sábado, 24 de outubro de 2009

"Ainda Saramago e o seu «Caim»"

Um imenso equívoco o frente-a-frente entre José Saramago e o padre Carreira das Neves.
Custa-me, sinceramente, a perceber como Saramago se deixou conduzir para "aquilo"!

Que diabo!

Saramago não é um teólogo nem aquilo que produz é teologia.

Com todo o respeito pelo próprio Saramago e pela sua liberdade de abordar a questão como lhe parecer que deve fazê-lo e nos termos que considerar dever fazê-lo, a questão levantada pelo seu "Caim" não é, nem de longe nem de perto, teológica: essa far-se-á nos seminários ou nos conclaves de bispos e gente dessa, em geral.

A questão levantada recentemente, a propósito do livro, por alguma igreja mais obstinadamene retrógrada e fixista é a do desejo (eu diria mesmo: do projecto tópico) de coagir e continuar a tutelar indevidamente a cultura, definindo designadamente as fronteiras da própria liberdade de interpretação e (mais importante ainda) de criação.

É o arrogar-se essa mesma igreja (e isso, ontem, ficou muito claro nas palavras de Carreira das Neves) o "direito" a fixar pontualmente as fronteiras dessa mesma liberdade (que não é, porém teológica: é cultu(r)al, é cívica, é intelectual, é civilizacional e é política mas não seguramente teológica!) e deixa, naturalmente e por definição, de sê-lo---liberdade---se tutelada.

Mais: que aceitando nós que ela permaneça localizadamente teológica, estamos também, de algum modo, a aceitar implicitamente que ela possua um fundamento para existir (é esse único domínio onde ela possui alguma possível substância de episteme), deixando completamente de perceber a integral extensão que a sua existência fora desse 'habitat epistemológico' natural limitado e específico pode pressupor---e, na realidade, pressupõe.

Eu (como supunha que acontecesse com Saramago) vejo na tradição cultural judaico-cristã em geral um património cultu(r)almente identitário comum e livre cuja integração na construção das nossas próprias identidades individuais e colectivas não pode, de modo algum, seguir estando mediada e mais ou menos tomisticamente determinada nos seus limites e na sua própria essência por uma entidade censória que medeia todo o processo de identitarização que também daí resulta, em que nos integramos e que, como sociedade ou sociedades, genericamnte protagonizamos.

A acção tuteladora--a indevida coacção!---da teologia sobre a Cultura e a liberdade de pensamento em geral (como valor intelectual e de Conhecimento básico) continua, a meu ver, na prática, a manifestar-se nesse permitir que a questão ora levantada permaneça teológica e seja consequentenente dirimida no âmbito exclusivo (ou prioritário) da teologia---onde Saramago, ainda por cima, não é confessadamente---nem tem de ser!---especialista.

Sem dúvida, na sua boa (na sua, excelente!) fé, Saramago deixou-se, em meu entender, afinal, "enrolar" numa teia (argumentativa, epistemológica, etc.) que, aliás, até estava a ser muito razoavelmente desmontada pelo próprio Saramago com a sua Obra e, de um modo geral, com a sua posição na Cultura.

É essa, pelo menos, a minha opinião.


[Na imagem: o diploma do Nobel atribuído a José Saramago]

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