Observando com um mínimo da atenção que ele (queiramo-lo ou não: é o único que temos...) justifica, o cinema português--aquilo que ele foi fazendo ao longo dos tempos e os homens e mulheres que o foram construindo---é quase impossível não constatar a existência, no seu seio, de uns quantos "mal-amados" (na melhor das hipóteses: mal estudados e mal compreendidos) entre todos eles---homens, mulheres e filmes que, por uma razão ou por outra, nos habituámos todos a esquecer e/ou consequentemente a remeter para uma espécie de limbo comum---mau grado o maior ou menor interesse que todos ou alguns deles possam eventualmente, se adequadamente considerados, suscitar.
Vou hoje referir aqui os nomes de dois homens nessa injustíssima situação: Manuel Guimarães, um realizador que o Estado Novo e a sua bárbara censura, destruíram literalmente como excelente cineasta que podia ter chegado a ser se o tivessem deixado crescer e expressar-se com um mínimo de liberdade criativa (mesmo tendo em conta a escassíssima dinâmica da "indústria" nacional) e Perdigão Queiroga.
Pessoalmente, de dizer que gosto francamente mais de Guimarães, que foi uma espécie de artista em bruto cuja obra, sempre que revisitada, nunca deixa (a mim, pessoalmente, pelo menos) de causar uma desagradável impressão de desconforto e perturbação exactamente pela permanente sugestão de inacabado e de, por uma razão ou por outra, de desperdiçado que consistentemente a marca.
É, no entanto, preciso dizer que Queiroga foi, ainda assim, uma interessante figura de realizador a quem tenho por hábito chamar (com as devidas reservas e alguma compreensível, julgo eu, ironia) o "Frank Capra português".
Quem, com efeito, conhece o Capra, por exemplo máximo, de "It's A Wonderful Life", para mim possivelmente a sua obra mais característica e definitiva (é uma opinião!)---a defesa que ele faz de uma certa ideia de organização cooperativa e/ou estreitamente ligada a ela, de triunfal redescoberta individual da democracia como forma básica de organização da sociedade com os "little people" a acordarem e a levantarem-se institucionalmente, em nome precisamente da genuinidade daquela ideia ideal de democracia, contra a degradação que nela foram consistentemente introduzindo os financeiramente poderosos que, por sua vez, a foram consistentemente descaracterizando; quem assim procede, dizia, e em seguida se debruça sobre "coisas" mais próximas, "coisas" comparativamente (muuuito!) mais modestas, e cinematograficamente discutíveis e imperfeitas como o portuguesíssimo "Sonhar É Fácil" e, sobretudo, um "O Milionário" recentemente reexibido na televisão nacional, não pode, penso eu, deixar de reparar nas singulares 'coincidências' que ligam todas essas obras (e que ligam até estas a um, a meu ver, frustre "You Can't Take It With You", onde Capra, em meu entender, se desencontra, claramente, do registo ideal que tinha achado noutros momentos e noutros filmes).
Algo que é ainda mais significativo se pensarmos como "Sonhar É Fácil" é uma obra realizada em pleno fascismo quando, não apenas "toda a nudez", como no título célebre de Arnaldo Jabor, mas toda a iniciativa de organização individual (para mais económica...) desenvolvida de forma autónoma e, por conseguinte, à revelia da máquina corporativa do regime era invariavelmente talvez não, toda ela, automaticamente "castigada" mas seguramente desencorajada e sempre (também neste caso, muito!) vigiada...
É verdade que "O Milionário" é um filme, sob inúmeros aspectos, modesto e, de um modo ou de outro, 'conformado'.
É certo que em termos técnicos e no tom de farsa, o filme desce, por vezes, até ao (quase?) rudimentar e caricatural.
É certo que ele, filme, joga muito popularmente (e precisamente porque sabe que eles são populares) com uma série de clichés típicos da moral e, em termos mais latos, da "cultura" fascista: a rapariga que "caíu" (Pietro Germi criará um título paradigmático no seu "Sedotta e Abbandonata" de 1964, com Stefania Sandrelli), o apaixonado simples mas tímido e o galã sedutor---e, através deloes, com a subliminar oposição entre sexualidade e "verdadeiro Amor", o amor "santificado", o amor-renúncia---a mãezinha doente que "explica" o sacrifício e a própria "queda" da heroína, o "toque" de "modernidade"---e de crítica!---dado pelo Conselheitro adúltero e lúbrico e pela "menina" que lhe explora a lubricidade, etc. etc.)
Mas, ao contrário de outros filmes portugueses mais ou menos contemporâneos (ou pouco menos, alguns) como o clássico "A Canção de Lisboa" ou o muito posterior e já mais modesto "Um Marido Solteiro" (que explora o mesmo filão dos equívocos e do 'justo castigo' dos imoderadamente ambiciosos; dos "sapateiros" que "sobem muito além da chinnela"---pecado que o regime---"et pour cause"!...---decididamente não perdoa...) "O Milionário" é um filme que sugere ainda que muito disfarçada e muito obliquamente um caminhjo ou, pelo menos, a sugestão indirecta dele---a organização autónoma dos humildes que era uma ideia que já vinha de "Sonhar É Fácil" e que eu, pesoalmente, não me recordo de ver tratada noutros filmes de outro realizador para além deste desigual mas interesante (até por isso, por essa singularidade) Perdigão Queiroga.
Claro que a Capra era fácil advogar uma ideia análoga que cabia perfeitamente no politicamente correcto "double standard" da própria "democracy".
Mas num país onde o cooperativismo de um António Sérgio, por exemplo, era olhado com particular suspeita pelo 'regime', a proposta fílmica de Queiroga nestes filmes que citei possui alguma ousadia e mesmo alguma irrecusável coragem merecendo, sem dúvida, alguma atenção e alguma tolerância para com as "facilidades" de que esse interesse e essa coragem vêm inegavelmente acompanhados.
Mas já não é exactamente o cinema "do" fascismo, aquele a que António Ferro torcia o nariz (preferindo-lhe a retórica façanhuda de um peplum à portuguesa que fracassaria, aliás estrondosamente, como é sabido).
Já não é o cinema do conformismo disfarçado secundariamente de digna modéstia---em cujo contexto, o motif do "aldrabão castigado" (repetido até à exaustão de filme para filme) desempenhará um papel verdadeiramente crucial na medida em que põe em relevo a questão essencial do ponto de vista da "cultura" do 'regime' da existência de uma espécie de "lugar natural de cada um" na escala económica e social que ninguém pode impunemente ultrapassar.
É essa, a meu ver, aliás, a lição-chave daquele que, para mim é o verdadeiro cinema do regime: a comédia "à portuguesa" (na realidade, ela chega-nos por via do teatro, sobretudo francês, da comédia dita "de boulevard", de Labiche ou Courteline de que, entre nós, André Brun é um curioso epígono) onde o castigo dos imoderadamente ambiciosos pode processar-se rindo, é verdade, mas sempre de um modo que não deixa dúvidas seja a quem for.
Em Queiroga e neste seu (eu, que até já citei aqui um título do cinema italiano, diria: "zavatinniano" ou... "de-sica-eano") "O Milionário"---como no anterior "Sonhar É Fácil"---as coisas são, como disse, singularmente algo diferentes: há, pelo menos, uma sombra ou uma sugestão clara de iniciativa popular há a recusa a deixar que o esforço cooperativo venha a ser recuperado e reintegrado na arquitectura económica e financeira "mainstream" com Solnado, "o milionário" a recusar-se a aceitar a personagem de Emílio Correia como intermediário do negócio; há aquela singular distinção feita entre "venda" e "troca"; há, enfim, um curiosíssimo espírito de intervenção social que confere a Perdigão Queiroga (nestes dois filmes citados, seguramente) um posicionamento social que "fere invulgarmente a vista crítica" do espectador exactamente pela originalidade relativa que o caracteriza no contexto da época em que é revelado através de uma cinematografia que nem por ser técnica e formalmente modesta deixa de ser digna e, a mais de um título, respeitável.
Não por acaso, as ilustrações desta 'entrada' são fotogramas d' "O Milionário" de Queiroga e de "Ladri di Biciclette" de De Sica.
A coicidência plástica entre as imagens é, só por si, insusceptível de ser ignorada e permite seguramente um espessamento adicional no que se refere a uma nossa percepção global maia lata e abarcante do filme.
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