Não nego (e por que haveria de fazê-lo?!) que os meus interesses em matéria de expressão artística, designadamente literatura e cinema, são tudo menos limitados.
Desde muito jovem que adoptei, com efeito, a prática corrente de ler, por exemplo, tanto Camilo (li "As Novelas do Minho" no liceu e, desde aí, frequento a obra do seu autor com alguma periódica regularidade) como o (para mim, genial) Chandler (que, nesse mesmo período de liceu começou por escandalizar---julgo já tê-lo aqui recordado---um conjunto de professores que me ouviram publicamente admitir a minha, já então profunda e emocionada, admiração pelo autor de "The Long Good-bye").
Ora, num plano literariamente distinto deste mas, de igual modo, merecedora de uma atenção que, por mais de um motivo, aliás, lhe não recuso, está Patricia Highsmith, a criadora da personagem de "Tom Ripley" a que Alain Delon (em "Plein Soleil" de René Clement) ou Matt Damon (em "The Talented Mr. Ripley" de Anthony Minghella) conferiram rostos---para mim, pelo menos...---incontornáveis e até, a seu modo, um e outro, definitivos.
Este "Ripley" regressaria, aliás, ao cinema ainda com reconhecível garbo, com o rosto expressivíssimo de John Malkovitch em "Ripley's Game", dirigido por Liliana Cavani em 2002 e, posteriormente, com o facies de Barry Pepper numa globalmente vulgar adaptação de "Ripley Under Ground", de 1970, realizada em 2005 por Roger Spottiswood).
Highsmith, a criadora da personagem, vale claramente pela excelente escritora que é mas vale, também, pelo sentido social que, subliminar mas ainda assim reconhecivelmente, confere ao seu "herói".
"Tom Ripley" é, com efeito, uma espécie de arrivista amoral eternamente fascinado pelo mundo "glossy" dos ricos que vê desfilar diante de si, um homem que tudo sacrifica (a começar pela própria dignidade e auto-respeito) ao sonho de enriquecer também e/ou (o que não é exactamente a mesma coisa...) entrar, ainda assim, nesse mundo de luxos que, visto por dentro, não se revela, todavia, afinal, assim tão perfeito quanto isso (também aí há, de resto, uma lição a tirar da leitura da obra de Highsmith...)
Ao contrário do que sucedia, por exemplo, com Agatha Christie, a obra da autora de "The American Friend" (adaptado como é sabido, também ele, ao cinema por Wim Wenders) não é apenas e só um produto gratuito de consumo exclusivamente lúdico e mais ou menos "intelectualmente desportivo", digamos assim, isto é, uma espécie de "quiz" de suplemento dominical alargado à dimensão física da ficcção.
Ela possui, de facto, um olhar atento sobre um mundo de onde a ética anda em larga medida ausente, falando-nos de uma realidade social... "pós-moral" que, afinal, vem a ser, queiramo-lo ou não, a nossa própria realidade, aquela em que, hoje-por-hoje, somos forçados, como indivíduos e como sociedade, a mover-nos regularmente.
Ao contrário, por outro lado, de Ruth Rendell (que é a cronista de uma certa "old England" em regra tranquilizadoramente rural, pontualmente posta em causa por um ou outro inimigo, inteiramente marginal a esse espírito de serena e reconfortante ruralidade) Highsmith fala-nos---sobretudo, na figura deste "Ripley"---de uma Inglaterra que foi gradualmente perdendo os valores éticos e de civilização que havia trazido da (e consolidado na) 2ª Guerra Mundial e aos quais se associava, aliás, indissocialmente a 'silhueta ideológica e institucional' do 'Labour' e, em termos mais latos, a figura civilizacional e política do Estado Social---do exemplar Estado Social britânico pré-thatcherista, hoje, aliás, como se sabe, praticamente extinto.
Aliás, os livros dos quais "Tom Ripley" é o protagonista são, também de algum modo, especificamente sobre isso, sobre a emergência da "pós-modernidade social" integral (a sociedade inorgânica e o neo-liberalismo funcional "à la Major", "à la Thatcher" e, depois, naturalmente, "à la Blair" onde a ideia da aquisição do poder e do enriquecimento, um e outro a qualquer preço, substituíu já definitivamente a velha ética social, ao menos teórica, herdada, como disse, designadamente da geração que sofreu a "blitz" e que integrou, por meio dessa experiência histórica e pessoal limite, o espírito de fortíssima coesão nacional e especificamente social que desse trágico esforço de sobrevivência individual resultou e que potenciou, como poucas outras coisas saberiam fazer, uma percepção durável de unidade nacional, o espírito de uma identidade colectiva que se materializaria, então, como disse, naquilo que convencionou chamar-se a "solidariedade social" e especificamente no modelo de Estado que permite adequadamente institucionalizá-la.
O que é, a meu ver, fascinante em "Tom Ripley" é precisamente o modo como a pura amoralidade e a condição ficcional de 'heroi' significativamente se fundem numa única entidade através da qual a autora organiza e habilmente estrutura o olhar subtilmente desencantado (e mal disfarçadamente crítico!) que lança sobre a realidade, tornando o acto de "ler livros policiais" uma prática (potencialmente, ao menos) menos irrelevante e menos politicamente arbitrária do que havia, em larga medida, sido regra até aí, mesmo com excelentes escritoras como, por exemplo, a hoje muito esquecida mas ficcionalmente correctíssima Ngaio Marsh (uma autora que, tendo essa reserva sempre presente e em conta, aprecio, de resto, bastante---precisamente por essa correcção e uma muito britânica elegância, entre outras coisas, textual).
[Na imagem: autógrafo de Patricia Highsmith com o plano do seu "Strangers On A Train" que seria, como se sabe, adaptado ao cinema, num filme hoje clássico, dirigido em 1951 por Alfred Hitchcock com Farley Granger, Robert Walker e Ruth Roman---um filme em cujo argumento curiosamente colaborou Raymond Chandler]
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