sábado, 3 de outubro de 2009

"Soneto à filha Violante, de Eugénio de Castro" [T.i.P., text in progress]

Reservo este espaço do "Diário" que aqui venho mantendo para uma confissão que francamente já me tem causado alguns razoáveis embaraços em público.
A confissão é, muito simplesmente, esta: não consigo ler os sonetos que Eugénio de Castro (um poeta em geral frio e distante) dedicou aos filhos sem, inevitavelmente, a dado passo, sentir um nó na garganta que me impede invariavelmente de prosseguir.

Sempre que tentei até hoje dizê-los [numa aula, em família] em público, nunca consegui que não houvesse um embaraçosíssimo momento em que a voz se me embarga e se torna, como disse, embaraçoso prosseguir.

Por muito que tenha previamente tentado prepara-me para a ocasião jurando a mim mesmo pensar até noutra coisa qualquer enquanto leio.

Impossível!

Estes sonetos (que a minha Mãe me lia em criança de uma velha "selecta" por onde ela própria estudou) assim como um pequeno acervo de outras "coisas" particularmente sentimentais e propícias a inflamar facilmente a emotividade viva de um adolescente ensimesmado, melancólico, sensível e introspectivo como eu próprio fui; "coisas" de uma sentimentaliade imediata (e imediatamente contagiante) como "A Venda dos Bois" ou empolgantemente retóricas e quase delirantemente épicas como "O Juramento do Árabe", ambas de Gonçalves Crespo e até, noutro mas, no fundo, não muito disemelhante registo, "O Noivado do Sepulcro" de Soares de Passos (que a minha Avó cantava com uma melodia monótona mas fascinante que nunca esqueci) e que era o nosso emocionantísimo "filme de terror" privado desse tempo, em certos serões familiares passados em Moura, num casarão enorme e gélido no inverno, escuríssimo, iluminado a petróleo na adega e nos quartos de baixo---enormes, altíssimos, atravancados de velhos móveis e todo o tipo de objectos fascinantes (o sabre do meu avô, a pistola, as dragonas...); esses sonetos, dizia, passaram a acompanhar-me, no fundo, toda a vida, a partir daí.

Para mim, foram, sobretudo, como que um momento de súbita e irreprimível vulnerabilidade de Eugénio de Castro (que eu "conhecia", aliás, perfeitamente da fotografia severa, impressa na "selecta" e que me parecia uma pessoa austera, incapaz de exibir por hábito as suas fragilidades íntimas em público e por isso mais valor tinham esses momentos em que se me afigurava, subtitamente, fraquejar...).

Gostava de pensar a propósito que não se tratava exactamente de sonetos publicados mas de genuínas confissões que apenas a nós, pessoal e muito intimamente, haviam sido feitas...

Durante muito tempo, persuadi-me disso e alimentei a propósito a ilusão de que ninguém mais conhecia as dores e vacilações---a insegurança geralmente disfarçada com sucesso---do Poeta; e acreditei que ninguém mais podia conhecer além de nós três, a minha Mãe, a minha Avó e eu próprio exactamente porque nos haviam sido confiados a nós e apenas a nós em segredo---em confidência: apenas a nós, na adega da casa de Moura...

É ela---a casa---e são elas: a minha Mãe que pouco depois nos deixaria para sempre e a minha Avó de quem a vida me afastou também, não haveria de tardar muito, mas por outras razões; é tudo isso que eu revejo e volto fugazmente a possuir pelos brevíssimos instantes de cada leitura!

São elas, esses fantasmas perdidos, que regressam nesses fugidios momentos que ela dura (a parte que dela consigo fazer...); é a minha própria infância distante, o tempo da inocência, o Alentejo mítico de então para o qual o resto do País, logo a partir de Vila Franca de Xira, era "lá para o Norte", o calor dessas duas mulheres de cuja companhia e cumplicidade, por motivos distintos mas igualmente difíceis (e, num caso---o da minha Mãe---trágico mesmo) pouco pude gozar---é tudo isso que regressa nestes, para mim, únicos sonetos de Eugénio de Castro de que deixo aqui hoje um dos mais melancólicos, sentidos e pungentes dedicado à filha Violante.


SONETO

Acorda cedo como os passarinhos
e vem logo direita à minha cama;
sacode-me com jeito, por mim chama
e abre-me os olhos com os seus dedinhos.

Estremunhado, zango-me. -
"Beijinhos,
não quer beijinhos?
" - com voz de ouro exclama.
Da minha ira empalidece a chama,
e, acarinhando-a, pago os seus carinhos.

Senhor! Que amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
dá-lhe a Virtude por amparo e guia!

e destina também, ó Pai celeste,
que a mão com que ela agora me abre os olhos,
seja a que há-de fecharmos algum dia!


Eugénio de Castro


[Imagem extraída com vénia de img2.allposters.com]

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