domingo, 10 de fevereiro de 2008

Há dias em que não sou mesmo nada "de esquerda"...


Em dois ou três domínios, não o sou, com efeito.

Quero eu dizer: dessa espécie de... 'esquerdalha' acéfala, interesseirona e obstinadamente indefinível que até há bem pouco se acoitava no 'meloso' "pê-ésse" de Soares & Co. e que hoje parece ter-se definitivamente "mudado para" (ou "alojado" no?) pós-político (e eticamente... "desempoeirado" ou "descontraído" e sempre alegremente por completo "descomprometido") "neo-pê-ésse" de Sócrates e quejandos.

Por exemplo(s): sou (determinadamente!) pela legislação anti-tabágica (que, de resto, continua a parecer-me ainda excessivamente permissiva e, sobretudo, permissivista, digamos assim); também discordo (e frontalmente!) da "legalização" do consumo de (mais?) drogas; e, inclusivamente em matéria de 'despenalização do aborto', mantenho as (aliás, seriíssimas!) reservas que nesse âmbito sempre mantive (não por acaso nem por desleixo ou por ausência de consciência cívica e política, fiz, aliás, questão essencial de não votar no respectivo referendo).

Mas comecemos, então, por este último caso, o da famosa 'despenalização do aborto': no domínio deste, discordo obviamente daquilo que, a meu ver, em termos práticos, é muito provável que venha a resumir-se, em última instância, ao abandonar mais ou menos definitivo de qualquer projecto minimamente consistente e sólido de Educação Sexual e Planeamento Familiar a levar a cabo no improvável dia em que Portugal consiga finalmente ter um governo simultaneamente sério---e a sério.

É claro que, na prática, haverá sempre os que, em público (mui virtuosamente, aliás!) hão-de fazer um verdadeiro "espectáculo" (às vezes, de marionetas mas enfim...) do caracteristicamente sonoro vociferar contra a "cultura de morte, em defesa da vida" e coisas similares mas que, na confidencialidade das urnas onde tudo se decide realmente (nas Democracias como nas... "retrocracias" e nas "demomorfias instrumentais" do tipo daquela sob a qual temos todos de---não sei se será correcto dizer assim: viver) não deixarão de dar o seu inestimável contributo para continuar a entregar o poder de conservar literalmente intacto o statu quo cívico, civilizacional, institucional e, em geral, político aos mesmos que da manutenção integral desse mesmo statu quo fazem um (aliás, chorudo!) modo-de-vida senão mesmo uma mais do que lucrativa... indústria, económica e política.

Não percebendo ou fingindo não perceber esses cidadãos eleitores que, enquanto supostos políticos com os virtualmente incontrolados poderes que hoje possuem puderem seguir "democraticamente" mantendo-os (e sobretudo, mantendo-os nessa obscena condição de poder objectivamente absoluto) nada mudará, naquele plano ou naquele nível onde ela realmente se forma e se determina, na tal cultura "de morte" que, todavia, fazem pública (e sempre convenientemente ostensiva e ruidosa!) questão de seguir "veementemente desaprovando"...

Depois, a "tal" questão das drogas: também aqui, "despenalizar" equivale, em termos práticos, a avalizar a "transferência" política do pingue negócio da "aquiescência política objectiva" e/ou da "alienação por via química" das mãos das (quase?) "margens" do próprio sistema económico-político-financeiro como tal para o próprio interior deste, com tão óbvia quanto incalculável sobrevantagem para a indústria química "legal", num amplíssimo (mas imoralíssimo!) leque que vai das multinacionais suiças às norte-americanas, das Roches às Pfizer e ao próprio sistema bancário no seu todo---e vice versa.

Também, aqui, se não consegue, muitas vezes, discernir entre lutar efectivamente (neste caso, contra as drogas) e fazer exteriormente que se luta com o único propósito (político, meus senhores, político! Político mas no pior dos sentidos possíveis da palavra!) de conservar sob tão "relativo" quanto "exteriormente decoroso" controlo os inevitáveis "efeitos im/puramente colaterais" do consumo generalizado dessas mesmas drogas (designadamente, as taxas de incidência do HIV ou da hepatite B).

A verdade, todavia, é que seria democrática e até civilizacionalmente vital que se entendesse com toda a clareza que ceder dessa forma no combate às causas últimas que favorecem o consumo equivale, em última mas real instância, a caucionar de facto todo um modo de vida económico, social e político, toda uma injustíssima... "civilização" assente na geração (de facto, in) essencial das mais profundas e inevitáveis desigualdades; na desestruturação constante e consistente das famílias; na "produção" estável e "sistemicamente elemental" de carência(s) de toda a ordem e obviamente de níveis cada vez mais gravosos de desemprego, (como dizer?) "indexado" que se encontra este último, como se sabe, à injustissima e descentralíssima "integração política" da tecnologia na História feita pelo capitalismo industrial mas, sobretudo, pós-industrial; numa "civilização", numa palavra, assente em tudo aquilo que gera em muitos de nós a pulsão consumidora primária que é, afinal, o que alimenta na base a produção e o comércio ou a indústria hoje-por-hoje, de facto apenas aparentemente ilegal das drogas, onde quer que ele exista e/ou floresça.

Por último, o item tabaco.

O neo-obscurantismo pró-tabágico que pretende de uma forma tão estúpida quanto intelectualmente criminosa (de uma forma, na in/essência, em tudo... 'medieval'!) fazer da negação das conquistas (e até das evidências!) científicas uma mera questão supostamente "filosófica" de "liberdade" e (epistemológica e cientificamente mais grave ainda) "de opinião" encarniça-se a propugnar pelo triunfo do "direito democrático" ao "livre arbítrio" e à "livre" opção via vício.

Ora, eu poderia até aceitar que cada um pudesse (ou mesmo, em tese, devesse) gozar de um qualquer 'direito democrático' a matar-se "por roleta russa" ou por qualquer outro meio mais ou menos "excitante", "gozoso" e "estatístico"; aquilo que já, porém, não admito em caso algum é que os 'suicidas estatísticos por via nicotínica' beneficiem do direito a ocupar o lugar, no que resta do Serviço Nacional de Saúde, de nem que seja um único daqueles cidadãos doentes que, porém, nada mais fizeram para contrair os respectivos padecimentos do que trabalhar ou simplesmente viver e que têm, assim, tantas vezes, de esperar que aquele cada vez mais decrépito e periclitante 'Serviço'... "Social" atenda os... suicidas para poder, então, dedicar-lhes uns minutos (e uns euros públicos!) de cuidados...

Mais: não posso admitir (nem admito!) que uns tantos "comam os figos" de uma boa cigarrada ou de uma "suculenta" cachimbada mas seja a outros (a todos nós, afinal) que "rebente a boca" quando se trata de custear o "prazeiroso direito" daqueles cidadãos tão injustamente privilegiados no acesso ao... "livre" "suicídio nicotínico"!...

Assim, é fácil (e comparativamente barato!) ter "direitos individuais": se for (como efectivamente é!) em 'regime' de "eu gozo, todos pagamos" até nem se pode dizer que seja mau negócio!...

Ora, é nestes casos que eu decididamente não sou nem quero ser... "de esquerda".

Mas "de esquerda" com aspas, entenda-se...

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