domingo, 17 de fevereiro de 2008

Eu falei nela, não falei?...


Eu falei na minha Tia Graziela, não falei? Pois, aqui fica uma imagem dela ainda muito nova, na Caparica, com a minha Avó, a minha irmã Rosa Maria e eu próprio.
A propósito da minha Tia, quero ainda recordar uma vez em que, já não sei exactamente porquê, houve um grande "drama" lá em casa, envolvendo-me a mim directamente (imagino que foi de uma vez em que me deram uma fisga e eu me lembrei de "disparar" em todas as direcções por cima do telhado da casa da Rua Palmira tendo acertado em cheio na montra da mercearia do Sr. Teles na qual parti um vidro...)
A minha Mãe ficou zangadíssima, castigou-me et al.
Pois, a minha Tia veio falar comigo, teve uma longa conversa ("de adulto"!...) comigo, explicando-me que o castigo era justíssimo, que a minha Mãe tinha toda a razão para mo aplicar, que eu tinha, claro, de o cumprir (já não me lembro ao certo qual era, para além de ter de ficar fechado umas horas no quarto) e que, se eu reconhecesse a razão que assistia aos meus Pais para me castigarem, se a reconhecesse honesta e conscientemente, no fim de semana iríamos ao "Império" ver "o tal filme" que eu sonhava há muito ver e que era "A Desaparecida" do Ford.
A minha Tia explicou-me que não se tratava de aligeirar o castigo nem muito menos de pô-lo em causa mas que as pessoas, depois de terem pago pelos seus erros, voltam a ter direito a gozar dos mesmíssimos direitos e regalias que tinham antes exactamente porque tinham pago as suas faltas e isso devolvia-lhes em toda a extensão os tais direitos que todos nós temos enquanto pessoas ou, especificamente, enquanto pais e filhos e por aí adiante.
Nunca me esqueci nem do "episódio" nem do filme---e muito menos da lição...
Aliás, eu aprendi muito sobre cidadania com esta minha Tia e com o marido, o meu Tio Jack que, em muitos aspectos era um daqueles ingleses "à antiga" mas no melhor sentido, no sentido da "gentlemanhood" ou dos 'princípios'.
Este meu Tio, sempre que estava em Portugal (o meu Tio Jack era diplomata e vinha a Portugal entre comissões de serviço) dava-me cinco escudos (!!) por dia para "bonecos da bola". Quando os miúdos ficavam felicíssimos se tivessem cinco tostões para comprá-los ter cinco ESCUDOS por dia, era uma coisa autenticamente 'do outro mundo'!...
Pois, um dia, o dono da leitaria onde comprávamos habitualmente os rebuçados com os bonecos vendeu-me um boneco a menos (eram tantos que eu só dei por isso em casa...) e ingenuamente contei ao meu Tio.
Para meu grande desapontamento, no dia seguinte, o Tio Jack (cujo verdadeiro nome era Wilfred e que falava pouco português além de ser---como eu---de uma timidez quase doentia) não parou diante da leitaria para comprar os bonecos.
Eu, claro, não disse nada mas caíu-me o coração aos quando percebi que não íamos entrar.
O meu Tio passou, pois, à frente da loja, andámos pela Rua Maria Andrade, pela Rua do Forno do Tijolo, pela Damasceno Monteiro (o meu Tio passeava todos os dias a pé comigo e com a minha prima Bella uma boa hora ou duas, sempre em silêncio mas sempre com o seu espantoso sorriso de Danny Kaye...) e (qual não é o meu espanto---e a minha alegria!...) quando o vejo parar, sim, mas diante de uma leitaria completamente desconhecida, já no Largo da Graça, dando-me os cinco escudos com a sua frase habitual: "That's for you for your 'bonecos da bola' " (que ele pronunciava, com o seu permanente sorriso tímido, 'banácauze da bâula"...)
Já em casa, eu observei-lhe a medo: "Hoje não parámos no sítio do costume..."
E ele: "No, we didn't. The first man was not honest..."
E eu, na minha candura: "Era só um boneco da bola... Entre tantos..."
Nunca me esqueci da resposta do meu Tio Wilfred: "No, Cató. It's not just a 'banécau'... It is the principle..."
Quantas vezes, desde esse dia, repeti eu já, nas mais diversas circunstâncias, esa mesma frase: "It's the principle"!...
Grande Tio Jack! Que descanse em paz onde quer que esteja com a sua "Grazy"---defendendo, com certeza, ambos um 'princípio' qualquer: ele, sorrindo e abanando continuamente a cabeça de cabelo completamente branco, como sempre (o cabelo embranqueceu-lhe todo, em meia-dúzia de dias, em Dunkerk, na guerra); ela repreendendo-o, (também como sempre!) com a sua ilimitada e ruidosa energia de meridional...

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