quinta-feira, 11 de novembro de 2010


Já não há francamente pachorra para ouvir falar do "Orçamento"!

Leram bem: para ouvir falar!

Falar é bom mas cansa---e acaba por não conduzir a coisa alguma senão a mais... conversa, a mais falar.

A mais "não-fazer".

Entendamo-nos! Este é um Orçamento político, é o orçamento de uma política, da política comum ao "pê-ésse-Laurel" e ao seu irmão gémeo, o "pê-ésse-dê-Hardy"...

É o orçamento "do Bucha-e-Estica" da política [ou do pós-política] 'à portuguesa'.

Dir-me-ão: todos os orçamentos são políticos.

Claro
que todos os orçamentos são políticos!

Claro que a economia é, sempre, no limite, um capítulo, um momento, um instante da política do poder.

Tal como, de modo apenas aparentemente contraditório, a política é hoje na prática um capítulo da ecomomia: da economia do poder.

Da economocracia.

Que o é---economocracia---precisamente porque colonizou a política e se colocou a si própria, em lugar dela, no centro determinante das dinâmicas da História, lá onde estas são fabricadas, controladas e geridas, usando a falsa política para entrar "legitimamente" na "Civilização".

Para se converter em "civilização", em paradigma civilizacional.

É a isso que eu chamo "o sistema": a economonia ao volante da "civilização", a economia como 'civilização', deformando continuamente a História com tudo dentro [dos modos e modelos de pensar aos---como professor, sou particularmente sensível a este aspecto da "questão"!---aos de educar.

Todos orçamentos são políticos, pois, dizia...

Neste caso são-no da da não-política economocrata do poder vigente em Portugal.

Para esta, um "Orçamento" que descarrega toda a responsabilidade de alimentar o sistema em crise, em esforço, sobre as classes não-possidentes---o pós-proletariado neo-moderno---é, não apenas lógico e natural, como, de facto, inevitável.

No fundo, não passa, aliás, de uma "mutação funcionante" adaptativa da velha prática sistémica [sublinho: sistémica!] de fazer todo o conjunto da sociedade pagar---"comprar ou alugar" económica mas também politicamente---um sistema económico-político que supostamente "produz riqueza" mas que, na realidade, se limita a re/produzir continuamente capital, usando a "riqueza real" [os bens de consumo social] como um simples pretexto para alcançar o objectivo em causa.

Recorre, de igual modo, como já disse, o sistema à prática comum de utilizar as sociedades como financiadoras do enriquecimento de uns quantos através dos impostos---que reentram des-igualmente no bolso dos financiadores [os capitalistas-sombra que somos todos nós, fornecedores desse capital-sombra, desse capital invisível que nunca vê dividendos directos sem o qual, porém, todo o edifício do paradigma capitalista inevitavelmente bloqueia e fatalmente desaba: o trabalho, o emprego é, também ele, de facto, um subproduto da produção de capital, o único dividendo do capital investido pelo conjunto da sociedade na "compra" ou no "aluguer" histórico e político de todo o sistema]. [*]

Na realidade, nas formas comuns de 'política' capitalista o que se passa é a cooptação [há quem, atendendendo à vigência de um conjunto de parelhos e dispositivos legais de "condicionamento livre" institucionalizado, designe esta cooptação pelo termo mais eufónico mas, de facto, ilusório de "eleição" ou "eleições"] de uma sociedade para uma economia.

Uma economia que recorre a formas sistémicas de "rarefacção ou carencialidade significadas" a fim de gerar "valor".

De facto, esta economia, este modelo 'economocrata' não gera apenas "riqueza" como gosta de dizer para se justificar social e politicamente e, à que gera, redistribui-a, como vimos, de forma estruturalmente des-igual, usando o emprego como uma moeda de troca e um interesse do capital social investido.

De facto, ela paga, como em certos regimes coloniais clássicos, "em géneros": o emprego não é senão um desses "géneros".

Ou seja: produz "riqueza" a partir da "matéria-prima sociedade" aliada à "matéria-prima carência".

O sistema pôde, assim, funcionar enquanto conseguiu manter formas e/ou níveis umas e outros operativos de ecologia sistémica interna envolvendo a dupla condição comum à generalidade dos indivíduos [melhor dizendo: das camadas ou das classes não-possidentes da população, chamemos-lhe nós "proletariado" ou outra coisa qualquer!] ;

Isto é: pôde funcionar enquanto se manteve dentro de limites "objectualmente razoáveis" de integração sistémica de saber, ou seja, de tecnologia e foi possível, por isso, que os indivíduos [o 'indivíduo' enquanto figura teórica, enquanto ideação abstracta mas de igual modo, como é evidente, enquanto entidade concreta] fosse, por seu turno, logrando manter-se globalmente "orgânico", "integrado" porque operando sempre, em termos genéricos, na dupla condição de "trabalhador", de "mão-de-obra" e de "mercado".

A ecologia do sistema rompe-se definitivamente devido ao facto de as quantidades e as qualidades de saber na forma, desde logo, de tecnologia, terem atingido níveis em que a des-integração dessa entidade, até aí, insisto, em termos teóricos e práticos, global ou genericamente "orgânica", "integrada", que era o "indivíduo funcional" do próprio sistema se tornou, a prazo, inevitável.

Dito de outra maneira, a prazo, no processo, o espaço do indivíduo-trabalho, o capital variável de Marx, foi sendo naturalmente ocupado pela máquina [concretação de tecnologia] o que, em termos práticos, fez com que o espaço do capital variável fosse gradualmente à medida que o sistema se modernizava e/ou se "desenvolvia", dando lugar ao capital fixo, levando ao esvaziamento e à descapitalização do conjunto da sociedade através da in-utilização e consequente empobrecimento de uma parte até importante, duplamente indispensável, dela.

Ou seja---e aqui voltamos à "questão" do orçamento: a partir do momento em que o investimento do que atrás chamo o "capital invisível" ou "capital sombra", isto é, o dinheiro dos cidadãos [os impostos que permitiam olear ou recapitalizar continuamente o mercado na forma de serviços sociais] deixa de ter retorno em emprego, parece evidente que uma condição tradicionalmente tida por essencial no contexto do "contrato social" começa a ser gravemente incumprido.

É verdade que não trabalhando, os indivíduos não capitalizam o Estado de modo a que este possa, por seu turno, "olear" o mercado mas isso, como é óbvio, não resolve problema algum porque essas pessoas existem e tem de haver para elas um lugar qualquer no interior do Estado moderno.

De facto, numa primeira fase o sistema pode pagar aos excluídos estruturais [ao capital variável que o modo de produção dispenbsa] um des-salário que corresponde à compra de um "lugar" não dentro mas já fora fora do próprio modo de produção.

O sistema oferece, pois, nestes casos um des-emprego.

Dentro de limitres toleráveis social e politicamente o des-emprego ou desemprego é um custo da produção de capital que está antecipadamente previsto e é economicamente suportável.

Deixa, porém, de sê-lo quando as quantidades e as qualidades de saber in-utilizam partes já numericamente disfuncionais e disfuncionantes da sociedade.

Fazendo dos indivíduos entidades in-úteis a montante [i.e. enquanto mão de obra] porém indispensáveis a jusante [ou seja, como mercado].

O fim parece evidente: ou o capital aceita renegociar a divisão social da riqueza, renegociar o contrato social existente [se não pode já financiar---ou melhor: usar o Estado social para gerir o processo de refinanciamento do mercado fazendo, desde logo, circular dinheiro proveniente dos impostos; se não pode já financiar, dizia, o des-emprego porque este atingiu níveis objectivamente ingeríveis, só lhe resta aceitar pôr em causa a propriedade, começando pelos lucros que ela gera] ou em alternativa é todo o sistema que se torna ingovernável e objectualmente im-possível.

Ora, a posição das Esquerdas hoje tem de passar pela percepção muito clara daquela dicotomia ou daquele 'dilema sistémico', digamos assim.

Ora, o que eu digo é, por outro lado, que o orçamento do estado poprtuguês assenta na ideia de que nada disto é facto e que é possível mantendo ingtocável o actual regime de propriedade do capital manter o sistema a funcionar.

Sem alteração, pois, do contrato social e até político.

Sucede que, a meu ver, a posição de Esquerda, que deve partir daqjuela ideia básica que acima refiro, só pode ser a de que havendo incumprimento do contrato social vigente [porque o dinheiro público deixou de render juros ou lucros na forma de emprego] não faz sentido agir como se tal incumprimento não se tivesse verificado já e fosse justo e fosse igualmente possível manter operativo o sistema exactamente como está.

Ou seja: mantê-lo a funcionar com o expediente de transformar ou "mutar" o capital invisível [os impostos sobre o trabalho e sobre quem trabalha] deixando de fazê-los passar pela própria figura do emprego e indo agora buscar indiscriminadamente dinheiro onde quer que ele esteja desde que não seja, como seria socialmente justo que fosse, à propriedade.

Renegociando a participação da propriedade no capital público pela simples razão de que é o projecto primário de replicar continuamente a propriedade que levou às actuais disfunções e desequilíbrios.

Não é, com efeito, "por haver trabalhadores" que há desemprego, que há crises e que o sistema deixa a prazo de poder recapitalizar-se com recurso à mediação do Estado dito 'social': é porque o capital "mutou" o saber em tecnologia e esta numa propriedade primariamente privada e por este meio conduziu à ruptura dos equilíbrios internos que garantiam a solidez objectual de todo o modelo.

Agora, este persiste em ir refinanciar-se onde já não há trabalho [onde há pensões, subsídios sociais, rendimentos mínimos e por aí adiante] ou onde o que é há só sendo intensivamente sobre-onerado pode ir ainda custeando o sistema [é claramente, queiramo-lo ou não, a teoria, a filosofia, que está implícita no orçamento] e em manter inalterável a participação do capital no custeio do sistema---e isto é obviamente político.

É política.

É preciso que percebamos muito claramente o seguinte: pode quem trabalha custear [e é isso o que tem acontecido] pagar o preço de algumas das disfunções mais básicas inevitavelmente geradas pelo paradigma capitalista: os trabalhadores por si sós não são factor nem causa de desemprego mas "compram" com os impostos que pagam, desde logo sobre o trabalho, para além das mercadorias que produzem [possibilitando, como mercado, que todo o sistema funcione] um lugar na sociedade para os não-empregados que não fizeram, todavia, coisa alguma para gerar.

Quando, todavia, passam eles mesmos para o campo dos desempregados; quando o desemprego alastra de forma inevitável por crescimento do espaço do capital fixo na produção e todo o sistema inclina perigosamente para um lado, qualquer posicionamento político [é manifestamente o caso do orçamento!] que parta do princípio que é tudo, na realidade, uma questão de quantidade [i.e. de aumentar os valores do capital invisível a fim de "comprar mais futuro" para um sistema que está, porém, como vimos e por tudo quanto vimos, na forma actual, ferido de morte] coloca-se obviamente numa posição da qual lhe é impossível "ver esse mesmo futuro", possivelmente, mesmo o futuro próximo, do sistema.

Como comecei por dizer a questão é política e a solução só pode sê-lo também.

E passa, a meu ver, por aquele ideia ou aquele princípio de que o papel da propriedade privada não é o de colocar-se «entre a realidade e a vida».

Na natureza [não é difícil demonstrá-lo!] as formas existentes de propriedade [os territórios de caça, desde logo] é ou são uma "variável funcionante" do processo ou processos específicos de possibilitação natural da vida, nunca uma constante externa. exógena e independente desse processo.

O limite natural das formas ecológicas de propriedade é essa capacidade para gerar modelos de uso entendidos como operativos e operantes no contexto da possibilitação contínua e ulterior de Vida.

O limite natural da propriedade é, pois, a sua utilicidade, a sua variabuilidade funcionante---a sua natureza funcionantemente infixa.

Na natureza, a força é um argumento e uma justificação de legitimidade relativamente às formas de propriedade reconhecidas.

Quando das formas naturais de vida se passa para as formas sociais é normal [de facto, é imprescindível!] que a inteligência e todo um sistema um código de valores éticos substitua a força da legitimiação das múltiplas formas, sempre potencialmente variáveis, funcional e funcionantemente infixas, de propriedade ou proprietação.

O que não é natural é que a propriedade tenha ganho, nessa mesma passagem, um estatuto completamente disfuncional de constante e de valor absoluto completamente independente e até adversário da ideia natural, convenientemente adaptada às novas exigências, aos novos padrões e aos novos valores de natureza social, civilizacional, etc. de possibilitação da vida.

A revolução burguesa de 89 em França trouxe para a História uma coisa que a História não perdeu, aliás, tempo a esquercer: a necessidade de justificar politicamente a prioedade.

Essa justificação política passava por uma justificação técnica: a nova classe possui capacidades e saberes que lhe permitem transformar mais eficientemente o real numa série de coisas, desde bens de consumo necessário a capital.

Como digo, porém, a História em breve esqueceria esse argumento que tornou a Revolução necessária, uma necesssidade [inclusive no plano filosófico, ou seja, como algo, um conceito, uma ideação, opostos ao de 'gratuito'] e hoje a propriedade está convertida em algo que, com o tal pretexto de gerar riqueza e empregos é virtualmente intocável, assumindo um papel objectivamente disfuncional em rerlação ao que assume originalmente na natureza.

Para finalizar: com tudo isto presente, parece indispensável concluir que qualquer orçamento realmente sustentável e politicamente defensável tem de começar logo por perceber que há um modelo de História que se aproxima aceleradamente do fim.

Mas isso nem sequer é dúvida---ou questão: a questão agora é antecipar o futuro, integrar nas propostas económicas e políticas imediatas pressupostos até aqui ainda susceptíveis de serem, senão ignorados, ao menos, comparativamente menos valorados.

A questão agora é encontear os novos modelos de habitar e protagonizar a História que hão-de inevitavelmente vir substituir os actuais não há-de tardar muito.

O orçamento pode e deve, em meu entender, constituir para as esquerdas que temos um teste importante para saber se estão ou não à altura da História que aí vem...


[Na imagem: retrato imaginário de Homero, o poeta cego d' "A Ilíada" e d' "A Odisseia" guiado pr um jovem]

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