domingo, 3 de fevereiro de 2008

Com o teatro de António Patrício, a caminho da abstracção integral


Regresso a António Patrício para salientar uma ideia que me parece (ao menos, possivelmente) relevante e (talvez) significativa; uma ideia ou impressão que, de resto, avanço já noutro ponto deste "Diário": a de que há na obra do Autor de "Denis e Isabel", tantos instantes marcados pela existência de um registo desesperada (ou mesmo: desesperançadamente) paroxístico não apenas circunstancialmente reconhecível mas também possivelmente distintivo e significativo que se é, sem dificuldade, levado, com frequência, a discernir (eu diria: por debaixo da) em geral reconhecivelmente 'figurativa' ordem dos textos, uma espécie de emergente (e persistente!) descontinuidade ou "corte" [no mínimo: de subtil, (in) discreta "ranhura gnoseológica"] entre as emoções representadas e a sua origem factual (ou fáctica)---situação que, a ser verdade, poderia encorajar a que, também por este ângulo ou por este... vértice, digamos assim, devêssemos, hoje-por-hoje, proceder a uma reconsideração atenta e, mais do que sistemática, sob diversos aspectos: sistémica, da opus patriciana, no seu todo.
A (minha) ideia, pormenorizando-a um pouco mais, é esta: existe no registo patriciano (melhor dizendo: persiste---volto a dizer: em tese---nele) uma espécie de impulso (ao que tudo indica, de dificílimo controlo autoral) no sentido da focagem (chamemos-lhe: conceptiva, teórica, teorética) em predominância no enquistamento e/ou "residuação/absolutização" persistente das emoções e dos estados de espírito em geral (da impressionalidade aí contida)---verificando-se isto com tal persistência e tal admissível relevância, repito, que é difícil, em meu entender, não ver aí uma porta (chamemos-lhe:) 'de episteme' para uma gradual abstractização (des?) estrutural e, ainda assim, possivelmente orgânica da própria escrita do Autor, no seu todo.

É, diria eu, um processo em tudo idêntico de "desfixação" ou "descentração" do continuum objectivo/subjectivo que leva um Cézanne ou um Van Gogh, por exemplo, a "descobrirem", mais ou menos unilateral ou mais ou menos espontaneamente, a pintura "abstracta".

Ora, é, a meu ver, por aqui que se chega, também, de Patrício a... Kafka---e vice-versa.

É por essa impressão de que as... impressões se desfixam e residuam, autonomamente e de modo consistente, dos factos ou da factualidade que, em tese e em princípio, as determinou e gerou.

Ou seja, é, no limite, por , se vai da organicidade conceptiva mais ou menos consistente e em geral estável (que caracteriza globalmente a Modernidade Cultu(r)al dita «ocidental») para a inorganicidade completamente desestrutural característica da Pós-modernidade, isto é, quando as emoções e as impressões se "soltam" integralmente dos factos, se alienam e se convertem secundariamente em objectos mais ou menos puros que, em vez de daqueles seguirem naturalmente derivando, iniciam, por sua vez, um (des) processo próprio independente, segundo o qual as afrontam e, tão autonóma quanto consistentemente, desafiam e emulam.

E, por essa via, chamemos-lhe plenamente inversional passam a ser eles a determinar autonomamente factos e "factualidade(s)" completas próprias---totalmente independentes.

E aí, pronto--aí é já Kafka.

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