segunda-feira, 19 de outubro de 2009

"Sobre um certo cinema português"


Eu aviso, desde já: o que vou dizer a seguir não é "simpático"...

Não é, de facto.

Num curto espaço de tempo, as circunstâncias (a voluntária 'errância' da minha prática cinéfila regular, hoje-por-hoje, muito caracteristicamente livre senão mesmo, muitas vezes, assumidamente... 'impressionista') possibilitaram-me ver, de seguida, três filmes portugueses.

Falo concretamente da participação de João Mário Grilo no que suponho ter constituído uma espécie de 'série' de películas sobre os quatro elementos (a João Mário Grilo coube a Terra, como---é impossível resistir à sugestão!...---em tempos, num contexto cultu(r)al e político muito distinto e muito particular, sucedeu a Dovjenko...) e, imediatamente a seguir, de "Mal Nascida" e "Noite Escura", ambos de João Canijo.

De Canijo, se falou muito como um nome "angular" de um 'novo cinema' português, comunicacionalmente mais "ágil" e "desempoeirado" (leia-se: mais 'comercial'...) do que muito do que, entre nós, se vinha (e, pelos vistos, vai...) fazendo---e isto, muito em especial, desde o relativo sucesso popular de "Sapatos Vermelhos", um filme que francamente me desiludiu precisamente pela sua (em meu entender, demasiado óbvia) tentativa de ser "fácil" através do projecto básico de ultrapassar um crónico "intelectualismo/formalismo" cinematográfico nacional contemporâneo e/ou, portanto, de "chegar directamente às pessoas", em geral---e, sobretudo, de chocar.
De conquistar ou aliciar pelo "choque".

Um singular programa "teórico" assente, a meu ver, numa espécie de intelectualismo "ao contrário" que incomodava exactamente pelo "programa" ostensivamente baseado na intenção de ser "desembaraçado" na linguagem como no próprio temário do qual partia, fingindo uma "coragem temática" que, na verdade, em inúmeros aspectos, pouco se distinguia, afinal, do sensacionalismo pura e simples: do "cinema-Correio da Manhã" ou "24 Horas", do "cinema notciário da TVI"...

Ora, em "Mal Nascida" (começando estas notas especificamene por este que é, no fundo, uma espécie de mito de Electra revisto e recontextualizado num sórdido e claustrofóbico lugar---Boticas---do Norte "profundo" de Portugal) e, à partida, um filme mais "sério" do que "Sapatos..."; em "Mal Nascida", dizia, o grande problema do filme (mau grado essa diferença de base) acaba, todavia, em última instância, por não distinguir daquele que era já o problema essencial desse mesmo "Sapatos..."

Como, de resto, é o de "Noite Escura" e do próprio citado filme de Mário Grilo.

Falo obviamente do resultado de uma (gritante!) inexistência de uma verdadeira 'indústria' do Cinema em Portugal.

Insisto: o grande--o capital---problema da maioria dos filmes que se fazem hoje entre nós reside, basicamente, na inexistência de um mercado cinematográfico autónomo que possibilitasse aos realizadores nacionais uma coisa, a meu ver, verdadeiramente essencial para o seu posível sucesso como cineastas: a possibilidade de se relacionarem de forma realmente natural com o Cinema (com o facto ou a circunstância de ir 'contar uma história com uma câmara' de filmar); a possibilidade de se relacionarem com a própria câmara, a "caneta e o papel do cineasta", de um modo a que um inglês pudesse apor sem reservas a ideia anglo-sanónica contida no cliché "take [it] altogether for granted".

Ou seja: um escritor (falo de um bom escritor: não de um simples "arquitecto textual" apto a confundir "engenharia de texto" com escrita---que os há e alguns, aliás, com enorme sucesso popular e até crítico...); um bom escritor, dizia, não sente a necessidade de (e, por isso, não ocupa o tempo e o espaço da própria escrita) com uma longa "meditação" sobre o papel em que escreve e a caneta com que o faz, por muito fascínio que o acto de escrever em abstracto comece por exercer sobre ele enquanto pessoa e enquanto escritor.

O papel e a caneta são, para ele, justamente algo que ele "takes for granted" e, por esse motivo, começa logo por não se lhe pôr como "problema"...

O grande escolho do cineasta entre nós reside, a meu ver, ao contrário, precisamente na imensa falta de intimidade que marca a sua relação básica do artista ou candidato a artista com o "meio", com o 'medium'; reside na raridade e na dificuldade intrínsecas dessa relação---e daí a "cerimónia" com que ele começa logo por abordar o seu "métier", criada que está, para ele, logo aí, uma "questão" que ele tem, antes de mais qualquer outra coisa, de resolver.

Há, com efeito, na "raridade" e na "especialidade" que subjaz comummente à relação "normal" do cineasta com o Cinema em Portugal uma espécie de atracção daquele por este e, ao mesmo tempo, de deformação "apórica" nessa atracção e, em geral, nessa relação que levam o primeiro, com frequência, de um modo ou de outro, a sentir, antes da própria vontade natural de filmar a necessidade de reflectir teoricamente sobre (e até implicitamente, no limite, de justificar) o Cinema que vai fazer antes mesmo, repito de efectivamente fazê-lo.

Em vez, inclusive, de fazê-lo...

Num certo sentido preciso, o Cinema português é forçado a reiniciar-se de modo praticamente integral e completo a cada novo filme e a cada novo cineasta.

É essse o "pecado original" de Mário Grilo na sua "re/leitura" do tema dos quatro elementos como é o de Canijo nos dois filmes citados.

"A Terra" é, sobretudo (é, pelo menos, assim que eu o vejo e sinto---e situo) uma reflexão plástica, fortemente intelectualizada, sobre a Beleza---ou, se assim se preferir dizer, sobre a falta dela, vista essa falta pelos olhos de alguém que ama (e muito louvavelmente, aliás!) respeita sua Arte muito mais do que um genuíno, 'objecto' cinematográfico, na verdadeira (e possivelmente integral) acepção da palavra.

É, como digo, uma reflexão profundamente intelectualizada e, em larga medida, teórica [um exercício, um estudo] sobre a linguagem cinematográfica.

...A que falta, porém, em meu entender, a "indústria", a "oficina", a "carpintaria", que permitiriam colocar o 'objecto' teórico conseguido completamente dentro do Cinema, digamos assim.

Dentro de uma categoria narrativa e conceptual, epistemológica, 'Cinema'.

O Cinema começa, com efeito, entre nós (em resultado precisamente da raridade e da distância que separa em geral a pessoa que filma do acto ou actos de filmar) sempre, de um modo ou de outro, ao contrário, digamos assim.

Na verdade, é sempre preciso, como digo, pensá-lo (quase?) integralmente antes de ser possivel que ele por fim comece---o que, muitas vezes, não chega sequer a acontecer...

Quando realizadores reconhecidamente... "industriais" como Hawks ou Ford (ou o confesso "artesão" Hitchcock, para citar apenas estes que são alguns dos meus cineastas "de cabeceira") abordam um filme eles já não sentem a necessidade de pensar teoricamente sobre Cinema porque, por trás deles (enormes génios que todos eles foram!) há já toda uma reflexão epistemológica feita pela própria indústria que vem imediatamente atrás de cada um deles, dispensando-os de "perderem" um tempo verdadeiramente precioso com ela, reflexão.

Isto, por um lado; popr outro, há, por exemplo, a "questão" do argumento e do "script".

A "cerimónia" que caracteriza o "rapport" tópico entre o criador cinematográfico português e a sua criação estende-se (e contamina) a "questão" do argumento: com todo o Cinema como linguagem praticamente "por fazer", o cineasta não "tem tempo" para se ocupar realmente da "estória", concebendo-a como uma componente verdadeiramente essencial do seu ofício.
Para ele, o essencial é, ainda e sempe, o problema teórico de contar uma "estória" em Cinema o que o leva a minimizar problemas "marginais" à sua Arte como esse do "argumento" que ele tende, naturalmente, a ver como "literatura", algo que vem sempre naturalmente depois da Forma do próprio Cinema como questão-em-si.

É verdade que se conta que o já citado Ford (o tal "homem que fazia westerns"...) abominava a "literatura" no cinema (e terá mesmo chegado a lançar pela janela de um iate onde viajava um "script" demasiado... "literário" que lhe apresentaram).

Mas Ford não abominava a "literatura" por lhe parecer inútil a "estória": abominava-a, precisamente ao contrário, porque sabia exactamente o que fazer com uma câmara de filmar e que não é nem ignorar nem, por outro lado, mimetizar servilmente a narrativa, o substracto "narrativo" ou "narracional" do Cinema: é convertê-la, traduzi-la, destrui-la e voltar a reconstitui-la num "medium" diferente, sobre o qual ele pensou já o suficiente para começar, de imediato, a trabalhar de modo autónomo e completamente 'natural' sem ter o problema da Episteme da "coisa" para resolver...

Ora, no caso português, os argumentos e os "scripts" (no caso dos três filmes que recentemente vi isso é perfeitamente evidente) "não há" nem verdadeiros "argumentos" nem "scripts" realmente cinematográficos.

"Mal Nascida" é a "estória" de uma vingança filial (eu diria: é, sobretudo, uma reflexão teórica e plástica sobre o tema de Electra feita por alguém que está francamente mais familiarizado com Sófocles do que possui uma relação de verdadeira e natural "cumplicidade" e intimidade com o Cinema enquanto tal).

É, inclusive, uma reflexão que provavelmente, tal como está recriada, caberia muito mais naturalmente no Teatro (ou mesmo numa "novela "realista"...) do que no Cinema.

Há algo de intrinsecamente "hamletiano" nas hesitações e nas aparentemente inumeráveis procrastinações da "heroína" de "Mal Nascida" que nunca a ser cinematográficamente natural e narrativamente verosímil.

Há palavras, há uma "estória" que não decorre de forma necessária e que condiciona a própria credibilidade e a consistência estruturais das personagens, acabando o filme (im) precisamente, em meu entender, com a "estória" "para um lado" e aquilo que no filme é realmente bom e cinematograficamente entusiasmante (o belíssimo rosto de Anabela Moreira, desde logo), "para outro"...

É, num certo sentido preciso, um filme basicamente "inorgânico", um exercício cheio de 'ideias' mas de ideias 'por cinematizar'---como são o de João Mário Grilo e o outro de Canijo.

Ao contrário de "Mal Nascida", "Noite Escura" está muito mais próximo de "Sapatos Vermelhos" na sua evidente busca de "modernidade" e (agressivísimo!) "realismo".

Infelizmente, porém, a mesma disfuncional (e sempre muito "cerimoniosa") relação do realizador com o Cinema leva-o logo, para começar, a aceitar filmar um argumento fraquíssimo e inconsistente que é, de resto, em parte seu.

A "estória" de "Noite Escura" (a "estória" de uma rapariguinha tonta e mimada---de um "lys dans la valée"---que quer "ser artista" e de um pai proxeneta que se vê forçado a vender a filha para a prostituição) mete mafia russa, bares, prostituição, linguagem crua---"realismo" ou "modernidade" e/ou "verismo", numa (em duas mas enfim...) palavras.

A verdade, porém, é que nenhuma daquelas personagens a quem compete, na prática e/ou no imediato, defender e "vender" a "estória" possui um mínimo de consistência e de verosimilhança que permita aos actores fazer, com um mínimo de sucesso, o seu trabalho.

A própria "estória" (e os diálogos, obviamente) não dão mesmo para mais.

Todo o filme (queiramo-lo ou não) se resume, em última análise, a um desfilar do que, no fundo, são apenas, de um modo ou de outro, "cheap tricks" (cores, flashes, sordidez, prostitutas, clientes, linguajar cru, cenas "canalhas", etc.---o tal desembaraçado "realismo" com que se procura evitar o "intelectualismo" que afasta, por sua vez, as audiências---em geral, iletradas e alimentadas quase exclusivamente a facilitismos e automatismos/truques de "telenovela"---do cinema português) em cujo contexto as personagens fazem, por completo, figura de meras sombras senão mesmo de completos estrangeiros ou intrusos.

A menina aspirante a "artista" é tonta demais até pelos padrões de alguém cujo projecto de vida passa centralmente por ser uma nova Ágata ou uma outra Mónica Sintra; o 'pai' é uma figura completamente desprovida de complexidade e/ou um mínimo de 'espessura narrativa' que anda "para ali" nunca parecendo saber---nem ele nem nós, aliás...---exactamente porquê e para quê; a 'mãe' tem uma excelente actriz a dar-lhe corpo e rosto (Rita Blanco) mas, como personagem, não possui sombra sequer de consistência (é tonta? É sabida? Como pode alguém "sabido", alguém do "milieu" que tão lestamente 'enrola', por exemplo, as prostitutas que, para ela, trabalham ser, por outro lado, tão idiota que não suspeita sequer do destino que o companheiro pretende dar à filha?)

O pai, como disse, vende a filha à mafia e nem um mínimo de complexidade de sentimentos parece realmente afligi-lo (a figura é linear, unidimensional, um verdadeiro---ou, pelo contrário, um falsíssimo?---tipo que Fernando Luís tenta desesperadamente, mas invariavelmente sem sucesso, "agarrar" ao longo de todo o filme).

Quanto a Beatriz Batarda---belíssima!---sumariza, afinal, múltiplas coisas no filme e do filme naquela frase absolutamente genial que, dirigida, a dado passo, à irmã, serve, afinal, para caracterizar as personagens, o argumento, o "script": "És mais estúpida que... um alguidar de plástico!..."

Eu acrescentaria: "E mais falsa, mais artificial, mais postiço e adulterado, também..."
Melhor: a frase em causa caracteriza todo isso mas infelizmente também quantos viram nesta "noite" tão "escura" muito mais do que uma tentativa, deconfortavelmente manipuladora e inábil, "pour [encore une fois...] épater le bourgeois" que, no fundo, nos obstinamos, como público de cinema, todos nós, muitas vezes, em ser...

[Na imagem: fotograma de "Mal Nascida" de João Canijo. Em cena, Anabela Moreira e Gonçalo Waddington]

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