quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

De Novo o Cinema "Histórico"


Dizia-me alguém a propósito do que noutro lugar escrevi sobre o cinema dito "histórico" qualquer coisa como isto: "Então você, falando de cinema histórico, refere-se ao Hawks, ao De Mille e ao Rossellini e acha que 'pouco mais se fez' do que aquilo que eles próprios fizeram nessa matéria??!! Oh, meu caro: então e o von Sternberg? E o Lang? E o Eisenstein? Por amor de Deus, e o Eisenstein??!! Você esqueceu-se do Eisenstein??"

Não! Não me esqueci do Eisenstein nem do Kubrick, nem seja de quem for.

O que eu acho é, todavia, que o que se passa aqui, neste domínio, tem muitas semelhanças com o que acontece, por exemplo, no cinema muitas vezes confusa e indiscriminadamente chamado "policial".

Ou seja, que é preciso compreender que existem, na realidade, dois tipos ou dois "géneros" de cinema dito «histórico»: um, composto por aqueles filmes que fazem da matéria "histórica" um campo de reflexão profunda e, ao mesmo tempo, ampla, alargada cujo âmbito excede largamente a época (embora não a "epocalidade", digamos assim...) directamente abordada no filme ou romance.

No "objecto narrativo" em causa.

Aquilo que interessa ao narrador, nesses casos, é claramente a análise ou a consideração dialécticas da realidade para o que circunstancialmente se debruça sobre a "passagem" dessa mesma realidade por um determinado quadrante, digamos assim, do tempo histórico---grafando nós "histórico" agora, por razões que certamente se compreendem, sem quaisquer aspas ou restrições.

Não por acaso, referi o facto (documentado) de Hawks ter começado por planear fazer o tal filme ("Land of the Pharaos") sobre a construção de um aeródromo na China tendo acabado por fazê-lo sobre a edificação de uma pirâmide no Egipto alguns milhares de anos antes.

Isto, como disse, por um lado.

Por outro, ao lado deste, há, também, um tipo de cinema (como chamar-lhe?) tendencial ou mesmo realmente "ilustrativo" para o qual a "História" (no sentido estr(e)ito da "anedota" ou da "crónica") constitui o fim último (ou, se calhar, até único) de si mesmo, considerando-se, em geral, implicitamente, por outro lado, que, sobre a História, pouco mais haverá (de facto e, se calhar, também "de direito"...) a fazer do que "re/contá-la" e "re/confirmá-la" continuamente através da ficção.

No cinema de De Mille ("The Ten Comandments") ou de Mervin Leroy ("Quo Vadis") ou no William Wyler de "Ben Hur" (ao contrário do de Kubrick em "Spartacus", por exemplo) a História é, então, ao menos tacitamente, concebida como algo, um «objecto factual» sólido e, muitas vezes, literalmente inamovível, ou seja, estruturalmente desprovido de qualquer hipótese sequer de espaço para a mudança, que é como quem diz para a intervenção (nem sequer crítica ou... "criticional") dos indivíduos relativamente a ela, situando-a, pois, realmente fora do alcance da vontade ou do desejo humanos.

É verdade que com "Barry Lyndon", Kubrick fez, também ele, um tipo de cinema a que poderíamos sem grande dificuldade chamar "ilustrativo".

Mas aí, Kubrick (que era, de facto, à semelhança de um Laurence Olivier quando se meteu a levar Shakespeare ao cinema, um narrador notável) escudou-se na sua espantosa capacidade pessoal para "efabular plasticamente", isto é, para 'pôr a própria Beleza directamente a reflectir' (senão sobre outra coisa, sobre si mesma, com certeza) mas não só: "Barry Lyndon" (como "Lolita" ou "A Clockwork Orange") tem inscrito em si a marca do "cru dedo profanador" do cineasta, isto é, da sua vocação narrativa particular para discorrer, com uma ferocidade por vezes verdadeiramente implacável, meticulosa e distintiva, sobre a crueldade e a abjecção, ou seja, sobre a espantosa vocação humana para a ferocidade, por um lado assim como, por outro, para a sordidez e a mais humilhante indignidade---senão mesmo para a total dissolução.

Que é, segundo ele (basta comparar "Lolita" com "Barry Lyndon") não de uma das de todas as Histórias.

Ora, é esta vocação específica para a universalidade, esta apetência crítica pela totalidade, que distingue(m) o Cinema histórico de um Eisenstein (ou de um Rossellini ou de um Kubrick e por aí adiante) do cinema pseudo-histórico de um De Mille ou de um Mervin Leroy quando se mete(m) a falar de coisas (em mais de um sentido, aliás...) para eles, intocáveis ou "sagradas".


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