terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A "questão monárquica" na 'ordem do dia' (2)


Outra reflexão suscitada pelo texto abaixo citado de Miguel Real:

Escreve este, a dado passo: "(...) não estou seguro de que a I República tenha valido a pena e estou convicto de quie a prática do assassínio político (Sidónio Pais; a matança de Machado dos Santos e seus companheiros) e a permanente situação de bombismo anarco-sindicalista, nela imperante, derivaram em grande parte do eticamente infame e politicamente suicida assassínio de D. Carlos às mãos de extremistas da Carbonária em 1908".

Ora, eu pessoalmente não duvido de que uma cultura do assassínio político tivesse, a dada altura, apresentado, em diversos pontos do mundo, europeu e não só europeu, tendências históricas para se transformar em extensão 'natural' da intervenção política.

O que é preciso perceber é porquê.

E o porquê reside, a meu ver, por um laso no sólido fechamento das sociedades incapazes (em resultado da sua relação 'de episteme' com a Política de que falo no ponto anterior) de construirem pontes institucionais entre as massas e o poder. De facto, não apenas tais pontres não interessam ao poder como são, inclusivamente, o oposto daquilo que ele quer.

Ou seja: muito claramente (por definição) o poder não pretende ver-se questionado ao ponto de ter de arriscar-se ver mudar o essencial do modo (eu diria: descentral e socialmente injusto) como estão organizadas as relações centrais entre o económico e o político.

A relação in-orgânica, alienada e democraticamente disfuncional que o poder político mantém com as massas (as eleições são, ainda hoje, em úlima instância, vistas claramente por ele como um modo, digamos: cordial e, claro... "democrático", de manter a cidadania confortavelmnte afastada do risco de, de facto, agir politicamente...); essa relação inorgânica e estruturalmente disfuncional , dizia, não é um acidente histórico, social e político.

Pelo contrário: é uma condição, um pressuposto essencial do próprio modelo político!

É, aliás, por isso que, ainda hoje, vemos um primeiro-ministro e um presidente democráticos da República convirem para declarar, aliás com com toda a naturalidade, que não "podemos, como país, arriscar-nos a ver a tal constituição-europeia-com-outro-nome rejeitada em referendum" ou qualquer coisa do mesmo género.

Ou seja, por outras palavras, que a democracia é um risco que não podemos, em caso algum, correr,...

É por isso, também, que temos hoje, em vez de Democracia real, uma "demomorfia instrumental" ou "retrocracia" que nos permite des-votar ciclicamente maus representantes (?) da vontade (??) popular (daí o termo "retrocracia"...) e nos confere, como comunidade, o "direito de escolhermos livremente o nosso próprio... passado", numa paródia amarga da clássica definição de Democracia como a livre escolha do futuro individual e colectivo das sociedades humanas (e daí a expressão "demomorfia"---porque se trata realmente de investir na forma da Democracia para, realmente, negá-la---e "instrumental" porque ela, essa forma geral avulsa e descontextual da Democracia, é na realidade usada como mera alfaia ou instrumento politiforme da infraestrutura económica relativamente à qual o revestimento político da economia deve, essa sim, precisa (ou imprecisamente) tudo fazer, no seu âmbito específico de intervenção, para evitar que mude).

É, de igual modo, por isso, que não existem, ainda hoje, entre nós, numa República com várias décadas de existência, instrumentos verdadeiramente eficazes de controlo e fiscalização democrática em tempo real, persistindo, de forma persistente e contumaz, a figura de um regime de cedência cíclica do poder, em lugar de um outro de cedência igualmente cíclica mas apenas funcional do EXERCÍCIO do poder que é aquilo que permite distinguir realmente a Democracia das formas comuns de "autocracia plebiscitária" que invariavelmente se pretende que confundamos com ela.

É, pois, por isso que não existe entre nós um Tribunal de Execução Política, concebido à imagem do Tribunal de Contas e do próprio Tribunal Constitucional, com poderes efectivamente tribunalícios, onde devessem ser obrigatoriamente depositados os programas políticos dos candidatos a cargos de representação política de modo a serem objecto des penas políticas formais (suspensão temporária ou, eventualmente, definitiva de se voltarem a candidatar) os habituais embusteiros e trapaceiros da cidadania para quem, como ainda há pouco escrevia (e verberava com justíssima indignação António Barreto no "Público") a "cultura" da mentira (também eleitoral) se converteu já (como o assassínio político, noutros tempos...) num instrumento "natural" de intervenção... cívica e política.

Concluindo, pois, este ponto, o que é vital é perceber por que razão as sociedades podem tornar-se politicamente violentas.

E é, a meu ver, vital percebê-lo porque, se conseguirmos minimamente fazê-lo, passa a ser-nos possível compreender toda uma vasta fenomenologia transtemporal e trans-histórica que inclui a Primeira República e o período que imediatamente a antecedeu, no período a que se refere Miguel Real, é verdade, mas, também e de algum modo sobretudo, por exemplo as mais diversas formas de violência religiosa/fundamentalista moderna, um dos mais tenebrosos papões do nosso tempo mas, de igual modo, uma das mais comuns mistificações desse mesmo tempo.


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