Vou ser simultaneamente sacrílego (como o "herói" de Kurosawa...) e intencionalmente grosseiro: o Vaticano, esse gigantesco "caça níqueis espiritual" cuja sobrevivência constitui, na situação actual da civilização, uma monstruosidade intelectual e civilizacional dificilmente explicável; o Vaticano, dizia, faz hoje (ainda hoje!) santos como... os pombos e as galinhas fazem m.!
Aliás, a instituição-Vaticano configura, nos tempos que correm um completo contra-senso: tal como se obstina em preservar-se e existir, permance, com efeito, inquestionavelmente uma aberração dificilmente imaginável.
Moralmente relevante e, sob muitos aspectos, até, em última instância, determinante (no sentido muito preciso em que o cristianismo em geral o era, por exemplo, para Voltaire...) o problema é que esse estatuto de objectiva, muito ampla (e, sob muitos aspectos, apenas potencial) 'conveniência' ou mesmo (não me custa, por diversas razões, todas elas de natureza sobretudo pragmática, admitir em tese a referida possibilidade) possível objectiva 'necessidade moral' e até (por que não?) civilizacional (logrou, afinal, de algum modo...--"tant bien que mal"...--sê-lo durante décadas) assenta todo ele numa base teorética que se encontra, por sua vez, para todos os efeitos, esgotada e, por isso, hoje-por-hoje, completamente esvaziada enquanto suporte epistemológico credível, seja de que modelo objectivo e prático de moral for.
Argumentar, com efeito, por exemplo e para não irmos mais longe (o 'exemplo' é, creio eu, suficientemente esclarecedor e dispensa-nos, aliás, de enunciar outros que não seria, todavia, particularmente difícil identificar e adiantar...) nos tempos que correm, em defesa de uma suposta "infalibilidade papal" (já nem falo na questão em si da suposta "infalibilidade" como tal equacionada relativamente a um homem...); mas argumentar, dizia, com esse verdadeiramente extraordinário--surreal, mesmo!--dogma da "infalibilidade" quando recorrentemente assistimos a posicionamentos objectivamente absurdos e mesmo intelectualmente aberrantes, como aquele que recentemente envolveu (e continua, de resto, a envolver, agora noutro tom mais comedido e mais discreto, é verdade, mas está "lá"! Continua "lá"!) o uso do preservativo ou a questão dos fundamentos (?) "teóricos" para a recusa a ordenar mulheres não abona, de facto, minimamente, da lucidez, da honestidade intelectual e, de um modo lato, do esclarecimento, seja de quem for dos que desse modo e nesse intelectualmente inadmissível sentido se posicionam (em defesa da "proibição" absoluta do primeiro e da exclusão não menos categórica das segundas) tanto como dos que aceitam sem pestanejar o "valimento" efectivo e supostamente "intrínseco" dos referidos... "argumentos".
A recusa a ordenar mulheres é, aliás, no plano teórico, tão indiscutivelmente indefensável e tão teimosamente irracional (e mesmo escandalosamente obscurantista) quanto a primeira o é, no plano material e até do simples e elementar bom senso.
O modo como, por outro lado e de forma cumulativa, a igreja se permite reclamar para si o "direito" (insustentável e intoleravelmente demiúrgico!) de declarar a "santidade" de pessoas que, ou pura e simplesmente nunca chegaram sequer, ao que tudo indica, a existir (como um tal Santo Expedito a quem, ainda assim, possivelmente milhares pedem todos os dias as mais improváveis graças e milagres); ou, se existiram de facto, terão sido tudo menos aquilo que vulgarmente se entende poder em bom rigor caber na designação de 'santidade'; o modo como a igreja o faz, dizia, raia, na realidade, a mitomania assim como parece objectivamente ecoar os delírios megalómanos e impossivelmente visionários dos surrealistas com Dali e Breton ou Rimbaud à cabeça...
Pois, uma das "últimas" do Vaticano, depois da tomada de posição assumidamente política, que configurou o inqualificável--e provocatório!--"projecto" de canonizar aquele que foi, por sua vez, seguramente, um dos mais politicamente intrusivos e reaccionários papas dos últimos tempos (o que, tratando-se de papas, não é, aliás, dizer pouco...) que fez da intervenção anti-comunista militante uma verdadeira profissão de fé e até, a seu modo, um programa ou um projecto persistente--cá para mim, mais até do que persistente, foi obstinado, foi mesmo obsessivo!--de... sacerdócio; uma das "últimas" do Vaticano, dizia, passa, segundo o "Diário de Notícias" de 10.10,08, pela injuriosa, e ofensiva, canonização do, no mínimo, tíbio (eu diria mesmo: tibiamente suspeito!...) Pio XII, uma vez que sobre ele recaem, como é sabido, as mais fundadas suspeitas de ter cedido por completo à tentação... "diplomática" (leia-se: comprometedoramente pusilânime...) de uma objectivamente criminosa cumplicidade com a besta nazi no seu afã genocida global e especificamente anti-semita.
E não colhe argumentar que o Vaticano não foi o único a fechar os olhos à trágica e bárbara, inominável, realidade do genocídio judaico.
Não colhe argumentar que as próprias correntes evangélicas que compunham a igreja alemã da época, os "cristãos alemães" (1) ou que, no limite, a própria Inglaterra (como refere, por exemplo, de forma aliás expressa e directa, Saul Friedländer, num interessantíssimo ensaio sobre a complexa mas não menos interessante figura do "S.S. humanitário" alemão, o trágico Kurt Gerstein (2) que se filiou nas Schutzstaffel hitlerianas alegadamente com o propósito de sabotar, a partir do interior, a criminosa acção destas); não colhe argumentar, dizia, que mesmo esses (que estavam, pelo menos num caso, no dos cristão alemães, fisicamente mais próximos do problema e, portanto, dele conheceriam aspectos que seria, muito no limite e em tese, possível admitir que o próprio Vaticano conhecesse, digamos, menos bem) estão longe de ter feito tudo quanto podiam para evitar aquele mesmo genocídio ou, pelo menos, para aceitar corajosamente o (espinhoso, sem dúvida!) ónus de denunciá-lo.
...Ou ainda que homens de negócios reputados do 'mundo livre' (como Henry Ford, por exemplo talvez máximo) se puseram abertamente do lado da propaganda mais escandalosa e mais estupidamente anti-semita sobre cuja base argumentativa assentaria, aliás, a tragédia material do Holocausto.
Não adianta porque (obviamente!) o crime, mesmo o crime persistente, o crime generalizado, o crime à escala global não pode, em caso algum, justificar e muito menos "legitimar" o... "direito secundário ou consequencial ao crime" (uma das bases sobre que se suporta, em última análise, todo o edifício moral da igreja é precisamente essa de ela, igreja, ser suposta agir em todos os casos, como uma instância ética "absoluta", isto é, intervindo sempre em defesa da não-relatividade im/puramente circunstancial e meramente casuística do Mal).
Ao propor-se canonizar um homem pusilânime e sem qualquer dimensão ou grandeza ética (reconhecível quanto mais demonstrável!) a igreja obstina-se em provar que, na prática, age como se ainda hoje o não tivesse percebido (assim como àquilo que se encontra, em última análise, por trás das meras circunstâncias ou do fenómeno em si e que é, se possível, ainda mais grave) ou que tendo-o percebido se obstinasse inexplicável (mas também comprometedoramente) em ignorá-lo...
NOTAS
(1) Veja-se, a título de mero exemplo, aquilo que o Dr. Otto Dibelius, uma alta figura da hierarquia da igreja alemã da época, escreve, segundo Saul Friedländer numa obra cuja identidade editorial a seguir se dá, aos pastores do seu distrito: (...) Apesar do tom depreciativo do termo, senti-me sempre anti-semita. Não podem negar que em todas as manifestações de desintegração da civilização moderna o judaísmo desempenhou sempre um papel importante (...)" [sublinhados meus].
Ou ainda (cf. Saul Friedländer, op. cit. pág. 30) a declaração entusiástica do mesmo Dr. Dibelius a propósito da vitória eleitoral dos nazis em Março de 1933: "Entre nós muito poucos deixarão de se regozijar com esta grande renovação".
Para já não falar na pessoalíssima (ou nem tanto...) "reflexão" do pastor F. Anderson que diz, ainda segundo o mesmo autor, Saul Friedländer (cf. op. cit. pág. 29) que... "quem come um judeu, estoira" (!)
(2) Cf. Saul Friedländer, "Kurt Gerstein: Entre o Homem e a Gestapo", trad. port. de Maria José Miranda, ed. Morais Editores, Lisboa, 1968.
[Imagem ilustrativa extraída com vénia de oreclamista.blogspot.com]