terça-feira, 20 de outubro de 2009

"Uma Curta Reflexão Pessoal Sobre um Aspecto Crítico do Cinema"


Uma curta reflexão adicional sobre o tópico do Cinema Português: conforme digo noutro ponto deste "Diário", vi recentemente entre outros a versão de João Canijo da "Electra" de Sófocles intitulada, como se sabe, "Mal Nascida".

Na crítica que lhe faço, anoto a inexistência entre nós de um "background" industrial estável e consistente que dispensasse o realizador de converter o seu projecto muito mais num exercício de reflexão pessoal sobre o Cinema e sobre o modo de comunicar em Cinema (num projecto de, de um modo ou de outro, reinício e reinvenção estritamente pessoais do próprio Cinema) do que própria e realmente num filme.

É uma opinião pessoal, claro (como, de resto, tudo quanto aqui é dado a conhecer) mas é a minha opinião, sem dúvida.

Falo também, já agora, na minha crítica pessoal ao filme, numa espécie de subtil contaminação de um certo (persistente) cinema português pela (i) lógica de "novela", desde logo, na excessiva simplificação ou linearização das personagens (fenómeno infelizmente muito claro em "Noite Escura" de que também falo) e mesmo nesta "Mal Nascida" onde não seria difícil, a meu ver, identificá-lo.

Fenómeno aqui potenciado pela própria natureza específica das figuras que remetem para o universo arquetipal da tragédia grega onde, no fundo, vão buscar as motivações para os seus gestos, comportamentos e atitudes tópicas que, assim, fogem a uma contextualização idealmente mais próxima de nós, mais temporal e cultu(r)almente necessária---mais moderna.

Relativamente àquele fenómeno de linearização primária das personagens, ocorre-me comparar, por exemplo, a figura do tonto de "Mal Nascida", uma figura que comporta uma certa componente coral, muito errática e descontextual embora, de "comentário" implícito à acção do filme (cuja atmosfera de sombria fatalidade nunca completamente explicada em termos modernos, aliás, ele ecoa na música com que vai pontualmente sublinhando aquela mesma acção).

A verdade é que a figura erra por ali sem possuir, em momento algum, uma verdadeira inserção orgânica na acção do filme ou, como atrás digo, sem que, em momento algum, a sua necessidade como personagem orgânica fique completamente clara e indiscutivelmente estabelecida.

É cruel porque não tem aparentemente em conta as abissais diferenças a todos os níveis e sob todos os aspectos, mas quando comparamos a figura com o fabuloso "Mose" de "The Searchers" de Ford, feito pelo inesquecível Hank Worden percebemos como operam, afinal, a necessidade e a organicidade no Cinema.

"Mose", na realidade, é uma figura (para utilizar outro título de Ford) estruturalmente "expendable" no filme---que podia perfeitamente passar sem ele e permanecer, ainda assim, lógico e perfeitamente orgânico e consistente.

A verdade, porém, é que o talento de Ford soube contornar genialmente esse aspecto da "dispensabilidade" estrutural da figura, integrando-a perfeitamente numa narrativa onde ele surge como um sinal verdadeiramente arrebatador de humanidade que, sendo, como disse, possível, se revelaria, apesar disso, dificilmente aceitável, hoje-por-hoje, dispensar.

A organicidade das personagens está, assim, a meu ver, dependente (não diria propriamente "refém" mas diria, com certeza, "dependente") do génio de quem realiza e (lá está!) se encontra livre (além de possuir, obviamente, talento!) para contar uma "estória" sem precisar de ater-se autonomamente à reflexão mais ou menos teórica, descontextual, sobre a questão técnica (epistemológica) do como contá-la per se [sem sair do cinema de Ford, pense-se, ainda, no modo como ele reconta a "estória" dos Magos e do presépio em "Three Godfathers" sem parecer fazê-lo e sem interferir com a "actualidade" da própria narrativa que dessa sua revisão do mito resulta].

A indústria (de onde saíram referências máximas como Hawks, Hitchcock e o próprio Ford cujos nomes cito expressamente algures a propósito desta questão e que correspondem a génios que souberam já transmutar o ofício em Arte) forneceu, por sua vez, já ao realizador toda a reflexão epistemológica de que ele precisa e que lhe basta, por isso, simplesmente, pressupor e aplicar desse modo naturalmente implícito de cada vez que compõe um novo filme.

Mais: por vezes, é até essa componente pura (solidamente) 'industrial' que evita ao realizador a tentação fatal e os dissabores textuais de desunir-se e dispersar-se pela tal reflexão que acaba perversamente interpondo-se, de modo verdadeiramente fatal, repito, entre ele e o próprio Cinema.

Basta citar o "caso" Dassin que, enquanto trabalhou "peado" por imperativos "comerciais", compõs alguns objectos cinematográficos verdadeiramente notáveis, tendo-se, por outro lado, afundado por completo num disfuncional e de todo indesejável "intelectualismo" quando pôde, finalmente, "libertar-se", como ele dizia, daqueles...

[Na imagem: Hank Worden, "Ol' Mose" em "The Searchers" de Ford]

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