quinta-feira, 1 de outubro de 2009

"Tanatopia e pensar tanatópico nacional" [T.i.P, text in Progress]


Se há autores portugueses cujo estudo seja essencial para a elaboração da tese do que chamo a tanatopia nacional portuguesa, António Feijó [Ignacio de Abreu e Lima] juntamente com António Patrício e até Manuel Laranjeira ou Álvaro do Carvalhal é seguramente um desses autores.

Onde Laranjeira foi, sobretudo, analítico e reflexivo [sendo que o seu suicídio constitui, afinal, uma espécie de angustiada e inevitável consequência da percepção final da incapacidade das elites entre nós para ligarem uma qualquer forma de inteligência (no caso de Laranjeira, desesperadamente lúcida e atenta, agudíssima) da realidade à própria realidade]; onde, dizia, Laranjeira foi, sobretudo, reflexivo, Patrício foi um esteta que não apenas se refugia como, sobretudo, se pune (e acaba imolando-se) pela Arte e Carvalhal foi o talento trágico e precoce que transformou em fantasmas de génio a sua própria, pessoal pulsão ou fascínio ritual pela Morte.

Pelo "Fim", titularia Patrício.

Em todos eles, a Morte surge, de um modo ou de outro, como a única possível saída de uma trgédia histórica, social, política e genericamente cultu(r)al, incapaz de resolver-se pontualmente na História.

O amor que em Patrício (como em Beckett, mais tarde: Listopad tem inquestionavelmente fundamento material para aproximá-los) é sobretudo impossibilidade e tragédia (dilaceração e dor sem fim, revolver obsessivo e agudamente lúcido de fantasmas pessoais e mais latamente a auto-revelação de uma impotência que é tanto individual como colectiva; tanto externa e objectiva como interior e subjectiva e que se projecta idealmente na sua revaloração secundária, na sua e consagração---na sua "sacre"---final em arquétipo de renúncia e ascese totais); o amor, dizia, surge no autor de "Pedro e Inês" como uma maldição (e isso é incontestavelmente "beckettiano"!) sobretudo porque permite que a tragédia da existência se atarde e se eternize sempre um pouco mais, impedindo o encontro final apaixonado e redentor com a Morte (cf. por exemplo a simbologia diversamente contida em "All That Fall", de Beckett) que surge essa como a vocação longamente suspensa de todo um povo.

Em Carvalhal, são os casamentos "para morrer", os casamentos simbológicos com a Morte que também, por exemplo, Soares de Passos deixaria versões lancinantes que deliciaram toda uma sociedade que os declamava (e cantava!) abundantemente.

Manuel João Gomes (que reedita entre nós as "Histórias Frenéticas" do autor d' "Os Canibais") tem toda a frazão em sublinhar os "Verfremdungseffekte" que Carvalhal usa para se distinguir dos autores genuinamente fantásticos e que, a meu ver, dão a nota exacta de pungente lucidez na reflexão sobre o "Fim" (o "finis Patriae", também) que está na sua génese; no "subsconsciente " dos fulgurantes e visionários, torrenciais, paroxísticos, literariamente 'luminosos' e torturadamente "neo-barrocos", textos de Carvalhal.

Já Feijó, o homem da "Pálida e Loura"; o homem que, como nota Óscar Lopes num lucidíssimo ensaio, lamenta, a propósito de uma das suas heróinas, que não esteja morta para se parecer ainda mais com alguém que amou no passado (um arquétipo perdido que se reencontra, assim, de todo simbolicamente no anseio ou no desejo embriegador da Morte vista como uma protagonista inesperada de um "eternel retour" feito de sombras e sofisticadas ritualizaçães do suicídio).

É por isso que não resisto, falando de um "pensar tanatópico" que se instala definitivamente engtre nós, à sombra ou "à boleia" da teologia expiatória e ressureccional crística em "roubar" ao meu Amigo Armando Nascimento Rosa o termo de "complexo de Inês" para referir este consistente desvio sombrio do desejo que é, sobretudo, o emergir de uma inteligência da realidade cultu(r)al e civilizacional portuguesa e que a relativa e forçada "abertura política" ocorrida com o fim do século XVIII (a extinção da Real Mesa Censória permitindo uma ligeiríssima aproximação ao exterior peninsular e, sobretudo, trans-peninsular, as invasões francesas, a guerra civil e os exílios) veio transformar num cotejo inevitável com o "outro", incomparavelmente, a vários títulos, mais evoluído.

No trajecto simbológico inesiano há toda a matéria témica que, "roubada" ela mesma ao cristianismo permite retratar na perfeição a tanatopia nacional.

A Cristo e ao cristianismo vai ela buscar a incompreensão e até um certo horror que dela nasce pela matéria, pelo corpo, como sede de contradições irresolúveis de todo o tipo.

Aí vai ele buscar também a ideia de que é preciso morrer (não apenas é necessário: é vital, é uma condição de superação das contradições) morrer para que todas essas contradições e inibições se resolvam e, desaparecida a sede e causa do Mal (a hispanidade de Inês, a sua sensualidade, o desafio a que submete, com a sua vontade estritamente individual oposta à visão sacrificial pessoal e política, a opressiva e castradora religiosidade de um país estruturalmente medievalizado e, de mais de uma maneira, pobre; a inexperiência---a "agnosia"---de D. Sebastião, a sua juvenil irreflexão, no caso tópico de um certo "sebastianismo" popular, entre nós); aí, dizia, ao pensar crístico enraizado vai a tanatopia buscar a ideia de uma Morte redentora (Inês torna-se arquétipo amoroso e Lopes Vieira em "A Paixão de Pedro o Cru" chega a compará-la objectivamente a Santa Isabel, outro motivo de renúncia e deserotização/desmaterialização simbológica clássica na cultura, sobretudo, popular portuguesa; D. Sebastião, que não soube ser rei de um único tempo e de um único país vai tornar-se iniciaticamente "rei" de todos eles) como porta de entrada na ausência perfeita de acção que é a Morte re/vista, pois, finalmente como "valor".

Garrett fá-lo no "Frei Luís de Sousa" (do qual faço pessoalmente uma leitura ou uma "leituração" civilizacional que não posso agora retomar aqui mas que tem tudo a ver com um fechamento brutal a que se chega entre nós com o esgotamento do modelo aristocrático de conduzir a História e a completa incapacidade burguesa nacional para pegar no testemunho abandonado); Garrett, dizia, fá-lo no "Frei Luís de Sousa" mas Patrício fá-lo na sua Rainha que, no "Fim" antecipa não apenas algum Beckett como, de igual modo, algum Sartre, por outro exemplo e Feijó na sua poesia de que deixo aqui hoje um fragmento significativo, capaz de encaixar-se na perfeição neste quadro de dissolução e desintegração pessoal e cultu(r)al que começa, aqui, pela Morte da própria Razão que antecede o mergulho final na Sombra como antecâmara e momento condicionalmente propiciatório da libertação final, ainda e sempre, pelo casamento angular, verticial, significador e redentor, com a Morte.


[...] Eu era a Phantasia,
Tu a Razão... Quem viu estola que as enlace?
Na boda em que a Razão toma parte, a Poesia
Esconde soluçando a dolorosa Face...


[António Feijó (Ignacio de Abreu e Lima) in "Novas Bailatas"]


Vale seguramente a pena ler e reler (de preferência em voz alta) este musicalíssimo e nostálgico fragmento onde os sons se interpelam continuamente num suavíssimo e fonicamente labitríntico ondular cortado em dois momentos de quase ruptura pela vocalidade clara, imprevistamente límpida, quase agressivamente premonitória, ominosa, do "a" aberto contido nos substantivos "enlace", "parte" e "Face"...

Um belísimo momento de Poesia a propósito de um Autor que vale seguramente, por mais de uma razão, a pena recordar.


[Na imagem: o Ultimatum inglês visto por Rafael Bordalo Pinheiro ]

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