Devo ao meu ex-colega e amigo, o dramaturgo Armando Nascimento Rosa, o ensejo para re/descobrir Beckett e, de uma forma muito particular, António Patrício. Eu conhecia a Obra de Beckett, ainda dos anos '60, quando o Beckett "apareceu" em Portugal integrado no que, à época, fez furor, no âmbito de um estreitíssimo 'círculo' de intelectuais portugueses, sob a designação genérica de teatro "do absurdo"onde se integravam, além do Beckett, Ionesco, Adamov, Max Frisch, Pinter, Genêt e até o espanhol Arrabal.
Para muitos, existia, aliás, uma fronteira extremamente fluida e indefinida, indecisa (coisas de um Zeitgeist global que começava timidamente a ter algum eco em Portugal) entre o dito teatro "do absurdo" e algo que à época fez também furor, mas na prosa novelística, sob a designação ampla (de facto, muito ampla e, também, muito imprecisa!...) de "nouveau roman".
Neste, cabiam a Duras (a minha preferida, a mais humana, profunda e luminosa de todos); o Robbe-Grillet, (uma espécie de "papa" e entidade pouco menos do que tutelar da "escola"); a Sarraute (que era a "teórica" do movimento, autora de uma "L'Ère du Soupçon" e que era narrativamente gélida e ortodoxa em excesso, para o meu gosto) e diversos outros (como, por exemplo, o Le Clézio) que foram, um após outro, aparecendo na esteira do triunfo destes 'herdeiros ficcionais' de Husserl ou, se assim se preferir dizer, de uma certa ideia radicalmente céptica e relativa de "fenomenologia".
Em Portugal, coube a Alfredo Margarido a honra de fazer (com "No Fundo Deste Canal", sobretudo), "literature du regard" ou "nouveau roman" à portuguesa.
Bom, mas isto para dizer que, no meio disto tudo, lá vinha, então, o Beckett editado pela "Presença" e representado em Lisboa (com aquele tipo de abafado, limitadíssimo e surdo escândalo) que as coisas invulgares e, de um modo ou de outro, 'excitantes' costuma(va)m (não) fazer entre nós...
Durante muito tempo, tendi a (não) ver, confesso, o Beckett à luz (ou, mais exactamente: à sombra...) desta "armazenagem teórica e crítica" que, de uma forma profundamente preconceituosa e injusta apenas podia contribuir para desentendê-lo e limitar completamente a compreensão da sua Obra.
Foi o convite do Armando para traduzir "All That Fall" para o João Mota e para a Comuna que, de alguma forma, despoletou em mim o desejo de reler de novo (completamente de novo) o máximo que me fosse possível da opus do criador de Godot ("to read it afresh") e desse desejo viria, então, a surgir uma espécie de segunda vaga de atenção (uma vaga de "becketismo" então já maduramente crítico) que me permitiu ver retrospectivamente o quanto injusto e idiota fora até aí e o quanto havia intelectual e literariamente perdido com isso...
Já com Patrício, as coisas foram um pouco (ou talvez um muito...) distintas. A verdade é que eu sempre "pairei" muito ali para os lados do Chiado e arredores. Em miúdo, ia à Bertrand ver (era só ver, claro----e de longe!) o Aquilino, o Manuel Mendes (cuja casa chegaria, aliás, depois a visitar algumas vezes já que a esposa, a D. Bertha Mendes, foi minha professora) e (julgo eu, embora à época o seu nome me dissesse comparativamente muito pouco) o António Sérgio que (volto a dizer: julgo) também por ali "pairava".
Ora, sucede que no meu discreto (e embasbacadíssimo!) "chiadismo", estava incluída, religiosamente, uma visita à velha Barateira e à casa livreira do lado, um alfarrabista já 'com pretensões' e que foi, suponho eu, também editor ou distribuidor de, algumas pelo menos, obras do Patrício.
Aí, comprei os exemplares que possuo do Autor d' "O Fim" a cujo conteúdo, todavia, só viria a prestar a atenção que indiscutivelmente justifica, também quando o Armando solicitou a minha modestíssima colaboração na revisão de um acervo de textos patricianos que a Assírio & Alvim está, de resto, a editar (em alguns casos, a re-editar) com textos críticos do Armando que, além de dramaturgo, é, como se sabe, também ensaísta e professor da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Bom, mas aquilo que eu pretendia aqui, sobretudo, dizer (ou repetir) e acentuar é que a modernidade do Patrício (sublinhada, por exemplo, também por Jorge Listopad que chamou a Patrício, por estas ou por outras palavras, "uma espécie de Beckett avant-la-lettre") me foi inesperadamente confirmada por ocasião do visionamento de um filme do Valerio Zurlini, realizado sobre um texto de Dino Buzzati, escrito vários anos após Patrício ter escrito a sua bela e original Obra: "Il Deserto Dei Tartari".
Ora, "Il Deserto Dei Tartari", uma soberba narrativa do kafkianíssimo Buzzatti (que até é autor de um "K..." onde "cita"... descaradamente o mestre d' "O Processo"...) "é" "O Fim" re/escrito à distância das décadas que separam os dois escritores.
"Il Deserto..." é a "estória" de uma guarnição militar que, posicionada no meio de um imenso "deserto" de kafkiana, in-situável aridez, espera a todo o momento o golpe de misericórdia que lhe há-de ser dado por uma horda de "tártaros" que há-de chegar para exterminá-los.
Pelo meio, a desesperada geometria de sofisticados, elaboradíssimos, decadentíssimos, rituais de honra que a aniquilação impendente torna excruciantemente absurdos e desesperados---meras "dansas macabras" de um pequeno grupo "agonizantes existenciais" que, "à Hamlet" ou "à Büchner", se entrincheiram atrás da absurda rigidez dos próprios gestos para não enlouquecerem e simularem, ao mesmo tempo, uma existência que na realidade já não possuem.
Vendo o filme de Zurlini e lendo o texto de Dino Buzzati percebemos com Listopad que Patrício não só "previu" Beckett como "intuíu" a Obra cultu(r)almente angular de um Kafka assim como "antecipou" ainda uma outra obra (a de Buzzatti) que ninguém hoje-por-hoje, negará ser uma obra da mais extrema, 'absoluta' e excitante modernidade.
[Na imagem: Dino Buzzatti]
[Na imagem: Dino Buzzatti]
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