sábado, 13 de novembro de 2010

"«Calle Mayor» ou «I Vitelloni à Espanhola»"


Integrado no III ciclo de cinema espanhol ["Entonces y Ahora"], exibiu o S. Jorge hoje três filmes, entre os quais o clássico de Bardem, "Calle Mayor", de 1956.

Com um elenco internacional onde se incluía uma fabulosa Betsy Blair, um José Suarez fraquinho [uma espécie de "seguro de vida comercial" interno para o filme ao garantir uma presença espanhola no topo do 'cast'...] assim como um eficientíssimo Yves Massard, além, de por exemplo, uma discreta mas segura Dora Doll, o filme 'é', de facto, como digo no título, um "I Vitelloni" espanhol que, todavia, ganhou, por méritos e atributos próprios, o direito a ombrear com a obra de referência do mestre italiano e, enquanto filme, inquestionável legitimidade a aspirar a uma vida cinematográfica e, de um modo mais lato, cultu[r]al própria.---que, aliás, tem.

A perspectiva de base é genericamente idêntica, em ambos os filmes, este e o de Fellini: a ideia de discorrer sobre os respectivos "entornos" sociais, mentais, políticos, etc. de partir do grupo de "inúteis" cuja designação colectiva o mestre italiano escolheu para título do seu filme [Bardem preferiu optar por esssa espécie de lugar simbólico "ritual" ou "cerimonial" consagrador que é a "gran via" das pequenas cidades espanholas de província em pleno franquismo, sede ideal do provincianismo e lugar electivo da sua afirmação e consagração simbólicas efectivas, por onde desfila regularmente um baço e opaco, deprimente, cortejo de mediocridades, misérias ocultas, sonsas crueldades e "pequeñeces" sem fim de toda a ordem...]---"inúteis" esses em cuja ociosidade se vem reflectir, afinal, toda uma condição colectiva que é social, em ambas as películas e que aqui, na de Bardem, ganha adicionalmente, de forma expressa, uma componente moral, ética, que, desgraçadamente, diga-se de passagem, o público, sobretudo mas não só, o público jovem, português, de 2010, que esteve hoje comigo no S. Jorge, não foi capaz de perceber.

Foi, com efeito, um público que riu [por vezes, de um modo tão idiota e boçal em momentos tão gritantemente inadequados que chegou a ser constrangedor pela insistente reafirmação da escandalosa incompreensão e imperdoável insensibilidade de que é expressão evidente]; um público cujas vivências e cujo entorno cultu[r]al se acha hoje, no plano formal [mas o problema é que, de facto, no fundo, apenas nessse, como adiante veremos] a anos-luz das [e do] que o filme consagra; um público manifestamente incapaz de entender realmente este último porque também incapaz de contextualizar sozinho [grande pecha do ciclo!] os dramas sociais mas também pessoais que figuradamente, na película, permitem reconstituir e representar aqueles, designadamente, como é óbvio, o da personagem-chave de 'Isabel'/Betsy Blair, uma actriz espantosa [dobrada aqui por Elsa Fábregas] que Antonioni, não por acaso, iria buscar para protagonizar o seu clássico "Il Grido", filmado no ano seguinte ao de "Calle Mayor" e que, sob a direcção de Paddy Chayevski, havia já protagonizado o absolutamente incontornável "Marty", com Ernest Borgnine.

...O que não deixa, aliás, de ser irónico, diria eu, voltando um pouco atrás, ao modo quase insolentemente... condescendente como o público do S. Jorge recebeu em geral o filme de Bardem---porque é precisamente a uma audiência completamente anestesiada, desprovida de valores e por isso completamente incapaz de escapar à o/pressão de padrões éticos ou simplesmente mentais completamente esgotados, vazios [ou, sequer de perceber efectivamente, que eles existem e, se existem, onde devem ser procurados e onde realmente estão!] e, no caso da película de Bardem, apenas exteriormente assumidos que o realizador espanhol vem dirigir-se através, sobretudo, da personagem-consciência de Yves Massard [no filme, curiosamente chamado 'Frederico' como Fellini...]

Fá-lo obviamente para as plateias [e, de um modo mais lato, para a sociedade espanhola] do seu tempo mas resulta, sem dúvida, inquietante e motivo de séria reflexão, volto a dizer, que a lição que terá ou não frutificado na "sua" Espanha, a avaliar pelo ar enfastiado, condescendente e distante, inexplicavelmente [lá está! Ou talvez não...] divertido da audiência do S. Jorge mantém hoje entre nós, mais de meio século depois, a mais plena [e preocupante] actualidade, agora com uma geração à qual a o/pressão social, mental, cultu[r]al, política, etc. chega já sobretudo, pela negativa ou, se se quiser, por absurdo, na forma não já de um código de valores rígido e hipocritamente impositivo, aliás não cumprido [e, por isso mesmo, de resto, é que, além de mau, é hipócrita] mas na da ausência, no fundo, total de um verdadeiro e demonstrável [individual e colectivamente, em geral, reconhecível] código desses mesmos valores...

Por isso mesmo, eu falava atrás de uma diferença "formal", entre o público do tempo de Bardem, dos anos '50 do século passado e o público português de hoje: com valores impostos e, em larguíssima medida opressores, violadores da consciência e usados, inclusive, como é sabido, como sustentáculo de opressão e violência social e política, no caso da Espanha franquista dos anos '50 ou na forma de uma não menos inquietante ausência de uma linguagem [e de uma prática!] fundamentadamente morais e especificamente humanistas, reconhecidas [e reconhecíveis!] pelo conjunto da sociedade, no caso da actualidade, a diferença revela-se, afinal [a avaliar até pela reacção distanciada e "blasée", não me canso de dizê-lo, da audiência de hoje ao filme] mínima e, acima de tudo, essencialmente irrelevante.

O filme, voltando a ele, retoma aquilo a que poderíamos chamar, com Machado, a tese [ou o princípio] "das duas Espanhas", apresentada pelo grande poeta de Sória num dos seus mais belos poemas.

No filme, é gritante, com efeito, a [omni!] presença obsessiva dessa já aqui por mais de uma vez referida "España de charanga y pandereta, de cerrado y sacristia, de espiritu burlón y de alma quieta, devota de Frascuelo y de Marìa", uma das que, segundo o Poeta, cantado por Serrat, "ha de helar el corazón" de cada espanhol que nela nasça [a começar pelo grupo de amigos que prepara a "piada" e a acabar individualizadamente em 'Juan'/José Suarez, pusilânime e cobarde instrumento do sacrifício da solitária, vulnerável e sensível 'Isabel']; melhor e mais precisamente dizendo: a cada espanhol que nela nasça sem a dignidade ou a consciência e a consistência morais de 'Federico'.

Uma Espanha capaz de converter [de facto, perverter] cada acto de quotidiana [aparente] virtude [os "parabéns dado a 'Isabel', por exemplo] num exercício de interminável [e implacável, impiedosa!] mal-dissimulada crueldade para onde convergem, afinal, todas impotências e todas as frustrações, todas as abjecções e pequenas ou grandes cobardias, de uma 'sociedade moral e política' completamente estagnada---completamente apodrecida, em termos políticos mas também morais por um regime monstruosamente hipócrita e brutal que a todos ou quase todos, de um modo ou de outro, acaba infectando e contaminando.

Do ponto de vista estrita [mas, de modo algum, estreitamente!] cinematográfico, o filme "é", em larguíssima medida, imediatamente Betsy Blair, uma actriz com um rosto deslumbrante e fantasticamente eloquente que, de princípio ao fim, quase a dispensa, aliás, de... "representar", "actuando", de facto, por ela, sempre num registo espantosamente discreto e contido, intimista ---várias vezes, me fez pensar nessa diáfana Celia Johnson de "Brief Encounter", de Lean, uma obra com a qual a abordagem delicadamente subjectivizada de "Calle Mayor" apresenta, aliás, a meu ver, algumas demonstráveis afinidades; um rosto, o de Betsy Blair, voltando a ele, também incrivelmente impressivo [eu quase diria: definitivo!...] e poderoso, interiorizado, magnificamente controlado, disciplinado, magicamente "subdued", ilimitadamente crível e sempre esplendorosamente impressivo.

Uma observação final sobre o ciclo: muito sumária e, no fundo, muito... cerimonialmente apresentado na sessão inaugural em que passou o filme de Berlanga também já aqui brevemente analisado, o soberbo "Bienvenido, Mr. Marshall" [claramente a outra jóia do certame e o único, dos que vi, que mereceu... prefácio] tudo o resto passou sem uma introdução que contextualizasse minimamente o programa, que detalhasse um pouco a perspectiva genérica do ciclo e lançasse alguma luz sobre os critérios que presidiram à selecção dos filmes simplesmente exibidos com saltos temporais brutais que justificariam uma palavra que permitisse [como dizer?] "amortecer" um pouco a "queda"---algo que ficou, hoje, por exemplo, evidente com a exibição de um, a todos os títulos, imaculadamente moderno "Calle Mayor" de 1956 de onde se passou [seja-me permitida a imagem que julgo escalrecedora!] completamente "sem rede, para um, genericamente interessante mas algo discutível "La Ardilla Roja" de Julio Medem, de 2001, um filme confuso, aqui-e-ali mais do que propriamente estimulante [como manifestamente e nem sempre com inteligência e bom-gosto o realizador pretende] "esquisito", algo oportunista [com piscadelas de olho razoavelmente gratuitas às audiências 'gay' e aos públicos "modernaços" de "discoteca", amantes dos "cheap tricks" e do exibicionismo narrativo puro e duro [o braço amputado, a sugestão pedófila] cansados, como estão estes últimos de subtilezas---ou desabituados que estão de perceber as sugestões e de "take hints", algo completamente dos padrões comuns de consumo televisivo diário]; um filme que é claramente um 'produto' de uma outra Espanha, sem dúvida, a todos os títulos, para o bem e para o mal, objectiva e subjectivamente, muito mais próxima do público generalizadamente... pós-moderno que estava presente na sala 3 do descaracterizado e, hoje-por-hoje, estranhamente impessoal S. Jorge...

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