quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Ainda José Saramago" e o recente «caso» do seu «Caim»"


Volto ainda uma vez a dizê-lo: eu leio o "Público".

Não 'sou leitor' do "Público": leio-o---o que está muito longe de ser exactamente a mesma coisa...

Leio-o porque desgraçadamente em Portugal não há mais nada.

Estamos, com efeito, a anos-luz dos gloriosos "outros tempos" (os do patético crepúsculo do salazarismo) qando, em Portugal (Marcello Caetano dixit...) havia jornais 'para todos os gostos e feitios', desde (imagine-se! Em plena ditadura que, à época, já pouco mais lograva ser do que "dita... mole" mas enfim!...) um "Diário de Lisboa" que era, segundo o trágico delfim de Salazar, nada menos do que "maoista" a um "Século" que (pasme-se!) seria, segundo ele... comunista.

Nada mau para ditadura, hã?...

Enfim...

Hoje não há jornais, nem comunistas nem maoistas nem o que quer que seja: não há jornais, ponto!
Resta o "Público" (ou ia---"tant bien que mal", aliás...---restando até há pouco, antes de se meter pelo meio daquela "coisa" dificilmente imaginável que foi ou é a disputa entre dois órgãos de soberania, um P.R. e um P.M. que perderam, de vez, por completo o respeito devido a si mesmos e ao País, tal como o jornal o perdeu, também ele, desta vez, talvez irregressivelmente, a si próprio).

Seja como for, sabendo lê-lo, é o único que não é, ou pura e simplesmente pífio e indecorosamente abjecto (intelectual, estética, politicamente abjecto)---ou abertamente venal.

A questão, repito, é saber lê-lo.

Perceber que não é para ser (nesse ponto e em pontos como esse, seguramente!) levado a sério (e consequentemente respeitado!) um jornal que vai reportar sobre uma guerra (a invasão do Líbano por Israel) a expensas de um dos contendores (um dos momentos mais baixos da já longa existência do jornal) e acha que isso em nada afecta a sua isenção---como se, por exemplo, em matéria futebolística que toda a gente percebe, um árbitro ir arbitrar um Benfica-Sporting com as despesas da viagem e da estadia em hotel integralmente pagas pelo visitante fosse um pormenor de somenos na credibilidade da instituição arbitral e da própria indústria futebolística...

... Ou que ter uma senhora que é (diz ela) "investigadora em assuntos judaicos" e membro (suponho) da comunidade israelita em Portugal por praticamente único "analista" e porta-voz da questão palestiniana fosse a coisa mais natural (e intelectual e politicamente) mais séria e idónea deste mundo...

Repito, porém (voltando de passo---e que me perdoem os "descrentes" e os "agnósticos" na matéria...---ao simile futebolístico) que se, mutatis mutandis, esquecermos "os quatro ou cinco penalties que ficaram por assinalar" assim como "a expulsão que devia ter sido e não foi", o árbitro, como diz "o outro", até nem esteve mal...

Aqui será qualquer coisa como: se fecharmos momentaneamente os olhos às recorrentes lucubrações do 'vira-casacas' que já correu as capelinhas económicas e políticas todas ou praticamente todas e que veio aterrar "de cátedra" no jornal---onde continua, aliás, laboriosamente a tecer as malhas que hão-de seguramente levá-lo daí a mais uma pingue sinecura qualquer, na "Europa" ou fora dela; o cacique partidário temporariamente afastado do 'lugar de honra' à mesa dos interesses e que ali encontra sempre "habitat natural" para os seus próprios não-tão-subtis-quanto-isso jogos pessoais de poder; se exceptuarmos as diversas "encomendas" (em regra, muito mal-disfarçadas de "análise objectiva") dos interesses obsessiva (à vezes, mesmo, histericamente!) "eurocratas" que o jornal, pelo seu próprio estatuto de "produto eminentemente comercial" entre produtos colocados no mercado pelo grupo económico-financeiro de que é propriedade coloca naturalmente no centro da sua estratégia editorial; se excepturarmos tudo isso, dizia, fica um jornal cuja leitura, ao contrário dos "outros", não envergonha irremediavelmente quem a ela procede, respeitados os devidos procedimentos "de segurança", pois.

Ora, é a esta luz (ou relativa falta dela) que deve ser lido, a meu ver, o texto que Miguel Gaspar, um jornalista cujos textos costumo ler com algum interesse e respeito, publica na edição de hoje, sobre "O Deus de Saramago".

Presumo que Miguel Gaspar tenha já lido a obra---eu ainda não.

Tenciono lê-la muito em breve (tenho-a reservada num livreiro da capital longe da qual me encontro) mas ainda, repito, não o fiz.

Há um princípio que me interessa, porém, aqui, desde já, enunciar---e debater nas sua múltiplas implicações: o direito de qualquer cidadão, escritor ou não, possuir um ponto de vista livremente exprimível sobre a realidade que o rodeia.

Num certo sentido cívico e intelectual preciso, o dever de possui-lo.

E espanta (incomoda, perturba, preocupa e assusta até) que esse direito que, no caso da Bíblia, foi dificilmente assegurado, como se sabe, com a Reforma protestante (ela própria um acto de conquista intelectual e política no sentido preciso em que configura objectivamente o reconhecimento generalizado do direito de cada um ao acesso directo às fontes de Conhecimento e o de sobre o real possuir, em consequência, um ponto de vista pessoal, não mediado por uma autoridade ou tutela "superior", perspectiva que está na base do próprio progresso científico em geral); espanta, incomoda, perturba---e assusta, preocupa, até---dizia, que possamos hoje constatar (e não ver referido na análise perfeitamente "significada" de Miguel Gaspar) em pleno século XXI defendido, às vezes de forma aberta, expressa, como que o "direito" pré-reformista, tomista, medieval, da igreja institucional vedar autoritariamente o acesso das pessoas às fontes de Conhecimento, invocando sabe Deus que anátemas e mobilizando, agitando, sabe o mesmo Deus, que fantasmas e medos individuais e colectivos.

Assusta ver como a igreja que pretendia em nome de uma "autoridade epistemológica" brutal, inargumentável e arbitrária, queimar Galileu exactamente porque viu sozinho (ele, Copérnico, mais tarde Newton) aquilo que a igreja inteira não soube (e não queria deixar) ver porque antes de ver lhe interessava impor um modo universal e organizado de previamente não ver; que queimou mesmo António José da Silva; que pôs num tenebroso Index (que a meio do século XX ainda vigorava---ignoro se foi, entretanto, revogado) "omnes fabulae amatoriae", diz o texto do Index, de Balzac mas também indiscriminadamente muito do labor intelectual e/ou artístico de Montaigne, Rabelais, Descartes, Diderot, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Marivaux, Kant, Lamartine, Michelet, Stern, Stendhal, de Musset, Madame de Stael, Choderlos de Laclos, Flaubert, Victor Hugo, Mérimée, Maupassant, Bergson, Robert Louis Stevenson (um dos autores que encantaram a minha infância com coisas como "Treasure Island" ou "Black Arrow". Pois, nem este escapou!), Arnold Bennett, Samuel Butler, Tolstoi, Tchekov, Thoreau, Turgeniev, Mark Twain, Villiers de l'Isle-Adam, H.G.Wells, Theophile Gautier, Jean Cocteau, André Gide, Galsworthy, Dostoievski, Joyce, Pierre Louys, Pierre MacOrlan, Proust, Marcel Schwob e por aí adiante [e que "companhia" todos eles são para Saramago, ham?...]

Um Index ao qual tão-pouco um escritor (na realidade, dois, escrevendo sob pseudónimo) popular como J.H. Rosny escapa!...

E de onde, como escrevi, consta, por exemplo, um Tolstoi censória e algo equivocamente descrito como alguém que manifesta "comiseração por gente depravada" (!) e que (e atente-se bem nisto!) "como todos os escritores da sua raça" (sic) "à boa maneira eslava" (sic) inclui nas suas obras, mesmo nas que "se podem ler com reservas" "pormenores talvez (e este "talvez" é, de facto, uma delícia!...) repreensíveis".

Ou seja, em suma: pela igreja não haveria toda uma parte absolutamente determinante e capital da Literatura Universal nem um acervo de Autores absolutamente referenciais e literalmente imprescindíveis no contexto da Cultura Ocidental de Balzac a Joyce ou, por outro exemplo, de Rabelais a Proust (redutora e miopemente descrito como uma espécie de "herbanário" ou "herbalista"---"herborisateur"---humano", em cuja obra "se alardeia, em diversas páginas, a lubricidade humana mais primária"...)

A Filosofia perderia parte substantiva de Kant ("A Crítica da Razão Pura") e o Pensamento Universal teria se haver sem um Condorcet (designadamente sem o seu "Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano"), de um Giordano Bruno ou de um Descartes (este praticamente todo) sem contar com um David Hume (também deste a "opera omnia") e/ou de um Bergson o "Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência" e " Matéria e Memória".

Mas, sobretudo [e é isso que eu censuro frontalmente no texto de Miguel Gaspar que opta por desancar um Autor, José Saramago, que, queiramo-lo ou não e até, num certo sentido, "malgré lui", no "caso" presente, se situa "do outro lado" de um (não) pensar persistentemente empobrecedor relativamente a uma sempre desejável 'inteligência individual livre da realidade' e consistentemente esvaziador da própria Liberdade como valor básico e essencial de Inteligência e de Cultura---um (não) pensar segundo o qual aquela mesma Cultura Ocidental (a sua Literatura, a sua Arte, a sua Filosofia) e especificamente o pensamento científico, a Ciência, seriam, hoje seguramente ("to say the least"...) muito diferentes do que, apesar de tudo, são.

É que o que está em causa não é se o "Deus de Saramago" é 'isto' ou 'aquilo' ou se esse mesmo Saramago é "contra a globalização" ou (mais "grave" ainda!) se ele é um persistente "comunista" que, apesar do constante labor das habituais "sereias", não "há meio" de abjurar como "os outros": o que está em causa é, ao contrário do que defende o jornalista, o direito inalienável e não legitimamente censurável de Saramago (e o meu e o de Miguel Gaspar e o de todos nós) ter livremente o seu próprio Deus---aquele que a inteligência e a sensibilidade individuais---o direito, repito: inalienável, à liberdade de consciência e à incondicionada e não, de qualquer outro modo, 'tutelada' expressão de pensamento---permite ou possibilita---faz com que---cada um possa legítima e livremente (não) ter.

O direito (ou o dever) numa única palavra, de estar, afinal, do lado certo do Progresso, da Liberdade e da Inteligência...

1 comentário:

Gonçalo disse...

Mas ninguém proibiu o Saramago de escrever o livro.Não foi o Saramago que começou com a polémica criticando o deus da Bíblia? Eu acho que foi ele que começou por querer impôr o seu ponto de vista como verdade absoluta, julgo que ele nunca disse que era a sua opinião, quis fazer dela uma verdade incontestada.Repugnou-me muito mais o episódio do livro em Braga, aí sim houveram pressões por parte de membros da Igreja daquela zona para que o livro saísse da exposição, foi feita uma queixa às autoridades para que apreendessem a obra.Neste caso o que me pareceu foi que Saramago escreveu livremente o livro e depois quis além de publicitá-lo (está no seu direito), impôr a sua opinião e a sua específica interpretação que fez da Bíblia.Persistem no nosso país e no resto do mundo situações muito mais graves de intolerância perante o conhecimento, porque será que José Saramago não faz o mesmo género de críticas ao Corão? Não é no mundo islâmico que há situações muito mais graves de intolerância? Aí a obra era pura e simplesmente proibida.