Começo por uma (franquíssima!) admissão: não resisto a uma boa, bem concebida, bem estruturada e, sobretudo, bem dirigida transgressão!
Grandes, belíssimas, provavelmente insuperáveis trangressões (ou mesmo "educadíssimas, disciplinadíssimas profanações"!) são, por exemplo, "Belle de Jour" ou "Tristana" de Buñuel, indiscutivelmente dois dos meus filmes "de cabeceira".
Incomparavelmente menos bem conseguida mas, ainda assim, interessante é "Malpertuis" de Harry Kümel, uma fábula sobre a morte dos deuses mas, sobretudo, sobre a desgraça histórica, social, cultu(r)al e política que foi a "tomada integral do poder" pela burguesia, no Ocidente.
É preciso dizer que (do meu ponto de vista pessoal, pelo menos) essa "prise" burguesa "du pouvoir" (que começou, de resto, por constituir um fenómeno económica, social, política e até, noutro plano, epistemologicamente revolucionário) em breve se degradaria e inflectiria drasticamente (uma vez, "caçada" pela "camada" superior da nova classe a "propriedade da propriedade" histórica e política à aristocracia deposta...) culminando todo o processo nesse momento absolutamente chave no trajecto global para a imposição formal da nova ordem que foram o fascismo em Itália e o nazismo, na Alemanha.
Quando, com efeito, efectiva mas também simbolicamente, o rei de Itália chama Mussolini a chefiar o governo ou, na Alemanha, von Hindenburg entrega a um Hitler já com parte da sua truculenta aura inicial meio desgastada o poder, aquilo que ambos (sobretudo, o primeiro, por razões óbvias) estão, de facto, a fazer é a assinar a rendição, como disse, simbólica final, da velha ordem aristocrática e a a homologar ou a consagrar (a com-sagrar...) a respectiva substitução formal por aquela classe que, resolvidos alguns conflitos e contradições internos com os respectivos aliados de ocasião---o povo) emergira triunfante da Revolução Francesa.
O nazismo e o fascismo foram, a meu ver, a tentativa natural por parte da classe vencedora de, uma vez imposto na base o "paradigma producional" capitalista industrial, encontrar, na superestrutura institucional, o preciso e exacto correspondente político que fizesse todo o sistema assim constituído funcionar sem 'intervalos' ou 'interrupções': sem soluções de continuidade institucional mas também cultu(r)al além de, claro, política.
Fritz Lang em "M...", outro filme absolutamente definitivo ao lado dos que já citei, discorre, com uma eloquência verdadeiramente prodigiosa, sobre os efeitos práticos, objectivos, objectuais e materiais, dessa tentativa, reportando-os tão contínua quanto dolorosamente ao quotidiano concreto dos indivíduos.
Quanto à "democracia" moderna, ela mais não é, por outro lado, na realidade, do que a admissão por parte do sistema da sua própria impossibilidade estrutural (em si mesmo, o capitalismo é uma "perfeita" e "perfeitamente paradigmática" 'falácia de composição': um exemplo "perfeito", se os há, da figura em causa!); impossibilidade (des) estrutural essa que o leva, ao capitalismo político, a ter continuamente de recorrer ao "enxerto" sobre si mesmo de "quantidades significadas" de "ar" (instrumentalmente!) político (ou, se assim se preferir dizer: de formas funcionais "estratégicas" de "liberdade" trazidas de fora de si) a fim de seguir possibilitando-se continuamente no concreto da própria História e da Política modernas.
Ou seja, ela emerge na História quando o sistema percebe que o projecto inicial de "fechar" a política por completo "em cima da" economia e especificamente do modelo económico capitalista industrial típico, eliminando por completo os espaços e as frinchas entre o económico-financeiro e o político apenas serviria para pôr generalizadamente em evidência a tal impossibilidade (des) estrutural de que atrás falava.
É por isso que, no "ocidente" pós-fascista, no mundo pós-'45, "economia" e "democracia" apenas raramente se encontram--e mais raramente ainda coincidem realmente: em regra, permanecem sempre impendentemente alheias ou alienadas entre si---exactamente porque o sistema não é orgânico mas são im/puramente instrumentais e funcionais os paradigmas mais estáveis e típicos de relacionalidade entre ambas.
É por isso também que o papel da Arte e dos Artistas na organização da dissensão insurreição se é, em qualquer caso, sempre desejável e necessária, o é ainda mais neste nosso inorgânico tempo de economocracia ainda e sempre (mal) disfarçada de "política".
E é por isso que eu admiro e cultivo (ou tento consistentemente cultivar!) a discrepância e a dissidência como modo ou modos (dialécticos e sempre premeditados) de vida, por assim dizer.
"A Boba" de Maria Estela Guedes (com quem compartilho, além do mais, uma espécie de visceral interesse pela beckettianíssima obra de Herberto Helder, indiscutivelmente o maior poeta português vivo) cativou-me, dentro deste espírito de "educada transgressão" porque traz para o Teatro, de uma vez só, inteligência e bom gosto literário, dissídio e qualidade, Groucho Marx e Ralph Ellison, misturando ambos numa "coisa narrativa" extremamente excitante e sempre provocatória.
Traz Ralph Ellison, o grande escritor negro, na tragédia da dilacerante "objectuicidade" e trágica "invisibilidade" sexual da Mulher 'boba' como metáfora da des-integração existencial total: de Ellison o fenómeno "vem" (como dizer?) significadamente "transgenitalizado" ("Women are the niggers of the world", dizia Lennon) para a obra de Estela Guedes; já de Groucho vem o sarcasmo arrasador, a dor e o ressentimento (o explosivo potencial neurótico?) sob a forma caprichosa e cintilante do mais brutal escárnio assim como da mais revolucionária zombaria.
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