Se me perguntassem qual é, em meu entender, a característica dominante da "era civilizacional" que atravessamos, diria provavelmente que é o facto de nos termos, como país, transformado numa sociedade topicamente "descentral" e inorgânica a partir da qual deixou de ser objectivamente possível produzir uma História única comum a todos.
Sempre pensei, com efeito, que uma sociedade estruturalmente desigual como sempre foi a portuguesa; uma sociedade caracterizada por uma profunda desigualdade económica, social e política e gerando, naturalmente, doses maciças de agnosia entre as camadas ditas "inferiores" seria naturalmente (seria fatalmente!) incapaz de, a prazo, gerar não apenas uma História verdadeiramente orgânica (reconhecivelmente orgânica) como, sobretudo, a partir daí, de dar origem ou, no mínimo, integrar harmonicamente paradigmas de "civilizacionalidade" reconhecíveis e reconhecidos por todos.
É verdade que o fascismo garantiu, entre nós, níveis de organicidade aparente que (passe a redundância!) pareceram manter-se estáveis e operantes durante várias décadas.
A verdade, porém, é que o fascismo caíu e, quando ele caíu, pôs a descoberto um país 'objectiva e subjectivamente inexistente'---uma sociedade incapaz de agregar-se num corpo e, sobretudo, numa ideia desejavelmente consistentes e únicas.
Naturalmente únicas.
Espontaneamente consistentes.
Orgânicas ou a caminho de uma possível organicidade, portanto.
O fascismo, porém, como disse, logrou durante várias décadas iludir a impossibilidade de organicidade que nasce da desigualdade tornada hábito civilizacional e político.
Gerou algo que é essencial à organicidade consistente das sociedades: uma classe "sacerdotal" (professores, sacerdotes strictu sensu, as "elites" em geral incluindo por absurdo as que se opunham ao 'regime', etc.) que foi, por seu turno, capaz de recolher (algumas, por absurdo ou por reaccção, repito) um conjunto de características de natureza mais ou menos cultu(r)al comum e reprojectá-las (quase sempre à força e pela força, é verdade) sobre a "sua" própria sociedade, assegurando-lhe, desse modo, alguma razoável durabilidade e alguma considerável (se não consistência pelo menos) objectiva persistência.
Hoje é impossível que, entre nós, se gere uma classe sacerdotal do mesmo tipo e com as mesmas aptidões materiais para assegurar a sobrevivência de uma sociedade mental a partir da qual fosse possível criar o Portugal moderno que, é preciso reconhecê-lo corajosamente, permance por existir.
Independentemente dos valores (sociais, económicos, políticos, etc.) com que a preencheu o fascismo esteve até dado momento da sua própria História associado a uma "identicidade" que foi, depois, capaz de negociar socialmente com o conjunto da sociedade portuguesa.
É claro que todos quantos dispusemos do privilégio altamente questionável de ter vivido sob ele, conhecemos exactamente aquilo que, para a ditadura, significou "negociar"---desde logo, social e politicamente.
A verdade é que (descontando esse... detalhe "menor") o fascismo conseguiu gerar um conjunto de valores de ordem genericamente cultu(r)al que, uma vez "negociados", pois, com o conjunto da sociedade portuguesa de então, as suas, dele fascismo, instituições ficaram encarregadas de assegurar no concreto.
Bom ou mau, o fascismo teve, pois, um 'rosto civilizacional' que lhe foi possível ir conservando e continuamente reprojectando sobre o "seu" próprio social assegurando, desse modo, que uma certa História, pelo menos, seguia sendo possível durante algum (longo de várias décadas) tempo.
Não havia desigualdades, desde logo, económicas mas também sociais e, sobretudo, políticas durante o fascismo?
Não havia desigualdades: o fascismo é a própria desigualdade convertida em paradigma político e civilizacional estável e organizado.
Sistémico.
Mas a questão, aqui, passados estes anos todos sobre o fim da ditadura, já não é exactamente essa de denunciar a extrema e gélida crueldade económico-financeira, social e (obviamente) política do fascismo.
A questão é perceber como fascismo, exactamente ao contrário, sem resolver as agudas dissimetrias da sociedade portuguesa (parte da qual ficou, como se sabe... "retida na História"---onde, de resto, permanece ainda hoje mas enfim...---vários séculos atrás) as conseguiu artificialmente (pela força bruta da sua componente jurídica e da sua componente policial férrea e impiedosamente aplicadas sobre o conjunto da sociedade portuguesa da época) "contornar", nunca deixando que fossem, com um mínimo de consistência, projectadas para fora da "experiência pura e/ou absoluta" de si a fim de poderem ser reflectidas e convertidas "à la longue" num saber e/ou numa inteligência estável de si.
A verdade é que, repito, nunca a sociedade portuguesa terá podido ser orgânica: grandes massas populacionais ignorantes e miseráveis não são possíveis de gerar uma ideia minimamente clara e sólida de si e, consequentemente, integrar-se de forma espontânea e natural, num qualquer projecto global onde lhes esteja distribuído e assegurado qualquer papel realmente activo e determinante.
A minha própria tese de uma tanatopia ou pensar tanatópico nacional tenta ler contextualmente essa realidade: incapaz de ser mobilizada para ajudar a formar uma verdadeira sociedade, a "portugalidade mais baixa" refugia-se naturalmente na glorificação da in-acção da qual o modelo perfeito, ideal (ainda por cima "cristicamente induzido") é obviamente a Morte.
A morte vista à maneira crística e ressurreccional como um pressuposto ideal (iniciático) de felicidade civilizacional (e, por arrasto, também evidentemente política).
Um péssimo e disfuncionalíssimo (des) entendimento do que seja "liberdade" (a liberdade é uma teoria da realidade ou não é, pura e simplesmente: não existe histórica e politicamente) levou-nos, como sociedade, ultrapassado o fascismo, a perder (ou a não chegar a ganhar) essa percepção crucial do carácter objectivamente ciencial ou mesmo científico da liberdade.
Não somos hoje capazes de tornar-nos orgânicos por entendermos que as "leis da realidade" em geral não se aplicam à liberdade e que esta não obedece a imperativos de estrita (embora não estreita...) necessidade como qualquer ciência ou ciencialidade particular.
O nosso próprio atraso nos conduz nesse sentido: o atraso de que falo não é, com efeito, "apenas" económico: é económico mas é também (falo disto com maios detalhe noutro ponto destas notas quando me reporto especificamente à análise da questão do Conhecimento como propriedade, proto-capital e/ou matéria prima de capital) cognicional e intelectivo ou inteleccional.
Tendo-nos, como sociedade (e paradigma civilizacional) sido negado o acesso directo aos (a propriedade efectiva dos) "meios de produção social de Conhecimento", é fácil que do funcionamente preciso da realidade percamos final---e colectivmente---a noção.
Em termos globais, com um «povo» e uma classe média que desconhecem, pois, por completo como funciona, de facto, a realidade e largos sectores da população que o estádio de "desenvolvimento" do capitalismo deixou de conseguir envolver e mobilizar (deixou de ser capaz e, sobretudo, de ter necessidade de usar) e aos quais é, também por isso impossível envolver num projecto comum, tornou-se materialmente impossível definir também valores comuns minimamente reconhecíveis que seja possível negociar, primeiro, social e, em seguida, civilizacionalmente e que as instituições no concreto possam mediar.
É-nos, como sociedade, por exemplo, criar paradigmas comuns de "Cultura", por um lado e de "Educação", por outro.
Tradicionalmente (durante a ditadura, inclusive) a "Cultura" e a "Educação", a "Escola" dialogavam---e interagiam---(a seu modo, organicamente, volto a dizer) de forma contínua entre si.
Não estão, volto também a referir, em causa os conteúdos específicos, concretos, de uma e outra (e de todas) aquelas realidades.
Está em causa (aqui, pelo menos: neste prexciso contexto), sim, o modo como todas elas se articulavam organicamente entre si.
A sociedade portuguesa (forçada previamente a isso, é inteiramente verdade) encomendava à Educação que "fixasse" uma certa ideia, um certo paradigma de "Cultura" especificamente à História, isto é, possuía um padrão global comum de "Cultura" e negociava, por um lado, com a sociedade, por outro, com a Escola como sua "intérprete" e/ou mediadora material a sua retransmissão contínua na História.
Hoje, ninguém sabe verdadeiramente o que é "Cultura" (valores em geral incluídos): cada um tem a sua e, tendo-a pelas razões que apontei, por seu turno, des-articulado, des-integrado por inteiro de uma leitura organizada, sistémica, epistemológica (ou, como prefiro, em casos como este dizer: epistemeoformemente) necessária do real não é, depois, capaz de voltar a trazê-la harmoniosamente ao contacto com esse mesmo real no sentido de articular ambos de forma integrante e equilibrada, necessária e orgânica, entre si.
Ora, não possuindo nós, como sociedade uma Cultura nem sequer um projecto (que até podia ser como no caso da ditadura, por absurdo, por rejeição, por dialéctica interpelação e mesmo aberto questionamento) deixámos já, na prática e para todos os efeitos, de ter verdadeira utilidade social, civilizacional e política para a Educação e naturalmente para a Escola.
Na realidade (como titulava Saramago numa obra muito conhecida) deixámos como sociedade de saber "o que fazer com" a Escola ou com a "escolicidade" tópica que herdámos de um passado ainda recente.
Como sociedade inorgânica (que, repito, por razões históricas, sociais e políticas, civilizacionais, de desigualdade e subdesenvolvimento crónico nos tornámos) não temos condições objectivas nem subjectivas para continuar a fazer com que as instituições no concreto medeiem articuladamente programas teóricas de sociedade e até de História ou historicidade.
Um trajecto de inevitável agudização das contradições do capitalismo pós-industrial apenas pode (e já está, de resto, a fazê-lo!) agudizar as condições objectivas e subjectivas ou subjeccionais de desigualicidade económica, social e política que impedem (e agora, por quanto acabo de dizer, cada vez mais clara e, ao que tudo indica, mais irreversivelmente) as sociedades de encontrarem formas concretas de organicidade que expliquem e fundamentem as suas próprias intituições.
No caso português, um caso de doença crónica persistente e nunca verdadeiramente atalhada, servido em geral por uma politicagem invariavelmente medíocre, gulosa, não-raro rapace e (embora muitas vezes mesquinhamente) voraz, incompetente, incapaz (até por objectivas razões de sistema, como vimos) de construir uma sociedade que não seja apenas um paupérrimo pretexto e uma frágilissima desculpa para uma economia (uma economia que, por seu turno, que não vê nunca mais do que um ou dois "metros históricos, sociais, civilizacionais e políticos" à sua frente, a situação apresenta-se, a prazo, no mínimo gravíssima e particularmente inquietante...
[Na imagem: "Fernando, Pessoa, O Caso Mental Português", edição in-libris, fotografia extraída com a devida vénia de in-libris.pt ]
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