conduzir, na Alemanha, em Itália, na Hungria ou na martirizada Ibéria salazar-franquista à ascenção histórica dos fascismos europeus nos anos '20 e '30 do século passado.

Aí, no prodigioso filme de que redivulgo acima um fotograma icónico com Peter Lorre, põe Lang em cena todo o alarmante [e ignóbil, medonho!] espectáculo da manipulação da acefalia e dos tropismos cegos das massas em histeria por parte do poder---por diversas 'formas operativas' concretas dele: ironicamente, desde logo, pelas polícias do poder que deviam, como é evidente, exactamente ao contrário, colocar-se do lado da sociedade "limpa" e normal contra os foras-da-lei a quem, todavia, despudoradamente se aliam a fim de combater adversários simbólica e sarcasticamente apresentados como inimigos comuns de ambos; aí, dizia, expõe Lang, com uma crueza e uma implacável antipatia visualmente plasmada em rostos e corpos grosseiros, boçais, que lembram irresistivelmente, por exemplo, certas obras de Groczs, todo o inquietante caos de histéricas emoções e cúpidas, cínicas cumplicidades; a realidade assustadora dos medos instintivos das massas sabiamente, por essa equívoca e espúria unidade familiar composta pelas diversas formas do poder, do poder legal e do poder factual "recuperados" à sua inocência original e, em lugar de naturalmente resolvidos pela intervenção das que deviam, em todos os casos, permanecer as da Lei, astuciosamente usados por aquelas forças fácticas a fim de servirem propósitos inconfessáveis situadas dentro [ou no topo, no vértice] de uma sociedade que apodrece tão tranquila e conformada quanto irregressivelmente...

Histeria e interesses associados entre si e ambos por razões, como disse, de mera conveniência, por sua vez associados ao poder político, às forças da ordem que aqui o representam, ocupam, então, de braço dado, na prática, esse mesmo poder sendo impossível não ver aqui erguendo-se, sinistra, a ominosa sombra de Hitler e da ascenção do nazismo, realidade através da qual uma, em tudo similar, aliança de violência de rua e banditismo, malfeitoria pura e simples organizada progressivamente em força legal, em polícia e guarda pretoriana de um regime e, finalmente no próprio regime---um regime estruturalmente agressivo e opressor que só muito breve e muito exteriormente se libertaria do património genético de violência primária que presidiu à sua ascenção histórica; irresponsabilidade e suicidária tolerância interior e exterior [quando não aberta e entusiástica aprovação como chegou a ser o "caso" de Henry Ford autor de um inimaginável "O Judeu Internacional" de que, de resto, se veria posteriormente obrigado a abjurar; medos e fantasmas, mais ou menos solidamente implantados no inconsciente colectivo e habilmente manipulados por esse equívoco poder "callejero" que um conjunto de grandes interesses financeiros sem demasiados escrúpulos morais viria a sancionar como expressão política legítima de si; tudo isso junto, dizia, acabaria, sem que muitos à época se fossem dando conta do horror que com o seu silêncio e a sua leviana tácita cumplicidade tinham alimentado, gradualmente, convertendo de estado-de-coisas num verdadeiro Estado, com as conseqências verdadeiramente apocalípticas que são conhecidas.

Ora, quando assistimos, a propósito dos Estados Unidos de hoje, à histérica correria da extrema-direita populista e equivocamente "racialista" [para não dizer "abertamente racista": Kathleen Gomes interroga-se no "Público" de 26.10.10, por exemplo, sobre se "será coincidência o movimento ter aparecido quando há um presidente negro na casa Branca"...] [*]; quando assistimos, dizia, a propósito dos Estados Unidos de hoje à histérica "rush" aos telemóveis como instrumento de agitação e difusão privada da onda histérica de securitarismo misturado com um tão caótico quanto exacerbado e excitado "vigilantismo" e à neurótica mobilização das sempre insondáveis "maiorias silenciosas" ["verdadeiras "mobs" em potência quando manipuladas por gente deste---como do outro...--- nível!] no sentido do "apelo ao voto nas ruas" [ibid. loc. cit.]---uma agitação que ultrapassa, aliás, já as as fronteiras dos estados tendendo a conferir à histeria expressão tendencialmente nacional ["mães suburbanas", é ainda K. Gomes quem escreve, "estão a fazer chamadas interurbanas para estados vizinhos", do Oregon para o Nevada, por exemplo, enquanto candidatos como um tal Carl Paladino se propõem, por outro lado, apresentar-se em Washington D.C. "com um taco de basebol" para "lidar com a classe política" [!] ou ainda quando somos confrontados com o nível de esclarecimento e de cultura assim como, de um modo geral, com a qualidade e a substância das "ideias" [?] de uma tal Christine O' Donnell, "uma anedota" que se tornou uma "obsessão a seguir", diz a articulista do "Público", crente em bruxas e defensora do princípio... "moral" que identifica a masturbação com o adultério; quando assim é, dizia, é irresistível a tendência para começarmos, no mínimo, a olhar de outra maneira [constitui um verdadeiro dever ético e civilizacional que o façamos!] para um país que conduz neste momento, em simultâneo, para nada menos do duas guerras "estratégicas" sem fim à vista e conduzidas com orientações que parecem fluir ao sabor das circunstâncias, todo um conjunto de sociedades e nações atormentadas, cada uma delas, em maior ou menor escala, por sua vez, [como nos anos '20 e '30 do século XX, aliás!] por gravíssimas crises sistémicas que, em diversos casos, o são, de igual modo, de credibilidade e até de sustentabilidade material dos respectivos aparelhos de natureza dita "social"---com tudo o que esse explosivo cocktail de contradições e angústias sem alvo imediato [ou com o alvo imediato--lá está!---habilmente manipulado a fim de parecer situar-se noutro lado]---verdadeira bomba-relógio de consequências, em larguíssima medida, imprevisíveis, pode implicar em matéria de paz civil e/ou de estabilidade política e eventualmente, no limite, militar.

Parece-me evidente que, tal como nos é dito [nos é mostrado] no caso do filme de Lang, o facto de numa sociedade poderem existir e até operar aparentemente com toda a normalidade parte quantitativamente significativa das alfaias próprias da democracia [o envolvimento directo das massas nas acções envolvendo o propósito de resolução de problemas colectivos sentidos como relevantes para o cojunto da comunidade ou até o incitamento cidadão ao voto, no caso norte-americano] não garante que a democracia esteja a ser efectivamente cumprida.

Quando, no caso do filme de Lang, a mobilização das massas fica a cargo de ladrões e assassinos que se juntam para "ajudar" a polícia no que, de facto, virá a ser o trágico linchamento de um ser humano doente mental, os efeitos práticos de cuja doença interferem directamente com os escuros negócios do submundo e complicam gravemente os sombrios, marginais manejos da sua ilícita actividade ou quando, no caso mais próximo dos E.U.A. a mesma mobilização é levada a cabo por gente armada de tacos de basebol; gente que acha [ou volta a achar?] que a "raça" deve poder legalmente ser um critério de discriminação entre seres humanos, ainda por cima naturais de um mesmo país, tutelados pela mesma lei e protegidos por uma mesma Constituição; gente que acredita que masturbar-se é o mesmo que trair ou que consultar bruxas faz parte natural e legítima do arsenal cognitivo de seres humanos do século XXI; quando tudo isto, dizia, acontece é impossível não ouvir ao longe a História regorgitanto um longo e horrendo vómito há muito apenas com "sangue suor e lágrimas" por ela engolido.

É preciso, com ou sem "do-gooders" e/ou traficantes de irresponsabilidade eufónica e bem-pensante ter a coragem de acordar antes que o mal se instale, como no trágico precedente histórico de que temos vindo a falar, envolvendo o crescimento gradual de um veneno político e civilizacional de efeitos, a partir de um dado ponto, incontroláveis e afirmar [o que faço, aliás, aqui para concluir] que, quando assim acontece, não é seguramente, por muito que à primeira vista possa parecer que é disso que se trata, de democracia que estamos a falar mas de outra coisa bem distinta incomparavelmente mais perigosa e alarmente: de um possível; de um potencial, processo de gradual contaminação e lenta mas segura infecção social, mental e política que se imaginaria hoje bem morta e tranquilizadoramente enterrada no cemitério das ignomínias civilizacionais e das monstruosidades políticas que foi simbólica mas desgraçadamente talvez, afinal, não definitivamente [por que não dizê-lo?...] Nuremberga, 1945...


[1] No artigo intitulado "O que o Tea Party aprendeu com Obama (e está a usar contra ele)" a jornalista refere ainda a propósito da questão racial, por exemplo, o "caso" de um candidato, Rand Paul de seu nome, que "sugere que as empresas privadas deviam ser livres para recusar clientes em função da raça [!], caso quisessem" o que diz, afinal, tudo quanto há, no fundo, para dizer sobre o modo como o movimento equaciona não apenas a questão das raças como, em termos mais latos, a da própria liberdade---aquilo que ele tem, realmente em mente quando a invoca---e o que poderá, de facto, resultar da sua eventual ascenção ao poder no país...

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