quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"O velho Cinório"


O "Cinório"!

Era um dos cinemas mais pelintras e... "aromáticos" de Lisboa, situado numa rua esconsíssima da Penha de França---uma que, entretanto, desapareceu comida pelas reformas urbanísticas que, para o bem e para o mal, mataram já não uma mas várias das cidades de Lisboa que eu ainda conheci.

Que, no caso, mataram dela toda uma idade---'idade' no sentido de "era": foi uma autêntica era, um... mesozóico ou um plioceno quaisquer da própria cidade como organismo que (volto a dizer: para o bem e para o mal) foi morrendo neste contínuo processo de renovação que nos leva, por vezes, a sentir-nos singularmente órfãos e estrangeiros dentro dela...

Voltando um pouco atrás, porém: quando digo "Cinório", falo do velho Cine-Oriente, que cometia a verdadeira proeza que era o ser ainda mais soez e mais sórdido do que o "Piolho", o Salão Lisboa, do Martim Moniz e o Arco-Iris, o... "Caim" do Éden Teatro...

O "Cinório" 'era' o Vale Escuro, a Lisboa canalha e "negra" do quase indigente proletariado português dos anos '50 e '60 assim como de um certo subproletariado já muito perto da marginalidade confessa, um e outro típicos do salazarismo---uma Lisboa que parecia directamente saída de "algum Camilo" mais sensível a Dumas (o Dumas de "Les Mohicans de Paris") ou Eugene Sue (o dos famosos "Mystères", dessa mesma Paris).

Ir lá (como ir, por exemplo, sobretudo à noite, ao Bairro Alto ou ao Intendente) era descer por momentos aos infernos de uma realidade económica, social e sociológica que a cidade "normal", a cidade "boa, limpa e respeitável" escondia tão púdica quanto avaramente de si própria---uma "peregrinatio ad loca infecta", como diria, noutro contexto, Sena (o clássico "slumming"...) que alguns de nós, como eu próprio, fazíamos, literalmente fascinados pelo espectáculo verdadeiramente hipnótico da degradação, do alcoolismo e da miséria em estado puro, algo de que as famílias "normais" não falavam senão raramente e com o temor muito delicadamente "burguês" que era "de rigor" nestes assuntos, algo que, sobretudo, estava completamente ausente da nossa experiência diária de estudantes razoavelmente bem vestidos, bem alimentados e bem-comportados.

Mas apenas razoavelmente em qualquer desses itens e no meio económico e social em que, nós, a "malta do Gil", em geral, nos deslocávamos---o meio dos filhos pequenos e médios quadros da função pública, sempre temerosa de represálias caso falasse do que "não devia" ou até mesmo se "visse" aquilo que era "proibido" (sobretudo publicamente) ver...
Maus (péssimos!) tempos esses em que a única coisa boa era a nossa inquieta e sempre, de um modo ou de outro, boquiaberta, fascinada, jugulada mas sempre febril e apaixonada juventude!...

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