terça-feira, 13 de outubro de 2009

"«Ar-Visão» de Kafka, uma «leitura/ção» pessoal" [T.i.P., text in Progress]

Uma ideia que, como professor (de português, sobretudo, por razões óbvias) vi, com muita frequência, surgir na minha prática docente dizia directamente respeito à incomodidade sentida por muitas pessoas relativamente à questão da "compreensão" de um texto (ou, no caso da pequena obra que imediatamente se segue e da qual, passo em seguida, a propor uma "explicação" ou, melhor, uma---possível---"chave) de uma "textualidade" poéticos, um e outro.
Há, com efeito, enormes equívocos em torno da ideia ou ideias de "Conhecimento" poético.
Para ajudar a desfazer alguns desses equívcos começo logo por propor que eliminemos do nosso léxico analítico e crítico assim como da nossa semântica exegética, de um modo mais lato, a palavra "conhecimento".
Em alternativa, proponho que lhe prefiramos, conforme os contextos, modulações e/ou flexões do vocábulo propositadamente alternativo "cognição".
Aquilo que a Poesia nos dá, pois, são, sobretudo, cognições e, partindo para um ponto de vista mais genérico e abstracto ainda, toda uma cognicionalidade (envolvendo os outros, a realidade em geral e a nós mesmos de uma forma particular e, no limite, ideal: nós mesmos na interrelação dialéctica com tudo 'isso', nós mesmos como resultado em larga medida daquilo que nos tornamos a partir dessa mesma relação); uma cognicionalidade, pois, que partindo do texto poético vai, gradativamente, dando origem a uma espécie de "ciencialidade" e "saber" autónomos, paralelos e, sobretudo, complementadores do 'saber objectual', i.e. concretamente demonstrável, próprio da "ciências" genuínas, digamos assim.
Determinado isto, será, creio eu, mais fácil perceber que "leiturar" um texto ou uma textualidade como aquela que imediatamente se segue tem necessariamengte de constituir algo de essencialmente distinto de "ler", num certo sentido, mais simplesmente um teorema de Geometria ou uma qualquer das muitas "leis" que constituem o conhecimento Físico e/ou Químico.
"Leiturar", pois, um texto poético é, em larga medida, achar nele a figura segundo a qal ele (recorrendo, aqui, a uma imagem das ciências concretas, a geologia) como ele, por debaixo da superfície, "cristaliza" e estabiliza num "objecto-em-si", digamos assim.
No caso do texto de Kafka, intitulado, na versão proposta por Manuel João Gomes, "Ar-Visão", eu diria que os ângulos da imediatamente obscura "geometria sémica" do texto se acham nas ideias de "braço", "eu" e "homem".
O braço é obviamente o elemento desencadeador da "acção" ou "acticidade" poética(s).
Tal como o texto nos chega, com título e tudo (nunca é demais sublinhar esta questão capital da fiabilidade objectual, material, da versão portuguesa relativamente ao... "conhecimento" que, depois da "leituração" do texto, ficamos a fazer de Kafka) o texto vem, diria eu, deliberadamente desprovido de uma interpretação que idealmente deveria começar no título.
Ora, neste caso, aquilo que o título contém é muito menos uma primeiríssima "chave" do que se lhe segue do que um mero "relatório" do meio onde a "acção poética" decorre: no ar.
É uma "visão" (aqui há, admissivelmente, algo de talvez "interpretativo": "visão" oposto de "acontecimento real" ou "visão" no sentido de algo que o eu poético pretende, cripticamente, projectar e, por conseguinte, afastar de si, recusar a si---de que ele pretende libertar-se?); é, dizia, pois, uma "visão" (num destes sentidos possíveis) que decorre "no ar".
Em tempos, tive ocasião de traduzir para português um texto dramático de Joe Penhall intitulado, no original, "Blue/Orange", dele construindo uma versão que, por razões que desconheço, nnca viria a ser encenada.
Sê-lo-ia, sim, uma outra que vi representada como José Pedro Gomes num dos papéis, intitulada "Laranja Azul".
A minha nunca representada versão intitulava-se, essa, "Azul/Laranja".
Sem pretender, como é evidente, pôr minimamente em causa o título da versão realmente encenada e representada (que me pareceu, de resto, muito eficiente como texto em si para ser dito) pretendo, sim, justificar as razões por que preferi que, em português, a peça se chamasse "Azul/Laranja".
A minha intenção era (valorizando especificamente a barra entre os dois termos constante do título original) evidenciar logo nele o elemento dissociacional, esquizóide, des-integrativo dado por esse modo (chamemos-lhe) "barrado" de separar em vez de ligar o adjectivo e o nome em inglês.
Ora, voltando concretamente a ele, eu não sei como se chamou o texto de Kafka no seu original mas acredito que, a verificar-se nele, a "barragem" dos vocábulos que o compõem, o propósito do seu autor pode ter sido exactamente esse de "neutralizar" e, ao mesmo tempo, "cortar os laços" que o ligam à "acticidade poética" constante do seu escrito criando assim subliminarmente a ideia/sugestão da "ferida", do "corte", da "dor", de dissociação esquizóide, por um lado, ao mesmo tempo que insinua no próprio olhar que lança, sobre uma determinada experiência interior descrita em código, um distanciamento, uma espécie de "barreira simbólica" ou "simbológica" projectiva de impessoalização que diz seguramente algo---a ser correcta a nossa interpretação---sobre o modo como ele apercebe e integra uma realidade que, a um tempo, o atrai e ocupa (ou não seria "tema" do texto) mas, de igual modo (na "leituração" que pessoalmente do texto faço) repele.
Assusta.
Este, pois, em tese, o pano de fundo genérico da "acção" poética.
Vem, em seguida, esta propriamente dita.
Inicia-se ela com uma invocação que, a mim pessoalmente, sugere que o texto estava (como dizer?) justamente à espera que "chegássemos" para iniciar-se.
Tratar-se-á de um texto... "exibicionista"?
De uma "encenação" concebida a pensar em nós?
A ser verdade, a primeira cautela a ter na abordagem crítica do poema é obviamente começar por suspeitar dele?
Não é, com efeito, nesse caso, rigorosamente uma "confisão" (não imediata e não linearmente) mas um "sinal" ou elaborada "elicitação" que é preciso "descodificar".
[Há um vocábulo inglês de que gosto especialmente para dar esta ideia de "descodificar" um texto que pretende dele não tenhamos uma ideia demasiado clara à partida que é o termo "to crack" ou "to crack open" que não sei, francamente, como verter com verdadeiro sucesso em português.
Fiquemo-nos, pois, por aquele "descodificar", "desencriptar"]
Há, no texto, então, uma "lâmpada" que não brilha mas fala (e que bale) um braço (cujo "som" incomoda, perturba a "acção" poética---tratar-se-á da "luz" da "racionalidade", i.e. da pressão inquietante da Verdade---da verdade interior---para emergir num plano que deve, pelo contrário, permanecer ambíguo, confortavelmente "escondido" como está no universo, por sua vez, tranquilizadoramente "simbológico" e distanciador/ocultador da Poesia?).
Seja como for, "falava" e deve agora "calar-se" para que a "acção poética" possa ter lugar.
Esteve em tempos entre nós, a convite da "Comuna" e a propósito da celebração do centenário de Beckett, uma académica britânica, Julie Campbell, que apresentou uma interessantíssima tese envolvendo a ideia de "dark comedy" no criador de "Godot".
Com base nessa ideia de uma "comédia sombria" em Beckett, elaborei eu próprio um conceito autónomo baseado no estudo de alguns aspectos específicos da opus beckettiana: o de "comédia ontológica", conceito esse que fica particularmente claro na peça que, precisamente para a "Comuna" e para a encenação de João Mota eu mesmo tive ocasião de verter para o nosso idioma "All That Fall" uma peça radiofónica.
Aquilo que, a meu ver, permite substanciar, na essência, essa "comédia ontológica" é essa espécie de "achatamento ôntico" aí deliberadamente levado a cabo por Beckett a partir da matéria fónica do texto, no qual sons nimais, minerais e (muito supostamente) "humanos" se fundem numa espécie de caos cacofónico que os nivela a todos por igual, i.e. indiscriminadamente, numa orquestração global deliberadamente dissonante e grotesca, caracteristicamente amarga, sardónica (muito beckettiana, pois) que, a meu ver, constituía, aliás, a versão sonora dos rituais de mineralização física (de que "Happy Days" é o caso paradigmático mas de que "All That Fall" fornece igualmente um exemplo reconhecível, desde logo, no toponímico "Boghill", o lugar onde a acção da peça decorre) (*).
Bom, recordo agora essa circunstância a propósito deste texto de Kafka por entender quer é admissível que haja nele algo de essencialmente análogo.
Kafka é, de resto, como se sabe, desde logo, com o absolutamente incontornável "Die Verwandlung/A Metamorfose" um dos pilares cultu(r)ais desta visão desumanizadora (in/essencialmente "debasing") do humano, aqui simbolicamente comparado a um insecto---algo que o próprio Beckett recriará, aliás, em "Acto Sem Palavras" (magnificamente encenado, numa versão absolutamente notável, arrepiante, em tempos, pelo Cendrev num trabalho fabuloso de José Russo) e que Ionesco, por seu turno, "citará" em "Rhinocéros".
Aqui, re/encontramos a natureza em caos com os diversos "reinos" fundindo-se e misturando-se num ritual de desessencialização na mesma (possível) linha de que tenho vindo a falar: a luz que "fala" e "bale" e que implicitamente deixa supor uma espécie de indiferencialidade grotesca entre as coisas, os animais---e as pessoas.
Ou seja: "falar" deixa, em tese, de permitir distinguir estas últimas do resto do conjunto das formas de existencialidade circundante---tal como em Beckett, o carro que guincha, a galinha que cacareja, a bengala que "crepita" se fundem na tal espécie de concerto indiferenciado de sonordades desprovidas de uma essencialidade ontológica específica, própria que permita assegurar-nos de que o real permanece estável e provido de "sentido" igualmente estável e efectivamente consistente com a ideia que dele tradicionalmente possuímos.

Sem comentários: