segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Evocando Brevemente Stuart Carvalhais"


Falo nele noutro lugar deste "Diário", a propósito da polícia.

Stuart Carvalhais---um cronista fabuloso de Lisboa e das suas figuras típicas dos anos '40 e '50, da varina ao polícia, da senhora gorda, o equivalente português da "mamma" italiana [à época as senhoras gordas era todas mães de alguém, viviam em vãos de escada esconsos à Graça e vinham à porta quando a gente passava a caminho do liceu não fosse a gente tocar-lhes à campaínha e fugir... Stuart foi um cronista impiedoso delas, daquelas das quais se dizia, em surdina e com malícia muito alfacinha, que o bigode que orgulhosamente lhes coroava o beiço grosso e que parecia erguer-se feroz no ar à nossa passagem pronto a investir era, um dia, religiosamente replicado pelos filhos varões...]; da senhora gorda à menina por conta...

Desconfio que gostava francamente mais destas [ou das fadistas meio tuberculosas e das prostitutas de xaile que também desenhou] do que das tais senhoras gordas com quem ele [como Chaplin que nelas deu corpo à sua evidente e, do ponto de vista estritamente cinematográfico... providencial misoginia...] foi implacável, talvez por lhe lembrarem demasiado uma demasiado cinzenta respeitabilidade ganha a poder de uma baça e fosca normalidade não isenta volta-e-meia de pontiaguda e birrenta truculência...

Foi muito mais do que isso---ainda que eu, à época, o não soubesse: foi um pintor de uma desigualíssima e circunstancial mas sempre interessante, muitas vezes amarga, não-raro sarcástica, mal-disfarçadamente desencantada, melancólica virtude--uma espécie de fatalista ou de "vencido da vida" das formas e da sombra---que compôs, desenhou e coloriu como se tocasse jazz: com as pausas, os hiatos, as descontinuidades mas também, por tudo isso, a espontaneidade e a permanente disponibilidade de quem interpreta um texto musical de jazz.

Alguma das suas melhores figuras são seres marginais, de um modo ou de outro, errantes e nocturnos que, condenados pela intervenção inclemente mas agilíssima, experimentada, às vezes, efemeramente 'oportunista' do pau de fósforo queimado ou do instintivo e naturalmente esclarecido pincel à infixidez e à quase dissolução, parecem, muitas delas, ir a cada momento desintegrar-se ou esfumar-se no ar ou misteriosamente acabados de saír dele---seres estranhos, errantes e mudos com muito do "mal de vivre" e do espírito 'fadista' do lumpen lisboeta [que sempre me levaram a pensar nos tuberculosos e numa certa 'cultura' fatalista da tuberculose que, a dada altura prevaleceu um pouco por toda a Europa e que o Portugal da ditadura resolveu adoptar como atmosfera e "Zeitgeist"] que se comportam sempre ou quase sempre, de um modo ou de outro, como se soubessem que iam morrer e usassem o desenho como uma espécie de ritual final de conformação, de auto-pacificação e de preparação para a morte, muitas vezes [perdida toda a esperança] troçando disfarçada mas sempre um pouco altivamente dela...

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