terça-feira, 16 de junho de 2009

"Democracia e grupos de interesses: uma questão vital?"

'Politicamente mal-ferido' numas eleições (para cujo insucesso contribuíu, aliás, de forma decisiva com um estilo caracteristicamente inábil marcado, por outro lado, por alguma evidente truculência; um discurso muitas vezes abertamente desconexo, partidariamente dócil, errático e repetitivo, globalmente sempre, no limite, incapaz de sustentar-se de forma sólida e clara em factos e fundamentações credíveis para eles) e percebendo, talvez, que a sua anterior imagem de constitucionalista consistente e sério saíu substantivamente afectada da "aventura" política em que o meteram ou em que ele próprio se meteu) Vital Moreira volta ao debate político no "Público" de 16.06.09 com um texto, bem ao seu estilo, cheio de equívocos, retórica e confusões, intitulado "Eleições e "grupos de interesse"".

Um texto que confirma, de resto, a sua (para mim, de todo, inexplicável, devo dizer) mas obviamente inabalável convicção pessoal de litigar em favor das grandes causas sociais e políticas (que o seu actual partido, aliás, se alguma vez chegou realmente a advogar, já há muito esqueceu até como tal se faz).


Desta feita, Vital emaranha-se num labirinto de aduções sobre "os partidos" e o que chama "grupos de interesse", começando por defender (e cito) que "numa moderna democracia eleitoral, a disputa pelo poder político e a formação da vontade política cabe primordialmente aos partidos políticos (como, aliás, diz a nossa Constituição)".


Ora, os equívocos começam logo na própria frase de abertura do fragmento que atrás cito: nas democracias, com efeito, os agentes políticos não lutam, em caso algum, pelo poder mas pelo exercício instrumental desse mesmo poder, que é uma coisa completamente distinta da anterior, como não é, de resto, difícil de perceber por quem quiser realmente dedicar-se a essa, porém democraticamente fulcral, tarefa intelectual.


Pretender (ou admitir implicitamente) mesmo por lapso puramente textual e/ou semântico, que o poder muda efectivamente de mãos numa democracia é precisamente aquilo que permite distinguir, a meu ver, no plano teorético básico, a Democracia genuína da mera "demomorfia funcional" defendida e protagonizada, aliás, esta última, de facto senão de direito, pelos partidos "pê-ésse" (e não só...) por essa "Europa" fora, de um modo que não pode, de resto e de modo algum, dissociar-se, do descrédito em que quase todos eles cairam, fenómeno que as eleições em causa, como se sabe, plenamente confirmam.


Mas Moreira (a quem a perspectiva de o controlo partidário sobre a sociedade se esbater e poder vir, no limite, a desaparecer visivelmente inquieta) vai ainda mais longe e acrescenta: "Aos partidos políticos cabe a função de agregação dos diversos interesses de grupo em programas políticos e programas de governo "transversais", que têm de consistir em "coligações de interesses" mais ou menos vastas e difusas, não podendo confundir-se com nenhum interesse de grupo em especial".


Basta ler mesmo muito apressadamente as formulação atrás transcrita para se perceber de imediato como o autor faz, a dado passo, uma evidente (e dificilmente---"if at all"...---explicável, aliás!) confusão entre "programas políticos" e "programas de governo", confusão essa, de resto, particularmente suspreendente num intelectual e professor universitário do qual se espera, obviamente, por essas mesmas razões, que resolva, não que as aumente, os equívocos e as confusões sejam elas de que natureza forem na abordagem das matérias por si (em especial, publicamente) tratadas.


O que, na realidade, impede, na lei ou na simples lógica, um partido qualquer de defender, desde que o faça de forma legal e eticamente legítima, interesses sociais, económicos, políticos, de sector etc. só o próprio Moreira saberá dizer.


É evidente que, no caso de "programas de governo", as coisas são (ao menos em teoria mas mesmo aí, na prática, enfim! Adiante!...) substancial e substantivamente diferentes.


Apenas parecem ser a mesma porque Moreira atrás já confundiu tudo, metendo no mesmo saco duas coisas na verdade substantivamente distintas.


Pela extraordinária argumentação de Moreira, aliás, partidos como os ecologistas, por exemplo, não poderiam ou, no mínimo, não deveriam, até em termos legais, existir...


Mas, na verdade, segundo a teorização do articulista, é, em última instância, a própria liberdade democraticamente natural dos cidadãos para se organizarem em partidos que fica em causa, tendo, seguindo até às últimas consequências a argumentação apresentada, de dotar-se, no limite, a democracia de órgãos específicos de fiscalização da natureza idealmente... "transversal", como ele diz, dos interesses defendidos por cada partido, antes de poderem ser os mesmos autorizados a constar, já então legítima ou legitimadamente, do respectivo espectro político passível de "reconhecimento" ou "homologação"...


Senão como afere Moreira da "trasnsversalidade" e, por conseguinte, da "legitimidade" partidária por ele preconizada?


Como visão tácita da democracia é tudo isto, no mínimo, singular e ("to say the least"...) muuuito discutível...


Tal como é discutível quando o autor mais à frente retoma o 'mito' (para não lhe chamar outra coisa) dos partidos "de poder"--"com vocação (?) governativa", chama-lhe ele--vs. "partidos de protesto" ou "de causas".


Ou seja: antes já o autor destas "Eleições e "grupos de interesse"" tentou restringir, de forma, a meu ver, democraticamente indefensável e abusiva, o acesso à 'legitimidade' objectual de uns quantos partidos que ele entende não possuirem uma qualquer "essencialidade transversal" (ou transcendente?...) que ninguém senão o próprio perceberá muito bem como se determina e, em seguida, se afere e se mede ou se mensura; não contente com isso, acrescenta-lhe, ainda, uma condição adicional de "legitimicidade": o terem nascido (por obra e graça não se sabe tão-pouco ao certo de quem ou de quê...) com a tal (como ele diz) "vocação governativa".


Que o P.C.P., por exemplo, ou, até, num caso, o Bloco de Esquerda sejam poder e tenham acção (não sei se "vocação" mas seguramente intervenção e acção objectivas, efectivas, reais...) governativa num conjunto globalmente plural de órgãos de poder, não parece demovê-lo de persistir em argumentar a sua curiosíssima tese da existência de uma espécie de "raça eleita partidária" que resiste aos factos e, obviamente, também à vontade objectiva dos cidadãos e das sociedades por eles constituídos.


A menos que alguns não contem para o exercício argumentativo em causa (a atribuição efectiva ou o reconhecimento formal do tal estatuto imanente de "naturalmente aptos" para exercerem o poder) e outros, não menos naturalmente, sim...


Isto é, que, também para efeitos de "contagem", haja, afinal, "vocações natas" e carências dela...


Mas as confusões não se ficam por aqui: defende Moreira, com efeito, a também ilegitimidade (ou, no mínimo, a suposta "incoveniência democrática"---não sei exactamente como classificá-la...) de certos dos tais grupos "de interesse" para 'intervirem argumentativamente' na sociedade, concitando ao voto ao lado deste ou daquele partido.


Com toda a franqueza não sei, de todo, que substantivamente "credíveis" imperativos de "legitimidade política" podem objectivamente fundamentar esta restrição, sem implicitamente se admitir que é, por outro lado, legítimo limitar o direito dos indivíduos e das sociedades em geral à prorrogativa (volto a dizer: democraticamente natural) do exercício da livre expressão do pensamento e da opinião, desde que, obviamente não estejam a ser violados (mas isso não é aos outros partidos e aos "seus Vitais Moreiras" que compete dirimi-lo) direitos essenciais de legalidade e cidadania.


Tentar virar a realidade completamente ao contrário e "a gosto" aplicando aos grupos de opinião cidadã as mesmíssimas leis que se aplicam, aí sim, com toda a pertinência e inargumentável necessidade, aos programas de governo e aos próprios governos como tal é um malabarismo argumentativo de todo inadmissível em quem quer que seja que reflicta, com um mínimo de consistência e seriedade (para mais se o fizer a partir de um "púlpito" mediático dotado de substantiva "exposição" como é o jornal em causa) sobre a realidade política em que todos nós como cidadãos nos inserimos, tendo todos por igual o dever intelectual de fazê-lo com a cabecinha bem no lugar e sem desejar que seja a realidade a servir as "teorias" e não ao contrário, as teorias a inscreverem-se escrupulosamente na observação séria e cuidada da realidade.

É-o (inadmissível) por maioria de razão, num docente universitário que, ainda por cima, exerce no âmbito específico do Direito.


Por exemplo, eu (que sou assumidamente favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e à interrupção voluntária da gravidez tal como foi recentemente definida e referendada entre nós) não considero, em última instância, de facto ilegítima a intervenção, por exemplo, de grupos católicos, em maior ou menor grau ligados à hierarquia oficial da igreja, veladamente ou de forma expressa, em defesa da proibição legal de ambas e, de passo, do voto nos partidos que programaticamente a advogam.


Posso considerá-la (de facto, considero-a!) sim, auto-marginalizadora, dogmaticamente intolerante e, sob diversos aspectos, nos casos em epígrafe, cientificamente absurda porque retrógada: eu, se fosse católico, não me reveria, com certeza, nos posicionamentos em causa como, para dar ainda outro exemplo, na proibição de as mulheres ascenderem ou sacerdócio efectivo.

Sentir-me-ia pessoalmente incomodado, como pessoa e como cidadão, se uma instuitição na qual me integrasse discriminasse sem razões credíveis um dos sexos ou vedasse, sem qualquer motivo realmente credível e substantivo, a ambos o direito à felicidade pessoal em casos em que a garantia dessa felicidade não interfere, todavia, nem de longe nem de perto, com coisa alguma fora do estrito âmbito da privacidade pessoal dos invidíduos enquanto tal.


Mas não deixaria, por isso, de aceitar como politicamente legítima, ao menos em termos formais a defesa dos referidos posicionamentos.

Não por serem esses mas porque são expressões de um direito (o direito à opinião) que não vejo como legítimo contestar pela simples "razão" de eu ou qualquer outra pessoa não concordar com eles.

Se a igreja, com efeito, ou alguns (muitos ou poucos) dentro dela discordam de ambas as realidades atrás citadas, por que inexplicável "razão" há-de-lhes ser coarcatado o direito a intervir publicamente em defesa daquilo em que acreditam?


Configura qualquer dos posicionamentos atrás referidos, em meu entender, como disse, uma violência intelectual muito grave sobre quem, no seio da igreja, deseja liberdade e autonomia para decidir por si nas citadas matérias?
Eu acho que sim mas isso é lá com a igreja e com quem nela se integra--não sendo, em caso algum, obrigado a fazê-lo, isto é, a permanecer ligado a uma instituição a partir do momento em que entenda que algum ou algumas das normas por que esta se rege confluituam com a sua consciência e com a sua liberdade.


É matéria de opinião e opção: nada tem de ilegítimo a não não ser no plano puramentre ético e/ou eticamente intelectual e pessoal.


Aliás, eu também acho (e poderia facilmente demonstrá-lo) que o partido em que Vital Moreira veio cair advoga (e mais grave ainda, pratica) a defesa de interesses de sector e não vou ao ponto de reclamar a respectiva proibição: luto, sim, politicamente com a máxima determinação de que sou capaz contra ele mas não o excluo, seja de que modo for, da legitimidade política formal e genérica de que apenas não gozam os partidos que se põem conta a dignidade das pessoas ou os direitos humanos, em geral.


O "sonho" de fechar a sociedade por completo nos partidos claramente reconhecível por trás da retórica constante do texto do jornal configura, a meu ver, um projecto democraticamente malsão e inegavelmente perigoso que eu acreditava não ser já advogado fosse por quem fosse, hoje em dia.


Não pensa assim, é evidente, Vital Moreira que faz ainda uma última (óbvia!) confusão a juntar às outras todas quando se insurge contra uma daquelas que ele entende serem instâncias sectoriais ou "de interesses" pelo facto de, diz ele, terem intervindo contra um anterior governo do seu actual partido, em 2002 terminando, porém, por referir que "por falta de impacto eleitoral, essas tomadas de posição de interesse (sic) organizados não suscitaram qualquer reacção política".


A confusão aqui reside no seguinte: Vital tem, como é fácil perceber, medo que aos partidos (designadamente ao 'seu' cuja actuação tem sido causa de crescente descontentamento e perturbação social) escape de vez, em resultado precisamente da clamorosa "má cabeça política" da maioria dos agentes políticos que o compõem, a tutela exclusiva (e abusiva!) da opinião pelo que, consciente ou inconscientemente, escamoteia uma verdade, porém, para todos, óbvia: não é de falta de reacção política que ele fala, de facto, quando, designadamente no parágrafo anterior, a esta se refere.

Se fosse, o seu texto deixaria pura e simplesmente de justificar-se: que interessa, efectivamente, que este ou aquele grupo social concite ao voto no partido A ou B, se, em resultado disso, nada acontece no plano político concreto?

É, pois, precisamente ao contrário, da reacção política de cada vez maior número de grupos sociais (professores, médicos, enfermeiros, etc. etc.) cuja desactivação política directa visa, no seu texto, de um modo muito... singular e muito pessoal, muito "teorizar") que ele está implícita mas também evidentemente a falar: é ela que ele na realidade receia--simulando, todavia, não entender que a reacção política básica em Democracia vem do voto: não é o voto a expressão máxima da re/acção política em democracia?...

Perder eleições é (e ele sabe-o, até por razões de natureza pessoal directa recente) o efeito limite dessa re/acção.


[Imagem ilustrativa fitsnews.com]

Sem comentários: