domingo, 17 de fevereiro de 2008

Um cantinho para a Mãe

Um cantinho para Ela, pois!...
A minha Mãe era única---como todas, aliás!...
Só que a minha era única de um modo especial, absolutamente irrepetível.
De um modo---lá está!---único.
Dela herdei uma certa pulsão instante e persistente para a seriedade, o pendor dramático particular que me leva, volta-não-volta, a ser a única de uma quantidade enorme de pessoas a ver o terrível em tudo...
[Há uma personagem fabulosa do Arkadi Avertchenko de que me lembro sempre que penso (e penso muito!...) na minha Mãe.]
Para Ela, como para ele, a Vida era para levar (mesmo!) a sério!
Felizmente, como sou Aquário e um pouco (ou, pelo contrário, um muito?...) louco, os meus sérios não chegam a durar quase nada...
Não duram tanto como os dela, em todo o caso...
Eu adorava a minha Tia Graziela (que era irmã da minha Mãe) porque elas eram entre si o complemento, no fundo, ideal e perfeito uma da outra e, às vezes, eu tinha ambas ao mesmo tempo para me darem à vez os dois lados da vida e da realidade em geral. A minha Tia (que faleceu em Inglaterra, há pouco tempo; que viveu a "blitz" toda em Londres; que teve um filho deficiente profundo---Charles, como eu---e o viu morrer após uma longa agonia, passada quase toda debaixo dos bombardeamentos alemães, entre a casa e o abrigo anti-aéreo, durante a Batalha de Inglaterra; que era assumidamente uma mulher do Sul, uma mediterrânica pequenina e alegre, alentejana dos cinco costados que se viu subitamente exilada na permamente névoa londrina; que viu o primeiro marido, também inglês, o Booth, desaparecer misteriosamente após a guerra, sem que alguma vez se chegasse a saber ao certo que fim teve; diziam uns que era espião inglês, outros que o era dos soviéticos e que fugiu para a U.R.S.S. ou foi preso e morto pela PIDE, ao certo nunca se soube); pois, a minha Tia tinha um riso fabuloso, de vidro ou de cristal, um "riso de erva tenra e de terra húmida" que nunca perdeu, nem quando a doença a atacou traiçoeiramente pelas costas, num país que era, oficialmente, o dela mas que ela nunca aceitou completamente---um riso que às vezes me parece ainda hoje escutar quando penso nela, já viúva do meu Tio Jack, falando seu inglês feito de "erres" e de infindáveis sílabas finais tão opulentas, tão doces, tão... esféricas ou tão cilíndricas e tão alentejanas como ela...
Onde e quando a minha Mãe dramatizava, a minha Tia vinha por trás e resolvia tudo com o seu riso "de prata lavrada" e aquela característica determinação de "velhinha inglesa" típica que nos levava, à minha prima Bella Catalina e a mim, a brincar com ela chamando-lhe "a nossa Miss Marple"...
Mas a minha Mãe não 'era' apenas drama: recordo-me de, um dia, ter chegado a casa para as férias do Natal e julgar ter pousado a pasta da escola, à porta antes de entrar. Estava firmemente persuadido de tê-la trazido da escola e esquecido ali. De início, foi uma tragédia: o meu Pai que era médico-veterinário, era um quadro médio do fascismo (na Junta Nacional dos Produtos Pecuários), vivíamos com dificuldades óbvias (embora seja justo dizer que, em termos comparativos, éramos autenticamente privilegiados) e perder uma pasta, livros da escola, lápis, canetas e tudo o mais era realmente "complicado"...
Pois, como disse, inicialmente a minha Mãe ficou zangadíssima, verberou a minha distracção, chorou (e fez-me chorar a mim...) mas com a sua fabulosa intuição e a sua imensa, infinita sensibilidade, acabou conseguindo fazer do que a mim, pessoalmente, se me afigurava uma tragédia iabsolutamente irreparável, um inesquecível ensejo para nos tornar ainda mais cúmplices um do outro e para eu perceber o quanto podia custar à mulher de um pequeno quadro do fascismo "governar", como ela dizia, uma família inteira...
Por acaso, distraído como sou, tinha deixado a pasta no colégio (o "Académico", da Rua Álvaro Coutinho que eles, os meus Pais, se viam "em palpos de aranha" para pagar...) e, assim, para além do maravilhoso ensejo que o incidente nos deu de nos aproximarmos mais ainda, tive a grata surpresa de ver o "drama" resolver-se por si só e a lição de que devia ter mais cuidado com as coisas "que tantas coisas temos de deixar para trás para as podermos comprar" saldar-se, afinal, por um preço bem menor do que havia inicialmente temido...
A minha Mãe tinha uns olhos imensamente fundos e tristes que nos liam dentro.
Ainda hoje, olho para o retrato prodigiosamente triste e sério daquela mulher extraordinária que não teve dúvidas em casar com um negro no Portugal provinciano e acanhado da década dos anos 40 e sinto uma incrível dificuldade para perdoar à Vida o não ter sabido conservar consigo (e connosco!) aquela que era o ser mais belo e mais imenso de um universo que não sabe o que perdeu levando-ma quando, com quinze anos, eu tinha ainda tantas coisas para lhe mostrar e lhe dizer!...

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