sexta-feira, 5 de novembro de 2010

"Macunaíma, o 'Cinema Fauve' de Joaquim Pedro de Andrade"


"Macunaíma" de Joaquim Pedro de Andrade, cinema "pobre" brasileiro exibido recentemente no precioso ARTE é, visto de hoje, uma excitante [ainda que, em alguns desses casos, meramente virtual i.e. por antecipação e/ou absorção/integração pontual de um possível 'Zeitgeist' transversal aos diversos continentes e respectivas culturas cinematográficas e literárias mais do que por influência directa...]; visto de hoje, dizia, "Macunaíma" é, sobretudo, uma mistura de literatura pícara [a grande base conceptual sobre a qual assenta do ponto de vista da respectiva técnica específica todo o desenvolvimento narrativo do filme], romance [ou cinema?...] "de cordel" [dele se desprende, por vezes, com efeito, um cheirinho facilmente identificável e reconhecível a ópera cómica de António José da Silva]; de "narration à clef" sob muitos aspectos similar à perspectiva que, entre nós, José Gomes Ferreira, por exemplo, adoptou para, sucessivaneamente "encriptar" e revelar, denunciar a realidade política do seu tempo n' "As Aventuras de João Sem Medo"; de"zanny comedy" [um pouco no espírito, por exemplo, da que fez a glória dos irmãos Marx] e de teatro épico e/ou de rua "à Boal", por exemplo [sem esquecer o cinema de Ferreri e o de Pasolini ou mesmo, em certos gags como os que envolvem a obsessão das personagens com o dinheiro, a comédia neo-realista de Moniccelli, designadamente "I Soliti Ignotti" e antes "Guardia e Ladro"] com realismo etno-fantástico sul-americano e cinema político visto sempre da perspectiva sarcástica do absurdo [Ionesco, até hipoteticamente algum Beckett que a académica e crítica teatral Maria Eugénia Vasques concebia como representável a partir de um 'registo Laurel & Hardy', Bucha e Estica] com uns toques de Antonioni [há fragmentos e pequenas sequências do filme que fazem pensar no "cinema no vácuo" de "Blow Up", por exemplo---a sequência da guerrilheira, papel desempenhado por uma belíssima Dina Sfat, desde logo] do filme não estando ausente inclusive uma sugestão de estética "Laranja Mecânica" que a imagem que ilustra esta "entrada" [comparada com aquela que imediatamente a antecede] pode hipoteticamente ajudar a precisar um pouco e assim a compreender melhor.

Tal como a vejo, "Macunaíma" funciona no plano do respectivo conteúdo latente como uma sarcástica denúncia do terceiro-mundismo estrutural de uma sociedade que passou [literalmente, no caso do filme] através de um "passe de mágica", i.e. de um modo inconsistente que dispensou o lançamento de verdadeiras bases, sólidas e sustentáveis, nos planos económico, social e político de rural ["crioula", no filme] a "branca", de primitiva a urbana, de colonial a... endo-colonial; uma sociedade fortemente desigual [consistentemente "desigualizada", violenta, onde as elites revolucionárias se isolam---ou se... "insulam"---incapazes de interagir de forma orgânica, adequada e realmente coerente, realmente revolucionária, com as bases exploradas da pirâmide social com quem mantêm um "romance" sempre tragicamente interrompido porque sempre... naturalmente interrompível; onde o poder está nas mãos de uma máfia de caciques boçais poderosíssimos, herdeiros naturais da colonização e do colonialismo europeus e onde a única forma material de sobrevivência consiste para a maioria no recurso sistemático a um espírito "débrouillard" caracteristicamente espertalhão e forçadamente amoral que liga este mundo do caciquismo---e do "coronelismo"---tropicais e do subdesenvolvimento crónico---paradoxalmente utilizado como paradigma de... desenvolvimento---através de laços lógicos muito fortes de natureza económica, social e politicamente infra-estrutural àquele outro de onde emergiu, desde logo, a picaresca original---Macunaíma é, em última instância, o Lazarillo ou o Buscón de Quevedo renascidos em pleno sertão brasileiro].

O filme "é" Cinema Novo com "António das Mortes", "Como Era Gostoso o Meu Francês" ou "A Terra em Transe" mas é também, como digo, no plano da sua concepção enquanto entidade artística, cinematográfica---enquanto filme---um fecundíssimo e, por isso, sempre estimulante cruzamento ou "mélange" de registos e sugestões, volto a dizer: reais ou apenas possíveis; um [como lhe chamei "Cinema Fauve"] onde [à semelhança do que acontece, por exemplo, com Godard, Straub ou Oshima] se não lhe quisermos chamar "revolução", seguramente: a subversão começa no próprio objecto narrativo exactamente enquanto objecto narrativo, isto é, enquanto estrutura significante que sabiamernte, neste caso, utiliza as limitações políticas que o tentam cercear, exacta [e, repito, muito inteligente, muito esclarecidamente] para fornecer a toda a sociedade a que se destina o exemplo de, precisamente ao tomar com coragem a iniciativa de começar por se pôr a si mesmo em causa, humildade histórica e especificamente política de onde é necessário partir para que a mudança realmente sustentável, realmente crítica e, assim, possivelmente orgânica do mundo em redor possa ocorrer em moldes que lhe permitam, com um mínimo de reais probabilidades, poder aspirar ao sucesso final.

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