domingo, 30 de novembro de 2008

"A velha «Almirante Reis»"


A Avenida Almirante Reis, no início do século XX: à direita o Asilo de Sto. António--"para a Infância Desvalida" de seu nome completo


A velha, pois--porque "a de hoje" não tem rigorosamente nada que ver com "a minha"...
Nesta, podia-se brincar (brincava-se, aliás, no Jardim dos Anjos que fica logo a seguir ao Asilo, à direita e que tinha no topo uma espécie de plataforma empedrada onde se jogaram grandes partidas de futebol. Aí ocorreu a minha primeira (e até agora única!)... "internacionalização". Como entre os miúdos que aqui brincavam havia um que era espanhol (o Barrueco) quando joguei contra ele ("muda aos cinco e acaba aos dez"...) fui internacional.
Fui, pronto! Não teve lá muito mérito o modo como o fui?
Pois... se calhar, não teve mas foi o que se pôde arranjar e hoje posso dizer que sou internacional que ("tecnicamente, pelo menos...) não estou a mentir.
Muito...
Mas voltando à 'Almirante Reis' da minha infância.
De algum modo, tudo girava em torno dela: ia-se ao cinema (sobretudo!) nela (às matinés do "Lys", como recordo noutro ponto); ia-se ao médico nela (à "Policlínica dos Anjos", ao Dr. Anastácio Gonçalves nela); ia-se ao café depois do cinema, para não variar, nela (à "Delta" que era por baixo da Policlínica); (à Escola, na "Luís de Camões" que ficava no mesmo edifício entre a "Policlínica" e a "Delta"); iam-se comprar cigarros ao "Campos", na esquina com a Rua Maria e, se houvesse festa, cigarrilhas ao 'outro' Campos, do lado do Regueirão dos Anjos...
Tenho a vaga ideia de ter visto este quiosque ainda mas talvez esteja enganado.
A 'Almirante Reis' era para a pequeníssima burguesia funcionária dos Anjos onde se inscrevia o meu Pai, veterinário na Junta Nacional dos Produtos Pecuários, a promoção, o luxo, um luxo.
O bairro tinha "leitarias", a Almirante Reis... pastelarias--o que está muito longe de ser a mesma coisa!

Outro aspecto da 'Almirante Reis' do início do século passado. A meio, do lado direito, o (para mim, mítico...) cinema Lys. Junto a ele, uma casa de tecidos onde houve durante muito tempo uma espécie de "lobby photo" de um filme francês (de René Clair) com Pierre Brasseur ("La Porte des Lilacs") que eu ia admirar invariavelmente fascinado sempre que saía da "Luís de Camões")


Era o tempo da Lisboa pós-rural (ou pré-urbana) em que cada bairro (como ainda hoje sucede, de resto, oficialmente na toponimia britânica ou belga) era, de facto, uma "vila" ou uma "aldeia" (raramente, uma "cidade") independente que pouco tinha a ver com as outras limítrofes e de onde havia muito boa gente que apenas saía para ir à tropa...
Claro que a "gente dos Anjos" ia à Graça (quem ia, claro!...) ao Liceu, ao 'Gil'; se houvesse dinheiro, subia a Avenida e ia ao "Império", se não o houvesse, fazia exactamente o oposto, descia-a, e ia ao "Piolho", no Martim Moniz ou ao "Olympia", já na Baixa.

Na "Baixa" menor e quase clandestina que seguia paralela ao luxo da Avenida da Liberdade--que era já outro mundo, completamente diferente!
O nosso bairro era (literalmente!) a nossa casa, a nossa família.


Ainda a "velha" Almirante eis aqui numa foto de 1908. À direita, abria-se o mundo fascinante porque proibido do "Intendente", cujo nome apenas se articulava, no seio das famílias respeitáveis num conveniente cício. Esta zona da 'Almirante Reis' era, de rsto, uma espécie de fronteira invisível, na década de '50. Para cima, a Lisboa respeitável, séria. Daqui para baixo, até ao Martim Moniz e à Mouraria (inclusive, em ambos os casos) , a "cidade proibida". Por exemplo, ao "Lys", iam as famílias, ao "Rex", "os operários" e (claro!) as prostitutas. Entre a sólida "respeitabilidade" do meio do século havia uma linha muito ténue e fluida a separar ambas essas (por razões em si mesmas distintas: profundamente inquietantes!) entidades...

Era um problema fumar porque toda a gente se conhecia dos Anjos à Graça, por um lado e à Praça do Chile, por outro (eu, pelo menos, assim acreditei durante muito tempo!...) e ia contar tudo ao "velho".
Curiosamente, fui re/encontrar esta cidade pluralizada e granular (quando já morava no anonimíssimo Bairro de Sta. Cruz um dos vários pontos onde a cidade se desarticulara e se começara já fatalmente a des-integrar, no final da década de '60) em Paris, no início da década seguinte, a de '70.
Montparnasse, por exemplo, era um verdadeitro Alto do Pina apenas um pouco mais acima ou mais a leste do que o outro...
Ao fim de uma semana, já conhecíamos toda a gente e já toda a gente se nos dirigia com a familiaridade que apenas se usa para os "nossos"...
As pessoas viam-nos as silhuetas entrar nas lojas, desconfiavam, começavam bruscamentre a retrair-se mas mal nos reconheciam havia, de imediato, aquele tranquilizador descontrair-se de "Ah! C' est vous!" que reconhecíamos imediatamente como um código secreto entre cúmplices...
A padeira da Rue Raymond Losserand ia logo buscar os inesquecíveis "pains brisés" que só ela fazia, a senhora da "brasserie" começava logo a fritar os ovos e o presunto antes mesmo de a gente pedir porque os ovos e o presunto foram, em Paris, uma fantasia de que não abríamos por nada deste mundo mão...


França, Paris, Montparnasse-Bienvenue, a Rue Raymond Losserand (onde se situava o "nosso" Hôtel de la Paix) numa imagem extremamente curiosa feita durante a "Ocupação"

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