sábado, 3 de outubro de 2009

"Hilaire Belloc, «Tarantella»"


Um dos textos poéticos que, desde muito cedo mais me intrigaram (e fascinaram!) contribuindo (provavelmente de forma decisiva) para o despertar da minha paixão posterior pela Poesia, foi esta musicalíssima, encantatória "trifle textual" de Hilaire Belloc.

Embora possa, à primeira vista, surpreender devo dizer que a comparo, instintivamente, a certos textos (ou a certas textualidades) de, por exemplo, José Afonso com quem esta curiosidade poética de Belloc partilha oum gosto particular e muito nítido pela musicalidade textual 'pura'---uma registo (quase) meta-poético (meta-linguístico num duplo sentido, com certeza!) onde as palavras começam já visível (e, também inquietantemente!) a diluir-se, de modo subtil mas, como disse, encantatório, diante dos nossos olhos irremediavelmente presos das claríssimas, 'mediterrânicas', sonoridades criadas, até muito perto do fecho do poema, por Belloc; onde as palavras como tal começam, dizia, já visivelmente a diluir-se na sua própria forma ou (talvez possamos dizer deste modo:) no seu próprio "revestimento fónico" puro, fazendo no texto o que a pintura fez, a dado passo, a partir de Cézanne, por exemplo, consigo própria, i.e. começando progressivamente a levar as Formas que constituem o a sua substância para o vazio, para a des-integração total, "abstractizando-se", pois, a partir da reflexão plástica contínua sobre os seus próprios materiais---e, em mais de um sentido, fundamentos e limites.

Em Belloc é, sobretudo, o projecto de re/criar na poesia a melopeia da tarantella napolitana com os seus sons claros, brilhantes e metálicos, cheios de sol e júbilo muito mais que de profundidade de reflexão.
A verdade, porém, é que esse tom de despreocupação fónica se rompe brutalmenre, deixando-nos versos finais suspensos sobre o próprio vazio como se, de súbito, toda a alegria e todas as certezas se tivessem bruscamente suspendido, deixando-nos a contemplar de frente algo que se assemelha ateradoramente à própria Morte: "doom", o "juízo final", a "fatalidade".

É, porém, sobretudo, naquilo que atrás refiro que o texto se aproxima, em meu entender, claramente de alguma poesia do Zeca que recorria, como se sabe, com frequência a este registo quase hipnoticamente surreal---"nonsensical", mesmo, com frequência---registo que ele ia buscar a uma certa poesia popular, a um certo folclore para onde terão confluido ao longo dos tempos determinados conteúdos témicos que esse mesmo tempo se encarregou, todavia, de des-integrar e des-articular, conferindo-lhe, desse modo, o cunho quase literalmente mágico das fórmulas de iniciação, encantação e enfeitiçamento.

Fazendo delas, no seu melhor, portas para o desconhecido ("doors of perception" chamou classicamente Huxley a algo, na in/essência, não muito diverso) senão mesmo para o Vazio: no fundo, uma forma subtilmente "para-onirizada" de reflectir sobre a própria Morte, esconjurando, de passo, no mesmo acto, os medos atávicos subconscientes que a ela estão intrinsecamente associados, experimentando controladamente (ritual ou ritualizadamente?) por via da expressão artística, o temor e a simultânea atracção, o pavor e o fascínio um e outro, dificilmente resistíveis, deliciosos, embriegadores de paradigmas absolutamente "puros" de ordem---situados para além dos limites estr(e)itos do que chamamos comummente o "indivíduo" e a (sua?) "razão"---pelo próprio Nada.

Desconstruindo-se a si próprio numa Forma (quase) "pura" onde o sentido na acepção mais estr(e)ita e limitada do termo tende por completo (triunfalmente, embora) a "perder-se", o texto metaforiza, afinal, o receio humano atávico, instintivo, de ver as coisas perderem esse mesmo 'sentido' e aponta para o convocar do "sagrado", com o propósito "mágico", transcendentalizador, exactamente de garantir que o processo ocorre, afinal, em última [e, agora, 'mágica'] instância, ordeiramente e "em perfeita segurança": a "segurança" que a Arte como (o) Ritual permite(m), organiza(m), codifica(m)---e, por isso, ela(s) representa(m) uma forma própria e---de algum modo reconhecível, essencial [uma forma limite?] mesmo---de Conhecimento.


TARANTELLA


Do you remember an Inn,
Miranda?
Do you remember an Inn?
And the tedding and the spreading
Of the straw for a bedding,
And the fleas that tease in the High Pyrennes
And the wine that tasted of the tar?
And the cheers and the jeers of the young muleteers
(Under the vine of the dark verandah)?
Do you remember an Inn, Miranda?
Do you remember an Inn?
And the cheers and the jeers of the young muleteers
Who hadn't got a penny
And who weren't paying any?
And the hammer at the doors of the Din?
And the Hip! Hop! Hap!
Of the clap
Of the hands to the twirl and the swirl
Of the girl gone chancing,
Glancing
Dancing
Backing and advancing
Snapping of a clapper to the spin
Out and in--
And the Ting, Tong, Tang, of the guitar?
Do you remember an In,
Miranda?
Do you remember an Inn?

Never more,
Miranda
Never more.
Only the high peaks hoar;
and Aragon a torrent at the door.
No sound
In the walls of the Halls where falls
The tread
Of the feet of the dead to the ground
No sound
But the boom
Of the Waterfall like Doom.

Hilaire Belloc
[Imagem extraída com a devida vénia de lion.edu]

Sem comentários: