Estive grande parte da tarde a ver no Mezzo um documentário sobre Puccini.
Devo, porém, desde já dizer que não é do compositor de "Turandot" que me proponho aqui, hoje, falar.
É, sim, de algo que tem que ver com um aspecto que no documentário é abordado sobre a persdonalidade de Puccini, a saber, a sua visão radicalmente ambivalente da Mulher formada, a partir de uma relação não completamente resolvida, na infância, com a mãe.
É essa, pelo menos, a tese exposta no documentário---e aí usada para contextualizar e tentar 'explicar' uma série de aspectos da opus pucciniana.
Ora, eu sempre acreditei (e isto está, como é evidente, longe de ser uma proposta original) que algo semelhante pode ser feito com uma outra obra pelo menos tão luminosa quanto a de Puccini, embora desenvolvendo-se no âmbito de um medium distinto: o Cinema de Alfred Hitchcock.
Dois aspectos sempre me perturbaram de modo particular na opus hitchcockiana conduzindo irresistivelmente a minha abordagem quer específica, quer mais genérica e abarcante desta, num sentido, em tese e no fundo, muito possivelmente semelhante à que no documentário do Mezzo nos é fornecido sobre o compositor italiano.
Com uma origem análoga, em todo o caso: a figura materna (o arquétipo maternal) e uma certa situação de hipotética irresolução identitária gerada a esse nível e nesse domínio, nesse âmbito.
Falo concretamente do motivo narrativo, sempre, de um modo ou de outro, latencial na obra do Mestre da supressão, da "elipse ou elisão simbológica", por um lado e da indefinição identitária feminina, por outro.
Em diversos filmes do realizador de "Psico", com efeito, surgem circunstâncias narrativas ficcionais em que se verifica um fenómeno crítico recorrente de "substituição", no âmbito das figuras femininas.
Acontece em "Under Capricorn" (onde a personagem de Ingrid Bergman, a Mulher, a Esposa, é simbolicamente substituída---ou elidida e "executada"?---pela governanta); acontece classicamente em "Rebecca" (onde essa mesma entidade arquetipal que é ou parece, de resto, no caso, ser dupla---Rebecca e a "rapariga"---das quais, uma não aparece mesmo fisicamente em momenmto algum, dela existindo apenas a memória, aliás, viva, condicionadora, pairando sobre toda a "estória" e outra, as "rapariga"---de um modo, a meu ver, longe de ser isento de significação---nem nome chega a ter).
[É verdade que ela corresponde ao "eu narracional" do romance de Daphne du Maurier mas, ainda assim, julgo que tendo em vista o conjunto da opus hitchcockiana, podfe não deixar de ser significativo que, em momento algum, Hitch lhe atribua um nome, sendo ela, afinal, num certo sentido, pelo menos, a heroína do filme]
Volra a acontecer de forma ainda mais labiríntica em "Vertigo", onde a figura se organiza numa espécie de jogo de espelhos e/ou de bonecas russas envolvendo várias figuras de Mulher sobrepostas no Tempo e acontece (ou pode seguir acontecendo) até, por exemplo, em "North By Northwest" onde há também uma personagem, desta vez masculina, que, num certro sentido, não existe (Beckett é um outro Autor que leva este motif até ao extremo limite, numa obra como "All That Fall") ou, se assim preferirmos dizer, cuja estrutura identitária sofre uma espécie de "crise" simbólica disfarçada de "ficção" hesitando continuamente entre dois polos: Roger Thornhill/Mr. Kaplan.
Esta ideia da supressão do elemento feminino possivelmente na origem remetendo para a referencialidade maternal desencadeia, em tese, a meu ver, uma outra questão: a de uma, em diversos casos, consistente e recorrente insatisfação/perturbação do sujeito ficcional que, se por um lado, como sucede no já citado "Vertigo" luta consigo mesmo (com a sua memória) para recriá-la, para fazê-la aparecer, sendo ele mesmo, a dado passo, a conferir-lhe forma, por outro, passa claramente por uma espécie de pulsão simbólica da circunstância e sinal exactamente contrários, i.e. aquela que envolve a necessidade interior de destruir (e torturar: há inúmeros exemplos a começar por, ainda antes daquele "Under Capricorn", na figura de Silvia Sydney em "Às 10.4o" e continuando em "Rebecca") a figura que não se consegue entender e à qual, por isso, se guarda um irrecusável ressentimento subconsciente que alterna com o desejo de com ela se reencontrar, como no documentário que referi sobre Puccini sucede, em tese, com este.
[A este propósito, recorde-se, também, por exemplo, o conflito entre Roger Thornhill e Eve Kendall, em "North By Northwest" com Eve acusada injustamente por Roger e redimida, no final, onde aparece, na realidade, como outra Mulher, purificada das acusações de que era objecto, Mulher essa que sucede, assim, à "execução" da "anterior", a Eve que engana Roger].
Muitos críticos, com efeito, sublinham este aspecto a propósito do qual poderíamos, por exemplo, falar de "infixidez simbólica ou simbológica da realidade imediata" e que, no Cinema de Hitchcock se materializa pela existência de constantes ilusões, coisas e pesoas que nunca são aquilo que parecem, motif esse que, pode, em meu entender, admitir-se como estando teticamente relacionado com a questão que temos vindo aqui a abordar, ou seja, aquilo que eu ponho como tese é que esse motivo da referida "infidez" constante e (des?) estrutural da realidade, de facto, um topo autêntico na ficção hitchcockiana, possa estar ligado a uma circunstância de irresolução ou captura nuclear na dinâmica da construção e definição edípica do Eu.
Outro aspecto: aquele que envolve a destruição da---a vingança sobre?---a figura original, perdida, problemática mas que pode ressurgir, reaparecer, por exemplo, na forma significativamente gélida e distante de uma "loira": a Mulher----a Mulher ideal porque qualquer mulher real é, em última análise, impossível?...
Há ou parece haver, em todo o caso, um processo amplo e recorrente, mais ou menos admissível, de punição/redenção da mulher que desemboca ficcionalmente num certo apaziguamento circunstancial, digamos assim, uma vez que, a cada novo filme, é possível supor que o processo, de uma forma ou de outra, se reinicie.
Se pensarmos, em "Psico", por exemplo, é possível ver como a personagem de Janet Leigh ('Marion Crane') que nos é apresentada como mantendo uma relação amorosa "pecaminosa" com a de John Gavin ('Sam Loomis') e que à "luxúria" junta, como se sabe, o roubo no sentido de oferecer-se precisamente uma solução para as dificuldades que o caso amoroso que mantém lhe levantam) é castigada indo cair no tenebroso motel de Norman Bates vindo, posteriormente a "ressurgir" redimida, depois de ela própria se ter arrependido, na personagem de Vera Miles, ('Lila Crane') a irmã, a "Maria" da "Madalena" que foi 'Marion'.
'Bates' (Anthony Perkins) que, curiosamente, tem ele mesmo um gravíssimo problema de identitarização motivado por um "curto-circuito edípico" anterior que o conduzirá a essa espécie de "misoginia militante" e identificação com a Mãe que está na própria base temática do filme.
São, por outro lado, comuns no Cinema de Hitch as figuras de mulheres "camaradas", uma espécie de lado tranquilizador do arquétipo feminino (aquele a quem algumas personagens pedem apoio na sua busca de estabilização identitária no contexto do conflito egótico de índole masrcadamente erótica, sexual): toda uma galeria de personagens, algumas delas crianças, e que vamos sucessivamente encontrando em "Shadow Of A Doubt", em "Strangers On A Train" e/ou "Vertigo", com a personagem de "Midge"/Barbara Bel Geddes, para citar apenas estas.
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