sábado, 27 de junho de 2009

"Cuore" de Edmondo di Amicis

De um modo ou de outro, o fascismo mental em estado puro.
Gasoso.
A forma abstracta última do mesmo.
Foi na minha meninice durante algum tempo (juntamente com as histórias... de terror do "Bambi" e da "Bela Adormecida" na versão do Disney, uma das minhas referências incontornáveis, absolutas.
Tive-o na edição da Minerva que me ofereceram num Natal qualquer da já longínqua década de '50 do século passado.
Tal como me chegaram à época na versão portuguesa (muito adaptada, aliás!) "estórias" como a do Graciano (o rapaz abrutalhado e pobre "do povo" que nos é apresentado, nessa edição da Minerva, como um verdadeiro paradigma--e exemplo--de "pobreza trabalhadora mas sempre respeitadora e humilde", tal como idealizava--e pretendia, aliás, ver eternizada--a pobreza o próprio salazarismo--ou a do menino da narrativa "Dos Apeninos aos Andes" (o torturado e muito... edípico Marco, do filme e da série de animação...) para já não falar nesse "O Pequeno Patriota Paduano", um "viva la muerte" para crianças...) marcaram, para sempre, primeiro, como modelos, mais tarde como anti-modelos puros, o adolescente que fui e, até, no limite, o homem que sou, detestando seminalmente o aparato grotesco, sempre, de um modo ou de outro, no limite, sexualmente ambíguo e 'cinzento', do patriotismo seja como e onde for que ele se manifeste assim como o primarismo, profundamente decadente (e estruturalmente triste!) dos rituais guerreiros sejam eles de que tipo forem.
Tudo graças ao "Cuore" e às leituras familiares que dele (em casa da minha avó, sobretudo) tantas vezes, sobretudo ao serão, se fizeram.
Obrigado, pois, velho Di Amicis por essa pedagogia... por absurdo à qual devo, aliás, grande parte da (pouca) lucidez que hoje possa eventualmente ter conseguido reunir...
Seria interessante considerar o papel desempenhado pelos mecanismos naturais de fixação edípica na construção mental de uma sociedade fascista ou para-fascista, como era a portuguesa dessa década de '50.
Há nessas... 'androcracias' gritantemente retóricas e mesmo ostensivamente recitativas de inspiração patriarcal espartana, "subterrâneos" mais ou menos persistentes (eu suponho mesmo que tópica ou hipoteticamente estáveis) de transferência em matéria de identidade sexual que derivam, em tese, por sua vez, do modo particular como essas sociedades, aparentemente «virocêntricas», se baseiam, na realidade, em última instância, em modelos de docilização e estr(e)ito controlo mental e físico mais ou menos consistentes e precisos onde a "Mãe" (figurada por transfert na "Pátria" ou, como lhe chamava Natália Correia, num contexto um pouco distinto mas num "desarrincanço semântico", de facto, curioso e, sobretudo, antropológicamente fecundo: na "Mátria") permanece, muito para além do ciclo e/ou do tempo normais como um elemento que, transformado secundariamente em "cultura", fixa (neste caso, de forma completamente artificial, o sujeito a si próprio e ao Tempo, impedindo-o estratégica ou significadamente de «crescer».
A "Mãe" é, de facto, uma presença quase obsessiva ao longo do livro.
Ela opera aí, no contexto desse "fascismo mental" ou "subjectivo" ("subjeccional") que fornece, de facto, muito claramente e em última análise, a semente ou o «sopro vital» de todos os fascismos objectivos e históricos concretos como o utensílio cultu(r)al primário de que se serve o poder para controlar e dominar.
Para se exercer.
Há, diria, em todo o processo de fascização intensiva de uma sociedade, uma suspenção libidinal nuclear estratégica que, por um lado, induz o desejo obsessivo--senão mesmo o culto organizado--mais ou menos reconhecível da Morte (correspondente ao triunfo natural da pulsão de Thanathos sobre a de Eros) que o franquismo tenebrosamente consagraria no seu famigerado (e histérico!) tristemente clássico "viva la muerte" (e onde traços evidentes de "submissividade sado-masoquista" de natureza reconhecivelmente--homo--sexual se tornam globalmente claros a um olhar crítico atento) e, por outro, a transferência neurótica secundária persistente da ideia de prazer--de desejo--para a violência pura onde aquele se desreprime, então, neuroticamente numa acticidade elementar e 'absoluta' que o poder controla e "significa" ulteriormente a seu bel-prazer.
Neste sentido (volto a dizer: neurótico) elemental, o fascismo, as sociedades fascistas como tal, são, de facto, "o grande hospício" organizado e não é por acaso que Reich (o Wilhelm não o "dritte"...) centra toda a sua (re) visão pessoal de Freud, como se sabe, central e determinantemente no "Político".
Para muitos de nós, libertar-se da tutela da "Mãe" através da ressexualização libertadora 'total' final do paradigma feminino (veja-se desde logo aquela que pode, em última mas real instância, ser entendido como a "essência cultu(r)al absoluta", a grande 'lição' histórica e mental do "Maio de 68"...) foi, com efeito, o primeiro acto de (auto) reconhecível rebelião--de rebelião especificamente política--que teremos, como geração, conseguido protagonizar e, sobretudo, operar.
Por isso, também, longe de ser com ela incompatível, um Sade, por exemplo, é cultu(r)almente tão importante (eu diria mesmo: tão seminalmente essencial) em última análise, para a Revolução.

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