terça-feira, 20 de outubro de 2009

"Ainda a questão da Democracia"


Ainda antes de completar uma 'entrada' anterior deste "Diário" sugerida, entre outras coisas, por um artigo de Rui Tavares no "Público" envolvendo uma (evidente) necessidade de reajustar todo um conjunto de pontos das diversas vidas e realidades partidárias, designadamente das de Esquerda, à nova realidade política criada pelos mais recentes resultados eleitorais, retomo aqui o debate em torno da ideia cultu(r)al de Democracia.

É que também esta 'ideia' carece, do meu ponto de vista, de um certo reajustamento circunstancial senão a outra coisas qualquer, a si mesma uma vez que, em torno dela, começam logo por persistir, tal como eu vejo as coisas, alguns equívocos que perturbam (e muito seriamente!) a sua correcta implementação no concreto das diversas sociedades europeias contemporâneas.

Persiste, desde logo, um equívoco de base, em larga medida derivado da aceitação acrítica do que parece ser o conteúdo de um "mot d'esprit" churchilleano há muito proferidpo e que fala de democracia como sendo "o pior dos sistemas políticos---com excepção de todos os outros".

Primeira observação: a Democracia não é um sistema político.

O comunismo (considerando embora que existem distintas maneiras de entender a sua inmplementação concreta) é-o.

O fascismo, na sua essência e tal como eu o vejo, também.

A Democracia, não.

A Democracia é, sobretudo (em meu entender, pelo menos) um dispositivo móvel de segurança social e política aplicável, em tese, aos vários sistemas políticos existentes.

à maioria dos mesmos, em todo o caso.

É claro que há coisas que no universo da Democracia permanecem estáveis e que operam como requisitos absolutamente essenciais envolvendo aquele projecto de conserar os sistemas políticos (com a óbvia exclusão dos que à partida se confessam, de um modo ou de outro, inimigos de todo um conjunto de valores naturais de humanidade e humanismo) globalmente toleráveis, de um ponto de vista social e político.

Mehor dizendo: de um ponto de vista humano.

Da dignidade humana básica.

O acreditar-se (ou o aceitar-se acriticamente) que a Democracia é um sistema em si (definido, por exemplo, pela circunstância de existirem, numa dada sociedade, eleições ditas "livres", um parlamento e liberdade de expressão) tem, a meu ver, originado profundas e perversíssimas deformações na própria ideia de Democracia que têm, por seu turno, obviamente, contribuído para desacreditá-la e torná-la, por esse motivo, objecto de rejeição por muitos que a acham incapaz de assegurar a defesa daqueles valores de dignidade humanista os quais deviam, em todos os casos, norteá-la e nortear a sua implementação no concreto.

A Democracia, tal como eu a vejo, não é, pois, um sistema: é, como disse, um dispositivo político institucional (ou melhor: institucionalizável) móvel que resulta de uma permanente negociação social e política entre as diversas classes.

Não pode (nem deve!) obviamente dispensar as eleições e a figura do parlamento com poderes legislativos e de fiscalização do exercício do poder político mas está longe de se esgotar em qualquer um deles.

Ou até em ambos.

Devemos manter, dito o mesmo por outras palavras, um olhar dialéctico sobre o universo da Democracia.

Que não deixou de sê-lo por admitir, na Grécia clássica, a figura da escravatura ou, na Revolução Francesa, o anti-semitismo e o sexismo.

As formas de Democracia obtidas num caso e noutro resultaram historicamente de uma negociação social que não terminou evidentemente nas fórmulas encontradas para concretizar-se.

Pensar, como os "neo-churchilleanos" que, por muitas voltas que se dê à História e à Política, acabaremos sempre fatalmente "democratas" sem perceber exactamente que conceito exacto de Democracia é o ideal faz-nos (tem-nos seguramente feito) incorrer no risco de aceitar "qualquer coisa" como sendo a Democracia, desde que nela existam 'o tal parlamento' e 'as tais eleições livres' que, para muitos, são a Democracia.

Ora esta é básica e essencialmente, como disse, uma negociação e uma contratação que muito dificilmente acabarão, no imediato, pelo menos.

Como em qualquer negociação é preciso que as partes em presença---as classes sociais---se organizem (em partidos, claro mas, de igual modo---e a experiência ensina que os partidos tendem a não esgotar a capacidade de intervenção democrática e de auto-regeneração contínua da própria Democracia---em cooperativas e---a meu ver, idealmente---em "sindicatos cidadãos" capazes de dar seguimento àquela que foi a originalidade maior da Revolução Democrática portuguesa de '74: as "comissões de cidadãos").

Como em qualquer negociação, deve ser a própria realidade a redeterminar periodicamente os termos precisos do contrato social e político, sendo sempre entendido que estes podem (e devem!) historicamente ir mudando conforme as incidências precisas e específicas da realidade que está, como é sabido, em permanente mutação.

Aquilo que (pelo menos uma parte) dos 'neo-churchilleanos' espera da democracia, tal como eles a vêem é, porém, exactamente ao contrário disto (daí o peso posto na sugestão de "fatalidade" que nessa formulação obviamente sempre, de um modo ou de outro, a acompanha) que ela permaneça imóvel e completamente imutável (como uma espécie de perfeito fim da História "avant la lettre", i.e. "avant"... Fukuyama) servindo basicamente para justificar o "seu conteúdo em economia".

É, na realidade, aí que conduz aquela ideia de que a Democracia é, para todos os efeitos, uma espécie de "chão firme final da realidade histórica" que inevitavelmente se encontrará uma vez sucessivamente removidas as múltiplas camadas de detritos que lhe foram supostamente depositados em cima, de forma, aliás, comum e indiscriminada, pelos "outros" sistemas políticos que não são natural e saudavelmente... ela.

A Democracia, todavia, insisto, não é fim ou chão da História algum entretanto achado.

A Democracia é um conjunto de valores e/ou um espírito que procura expressão institucional precisa.

A Democracia é o confronto activo e permanente de pontos de vista sobre essa teoria vária de valores e a respectiva fixação em códigos políticos precisos que são, por definição, infixos e mutáveis.

A Democracia é, em suma, uma teoria da realidade que, em resultado precisamente desse estatuto epistemológico básico, partilha com as ciências formais de algumas características como, desde logo, essa de saber ir lendo, descodificando e representando especificamente o real à medida que ele, por sua vez, vai sofrendo mutações e/ou reajustamentos a si próprio.

Enquanto não percebermos como sociedade que, por um lado, a Democracia nunca está feita mas que temos de ser nós a i-la fazendo, activamente, no concreto e, por outro, que a Democracia é um conjunto ou teoria de pontos de vista puramente variáveis, humanos e históricos sobre a realidade e não a realidade ela mesma; enquanto, em suma, não aplicarmos um olhar epistemológica e cientificamente humilde sobre o real libertando o modo de apercebê-lo do preconceito e da manipulação nunca perceberemos, a meu ver, o que é a Democracia e impediremos (aí sim, fatalmente!) que ele chegue à nossa prática política concreta na única forma em que ela pode ser-nos a todos útil e positiva.

Vou dar, a seguir, dois exemplos recentes do caracter móvel, i.e. desejavelmente mutável, idealmente infixo (que é como quem diz: isento de pré-juízos e disfuncionais 'tabus') da Democracia que ilustram, a meu ver, aquele ponto de vista pessoal meu que diz que, entre achar representações históricas correctas e desejáveis de Democracia e qualquer outro tipo ou forma de negociação e contratação verdadeiramente livre entre partes não há (não deve haver!) qualquer diferença de substância.

Um desses exemplos diz respeito às famigeradas maiorias absolutas supostamente dispositivos estratégicos capazes de "arrumar a casa democrática" em determinados momentos alegadamente mais "complicados" da vida política.

Na realidade o que se passa é que as maiorias absolutas (que, aparentemente, resultariam de forma natural do próprio funcionamento normal da Democracia) constituem, de facto, não uma resultante quantitativa normal da dinâmica democrática mas, exactamente ao contrário, uma falácia de composição que, numa negociação séria da Democracia deveria já ter sido corrigida que é como quem diz: definitivamente eliminada, de forma pura e simples, do contrato social e político democrático, uma vez percebido o modo como ela, em vez de representar o máximo quantitativo de democracia opera, na realidade como a negação objectiva da mesma.

Costumam dizer os economistas que se um número xis de indivíduos numa sociedade fizer poupança, a ecomomia funciona bem exactamente porque há poupança e, com ela, consumo e, por conseguinte, produção, emprego, etc.

O modelo, porém, não pode crescer indefinidamente sem que uma subversão total desta lógica positiva tenha lugar a partir de um determinado ponto teórico de expansão do modelo: a partir desse "ponto teórico", com efeito, verifica-se uma falácia de composição que é como quem diz uma implosão nuclear do próprio modelo.

Toda a gente poupa e a economia pára porque não havendo consumo, deixa de haver produção e naturalmnte o emprego quebra, arrastando a sociedade em causa para um ciclo de paralisação tendencial que tem de ser politicamente rompido a fim de restabelecer a operacionalidade objectual de todo o sistema.

Ora, em Democracia outro tanto se passa com as maiorias absolutas: aquilo que, na essência, distingue as democracias das ditaduras é (dê-lhe a gente as voltas que der não há volta a dar a isto!...) o facto absolutamente essencial de inscrever nos códigos obrigatórios mais básicos e fundamentais (no código genético!) da própria Democracia a obrigatoriedade de fazer as deliberações a tomar passarem nuclearmente pela necessidade prévia incontornável de persuadir (ou seja, de apresentar argumentação que seja demonstrável e reconhecidamente melhor do que todas as outras) em lugar de, como acontece indiscriminadamente nas ditaduras e nas demomorfias onde podem naturalmente formar-se as tais maiorias absolutas, simples e expeditamente impor, tendo as opiniões e pontos de vista divergentes das do poder, ainda assim, "liberdade" para exprimir uns e ouros.

... Uma liberdade que passou, assim, com a caução do próprio aparelho institucional democrático, a ser não já, na realidade, de natureza genuinamente política mas, de facto, inessencialmente argumentativa---e moral.

Por outras palavras: é realmente difícil não ver como, da maioria relativa para a absoluta, se verificou, na prática, uma falácia de composição democrática que é urgente, como tantas vezes, tenho vindo a argumentar, inscrever numa próxima renegociação do contrato social e político a ser exigido pelas partidos de Esquerda mas, de forma, a meu ver, cumulativa e não menor (pelo contrário!) pelos "sindicatos cidadãos" cuja fomação deve constar dos programas da Esquerda realmente moderna onde quer que ela, hoje-por-hoje, se encontre.

O segundo exemplo prende-se com uma outra informação recente envolvendo crimes de guerra cometidos por Israel na Faixa de Gaza.

Israel é, hoje-por-hoje, um Estado moral e politicamente pária que pratica um regime de repelente apartheid sobre cuja natureza bárbara e insuportavelmente desumana já ninguém pode hoje ter a mínima dúvida, que assassina abertamente opositores e massacra regularmente civis com a compacência tácita do mundo inteiro, designadamente do "primeiro" desses mundos, do mundo dito comummente democrático.

Recentemente, um organismo das Nações Unidas trouxe a público a condenação desse País-fortaleza (que é, também, país-metástase através designadamente da atrevida política de colonização de que não prescinde com a cumplicidade implícita da administração norte-americana que, na região só actua, como se sabe, "com pinças" e depois de muito pressionada pela própria---desumana---realidade...)

Naturalmente, crime de guerra algum deveria deixar de dar origem a sanções sobre os respectivos perpetradores e, de facto, pôs-se, segundo a imprensa mundial, a hipótese de levaer a selvajaria cega israelita recente em Gaza ao Conselho de Segurança da O.N.U.

O problema...

O problema é que os Estados Unidos dispõem de um imoral direito de veto que lhes permite suspender quaidsquer deliberações nessa (como, de resto, em qualquer outra) matéria que lhes 'apeteça'...

Pelo que as vidas de centenas de civis brutalmente sacrificadas à estratégia do brutal e insensível expansionismo israelita têm, democraticamente, de ficar, assim, uma vez mais, por ressarcir encorajando, sempre democraticamente, novas exacções e novos crimes.

E, no entanto...

E, no entanto, estamos a falar de "democracias", de um dos tais regimes que, sendo o que é, é, ainda assim, o melhor de todos...

E até o é só que não visto como objecto final insusceptível de (volto a dizer: sempre contínua) reformulação mas, exactamente ao invés, como o tal contrato social e político a subscrever pelas sociedades humanas e que é essencial ajustar continuamente à realidade de modo a tornar a habitação desta por todos nós algo de realmente livre, efectivamente progressivo e sempre desejavelmente humanizado.

[Na imagem "O Sono da Razão" ["Reason Itself Often Slumbers"], colagem sobre fotografia, de Carlos Machado Acabado, republicada de http://umnaoalexandreonirico.blogspot.com]

Sem comentários: