quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Incompl./Por rever


Muitas vezes, quando equaciono perante mim próprio a questão do Portugal do futuro---serei, aliás, dos poucos que, entre nós, ainda o fazem---o Portugal a sair do atoleiro para que acabou por atirá-lo o 'intermezzo socrático' [visto---já!---retrospectivamente com o seu inefável cortejo de Helenas Andrés, de Luíses Amados a que se juntam personagens ainda mais dificilmente descritíveis como os Ruis Pereiras e as Anas Jorges, uma espécie de reedição Titanic do hilariante "governo Santana Lopes"]; muitas vezes, dizia, colocado perante a questão de responder à pergunta "Como vai ser o Portugal de daqui a uns meses ou mesmo se calhar até, só umas semanas?" uma imagem há que me persegue e atormenta: a da Itália moderna.

Versão barata da cupidez e das desenfreadas lutas pelo poder na Roma Antiga, "país económica e socialmente polar" onde a base da pirâmide social esteve sempre "a quilómetros" do, por sua vez, persistentemente cúpido, decadente, lascivo e não-raro devasso, topo, não por acaso a retrata Shakespeare no "Júlio César" como uma arena de frias crueldades e traições sem fim onde a dignidade e a consistência ética acabam tragicamente imoladas à vaidade, à ambição pessoal, à traição, à perfídia, à conspiração e aos jogos, às depravadas manobras de umbrosos e túrbidos conjurados.

Não sou historiador e a minha perspectiva, aqui como em todos os outros contextos onde questões desta natureza venham à baila, é sempre naturalmente distinta da do historiador.

Nem sequer estou particular [nem sequer estou realmente!] interessado em averiguar da consistência e da veracidade estritamente factuais, objectivas, da imagem que Shakespeare [re?] produz da Roma cesária e dos usos retóricos e dramáticos que dela, no clássico referido, faz.

O que está, para mim, realmente, em causa aqui é discorrer em termos muito mais filosóficos e antropológicos, sobre uma espécie de persistente 'cultura da incultura' e das múltiplas formas de abjecção a que ela dá origem [sob muitos aspectos Roma, a própria Roma, é já uma espécie de Grécia Antiga re/vista num espelho embaciado e nem sempre muito limpo...] que parecem obstinar-se em viajar continuamente pelo espaço global da latinidade nesta achando, de forma mais ou menos cíclica, metronómica até, rostos e retóricas sempre disponíveis para reencarná-la.

O que está aqui em causa é, diria eu, sobretudo, um tipo de imagem tópica persistente, abstracta mas sempre impendentemente concretizável, de salvador-ovelheiro-tutor-mentor de povos iletrados, misto de carcereiro mental palavroso e gabiru e Senhora de Fátima, fantasma obsessivo de latinidade naturalmente subdesenvolvida, truculenta, falstaffiana [no fundo, Berlusconni é um Falstaff com meninas em poses dúbias a toda a volta, um Mussolini com um montão de DVDs piratas e cassettes de filmes da Cicciolina sempre à mão]; um Godot carnal e incrivelmente carnívoro que se pinta de branco para se parecer com os anjos---os quais, todavia, para ele terão sempre a forma e a aparência finais de um salsichão com um halo de neon na extremidade mais próxima e mais facilmente comestível...

Muitas vezes, dizia, então, tudo isto, este bric-à-brac antropológico e mental onde cabem, mais Mussolini, menos Mussolini, Salazares, Cavacos, Berlusconis, Mários e Primários, montes de bosta a fingir que são prédios nas berças, rústicos com nomes de gente famosa a-ver-se-pega [e, às vezes, pega mesmo!] chicos-espertos com cursos feitos a martelo como o vinho, camisolas do Ronaldo, encíclicas papais e cardeais-patriarcas bem-falantes cheios de vontade de fazerem da indigência intelectual pura e nada simples "papers académicos" legítimos mas, paradoxalmente, também suecas comestíveis disfarçadas de Julietas suburbanóides e meninas por conta que parecem anjinhos adoptados por gente verdadeira, "antropófagos sociais" maloios e arrivistas, inimaginavelmente vorazes e sucateiros de todo o género---até de ideias e de consciências em segunda mão; D. Juans de pastelaria de bairro e penteado de herói de telenovela da TVI; Júlias Dinheiros e criadas de servir com nome de santuário rasca pagas a peso de um oiro que não há; muitas vezes, dizia, quando penso no Portugal "que aí vem", penso nesta espécie de... "resíduo sólido" global e persistente que, ao deslocarmo-nos como gente na História, arrastamos penosamente atrás de nós como uma espécie de rabo cultu[r]al indecorosamente óbvio, de identidade prévia e decisiva ou até de bicho de estimação mental e cultu[r]al para o qual não houvesse instituição zoófila nem canil para onde pudéssemos remetê-lo no improvável caso em que aprendêssemos finalmente a viver sem ele e até, no limite, como já nos habituámos, para ele.

...E invariavelmente concluo: vivemos, há muito [desde sempre?] no fundo de uma agnocracia triunfal com sólidas raízes na História imóvel e completamente circular onde vamos buscar inspiração para continuar a fingir que existimos realmente e que nos habituámos a conceber como ums espécie de destino colectivo que deixámos já, há muito, de saber distinguir de nós mesmos.

Nós com os nossos diversos Salazares [que nos chegam sempre numa espécie de escala móvel que vai mudando com os tempos: ora maiores, ora mais pequeninos, conforme as modas e as necessidades circunstanciais de quem há muito "comprou a História" para seu uso pessoal]; os italianos com os seus Prodis, os seus Craxis, os seus Andreottis, os seus Berlusconis ou Patusconis, os seus Césares de pacotilha, os seus Berluschinis e Mussolonis consumidores de virgens e dignidades várias; nós com os "nossos" próprios pesadelos existenciais e cívicos colectivos na forma de meia dúzia de pseudo-homens e mulheres públicos acabados de sair de uma qualquer "loja dos chineses institucional ou académica", entretanto fechada por uma ou outra razão invariavelmente menos clara e menos louvável; a França, sempre às voltas com um escândalo de espionagem e uma "chauvinice" quaisquer, com os seus Casanovas de "marché aux puces" e as suas "escort girls" de capa de revista tonta que, num país que o é também de muitas vinhas e vinhateiros, substitui, com vantagem, as ideias que há muito deixou de haver.

Ora, o mal não é, ao contrário daquilo que alguns pensam, de partidos: a Itália renovou ainda não há muito o seu próprio "parque" nessa matéria e pouco tempo depois estava exactamente na mesma ou um bocadinho pior...

Em França os partidos políticos são sempre, em consequência do próprio modelo institucional de governação, uma espécie de democraticamente vistoso alibi e, no fundo, aparatosa inutilidade [senão mesmo, decorativa escrescência] que fica sempre bem ostentar a toda a volta do poder mas, como acontece, entre nós, nessa extraordinária paródia de regime e colónia penal perdida algures numa prega remota do Tempo que é a Madeira a uma distância "segura" desse mesmo poder.

O problema não são, pois, os partidos mas o "uso" que os sistemas políticos fazem deles, servindo-se, para tanto, de quantidades ou níveis diferentes de intervenção e participação civil na vida política das sociedades onde eles se inscrevem e actuam.

O problema é o modo como os cidadãos, a sociedade dita civil no seu todo [não] participa na vida da cidade---o modo como institucionalmente os mecanismos absolutamente básicos e essenciais de vigilância e controlo democrático [não] operam, chamem-se os partidos "Casa das Liberdades" ou tenham eles outra [bigoduda e mais ou menos fantasiosa, carnavalesca] designação qualquer.

O específico democrático---aquilo que permite, em última análise, distinguir sempre uma democracia mais ou menos genuína de um daqueles sistemas de "autocracia plebiscitária" que passam, no Ocidente comummente por tal---consiste no seguinte que não me canso de repetir: nas democracias, aquilo que a sociedade no seu todo cede aos respectivos poderes poderes executivos é sempre e apenas o exercício instrumental do poder, nunca o próprio poder como tal.

A cedência deste último como tal é própria dos regimes autocráticos onde o exercício do poder e o próprio poder se confundem a ponto de na prática constituirem entidades inter-indissociáveis e virtualmente inextricáveis.

Ora, para que seja apenas o exercício, não o poder, que é contratado socialmente entre a sociedade e a respectiva liderança democrática torna-se, como também tenho vezes sem conta repetido, absolutamente imprescindível que previamente à eleição desta exista um caderno de encargos económicos, sociais e políticos---um programa preciso de acção política---pelo qual os eleitos sejam institucionalmente forçados a responder em qualquer altura, sendo formalmente penalizados por tribunais de fiscalização política caso incumpram o respectivo mandato omitindo partes ou a totalidade dele sem razão demonstrável e legítima ou, pelo contrário, excedendo-o, dele infundadamente exorbitando.

Um governo democrático não é um proprietário ou um comissionista disfarçado da vontade da sociedade nem sequer um mediador com poderes para substituir a sua própria à vontade civil.

Qualquer desconformidade entre o contrato social subscrito e o seu in/cumprimento em legislatura, no caso do governo, deve sempre ser objecto de análise por parte da mesma instância fiscalizadora com poderes tribunalícios onde cada candidato, individual ou colectivo, devesse, também, aliás, ser obrigado a depor previamente à consecução do respectivo processo eleitoral uma cópia do programa de acção .

Numa democracia os eleitos não respondem por factos consumados e, em qualquer caso, não respondem por elers ou por outros quaisquer simplesmente através da possibilidade de não serem reeleitos.

Inclusive se os factos em causa forem bons o próprio modo como a eles se chegou deixa a porta aberta a que o não sejam e viola um princípio básico da democracia que é o 'princípio da confiança fundamentada' entre eleitores e eleitos.

Eu diria que em democracia a boa governação tem de ser sempre objectivamente "mensurável"---e obviamente só pode sê-lo se houver um padrão estável e, ao mesmo tempo, fiável pelo qual aferir objectivamente o respectivo in/cumprimento: esse padrão é, como não resulta menos evidente, o próprio programa previamente depositado na instância fiscalizadora à qual compete avaliar e formalmente julgar da consonância material entre o programa e a realidade.

Só há Berlusconis e quejandos [cito o seu "exemplo" porque é, de facto, um caso, sob muitos aspectos extremo de "degenerescência" e até de "patologia" políticas mas poderia, com alterações de circunstância citar o de um Blair, em Inglaterra, uma das nmais sombrias e desprezíveis figuras da pós-modernidade cívica, ético-política, civilizacional, etc. de que há memória; um indivíduo que devia ao que tudo indica estar hoje a responder pela monstruosa mistificação, pelo verdadeiro crime que foi a invasão do Iraque e tantos outros, inclusive... "prata da casa"...]; só há Berlusconis, Aznares, Barrosos e outros que tais porque a democracia não se vigia, não se defende e não se... "dá ao respeito".

Não me restam muitas dúvidas de que num país mental e político como este a que chamamos [alguns, porém, com deliberado sarcasmo!] "nosso", até um F.M.I. alibi de inomináveis cobardes políticos santo padroeiro da irresponsabilidade assumida como política de estado terá de fatalmente aparecer, mais cedo ou mais tarde [quem sabe se em cima de uma oliveira...] como um salvador de nós mesmos, uma avatar do Pai ou da Paternidade Mosaica que nunca quisemos [nem soubemos!] deixar de ter e de que necessitamos desesperadamente para nos proteger, insisto, acima de tudo, de nós próprios.

Somos, assim, antes de mais, o nosso próprio medo de existir como alguém lhe chamou feito vocação---uma "gente singular" para quem um passado mítico dá sempre o melhor dos futuros e o mais empolgante dos mitos.

A começar por essa extraordinária ideia em volta da qual construímos toda uma identidade colectiva; esse persistente "andaime da existência" de que nem por sombras admitimos prescindir com medo que a identidade que imaginamos possuir possa desabar se a ele renunciarmos e que é a de que estamos, de facto, na História e existimos realmente...


[Na imagem: "Fátima, Isso Come-se?" colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado]

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