terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A "questão monárquica" na 'ordem do dia' (3)


Terceira reflexão sobre o texto de Miguel Real:

Esta terceira reflexão incide de modo específico, sobre a afirmação nele feita de que, na opinião do seu autor, "a evolução da monarquia para a república era inevitável", tendo em conta a atmosfera política da Europa e mesmo fora desta, dos Estados (ditos) Unidos à época.

Pessoalmente, é esta também a minha opinião, sem dúvida. Esta transição institucional (que, em certos casos como o portugês, foi sangrenta e só com muita boa vontade se pode chamar 'transição'...) representa, em última instância, a consagração mais ou menos simbólica ou simbológica de um render-de-guarda social e político, de um render-da-guarda histórico e civilizacional, que foi tendo, praticamente desde a Idade Média, lugar a nível das camadas infrastruturais das sociedades do ocidente, a portuguesa incluída.

É minha opinião, com efeito, que a Revolução Francesa representou um ponto de viragem decisivo num processo de apropriação social e política da propriedade por parte de uma classe---a "burguesia"---que trouxe para a História, realmente, um elemento de modernidade absoluta, ainda hoje decisivo no nosso modo contemporâneo de perceber e representar as relações dos indivíduos (e das sociedades por eles formadas) com a História.

Aquilo que a 'nova' classe traz é a ideia de que, para se aceder à propriedade, é essencial "justificar técnica e politicamente" o "direito" a fazê-lo.

Mais: que a "justificação" política resulta do "argumento" técnico e acha nele um fundamento essencial, determinante. Os regimes políticos modernos todos sem excepção, consagram este princípio teórico básico 'oferecido', como disse, pela "burguesia" à História e às nossas representações modernas dela.

Ou seja, agora a propriedade não se pode apenas ter: é preciso justificar a respectiva posse.

Isto, numa primeira fase, digamos assim: aquela a que eu chamo de 'de preponderância ou de domínio básico da primeira burguesia'. A nossa concepção democrática ainda geralmente vigente de "Escola" (ou, como prefiro dizer, de "escolicidade") vem daqui ainda, isto é, do tempo em que a Educação era vista como um veículo efectivo, real, de democratização do saber o qual era, por seu turno, aquilo de que a burguesia e os burgueses necessitavam vitalmente para justificarem, no plano político, o seu "direito" a participarem na "partilha geral da propriedade", deixada historicamente "vaga" ou "devoluta" pela aristocracia.

...Aristocracia essa cuja capacidade para "explorar eficazmente a realidade" se achava, pois, globalmente perdida. Basta ler Pirandello ("Fu Matia Pascale", por exemplo) ou, por outro exemplo ainda, um livro interessantíssimo de Maria Edgeworth intitulado "Castle Reckrent" para se perceber imediatamente como os caseiros e capatazes, em Itália como na Irlanda, substituem, com toda a naturalidade, a nobreza arruinada (ou, no caso de Pirandello, a uma certa "aristicracia burguesia") completamente incapazes de competirem com ela, burguesia, no projecto de extrair ulteriormente riqueza e valor do real, através de um investimento básico, determinante e nuclear na técnica e, por conseguinte, no saber.

Voltando um pouco atrás, eu diria que o que separa basicamente o "antigo" do "novo" regime é a meu ver, exactamente o modo como cada um deles se relaciona teoricamente com a questão da "propriedade social e política da História": o "antigo" regime (cujo prolongamento natural é a direita política "moderna") acha que à propriedade chega tê-la.

Ou, por outras palavras, que a única forma de (não?) "legitimação" de que a "propriedade da propriedade" necessita é a propriedade (ou a proprietação da realidade) em si mesmas; que a propriedade se "legitima naturalmente" a si mesma pelo simples facto de existir e não (poder sequer) ser questionada como tal (à semelhança---lá está!---do que se passa, no plano das instituições políticas básicas, com a ideia clássica de "sacralidade do poder real").

Para o novo regime (embora de modo cada vez mais "apórico" e teórica e institucionalmente "labiríntico"...) não basta possuir: é preciso ganhar (pelo uso estratégico do conhecimento capaz de re/produzir ulteriormente realidade) o direito a possui-la, primeiro.

A ideia de sufrágio político representa um dos mais evidentes e cultu(r)almente mais relevantes modos de conferir expressão concreta a este princípio básico geral de modernidade social e política.

Ora, que mais evidente forma de "legitimar" a propriedade do poder do que "pô-lo a votos" regularmente?

Quer dizer: a república neste sentido (no sentido de que é preciso sempre argumentar e justificar o poder como forma de gerir a propriedade da História e da própria realidade, em geral) era, de facto, histórica e cultu(r)almente "inevitável".

Há excepções, como a Inglaterra, claro: mas não passam disso mesmo---de claríssimas excepções que, para reutilizar aqui, ainda uma vez, um cliché clássico, apenas confirmam a regra.

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