domingo, 16 de novembro de 2008

"Odiar é preciso"


"Os professores, de um modo geral, não querem avaliações".
José Miguel Júdice, in "Público" de 14.11.08


"Os [professores] não querem (está visto) nenhuma avaliação""
António Tavares Teles in "Diário de Notícias" de 16.11.08


Começo por aqui: "Adiar é preciso" é o título de uma crónica do advogado J.M. Júdice inserta no jornal "Público", na sua edição de 14.11.08.
Versa sobre o tema ("à la page"!) da Educação.
Aliás, de súbito, qualquer coisa que venha nos jornais ou se oiça na televisão versa sobre o tema "à la page" da Educação...
...Até as lucubrações (invariavelmente originais, no mínimo...) dos funcionários e funcionárias ligados ao Ministério dito da dita.
(No pé em que as coisas estão, não será mais apropriado e exacto dizer: da des-dita?...)
Voltando, porém, ao texto do "Público": é mais um a 'pegar' no tema.
É mais um que tem, assim, o potencial mérito de não deixar morrer um tema que, revestindo-se de uma inegável importância nacional nos tempos que correm, vem sendo invariavelmente entregue à (má!) gestão de funcionários pedagogicamente menores que aí vão deixando, um após outro, as tristes marcas da sua lamentável menoridade---que é como quem diz da sua em maior ou menor escala, óbvia inadequação para as grandes reformas a que invarivelmente se propõem, apesar disso, frequentemente com fanfarra-e-bombos, meter ombros...
O artigo do "Público" é, pois, na essência, como dizia (e como diriam Vicente Sanches e Manuel de Oliveira cujo centenário se aproxima e constitui outro assunto não menos "à la page"...) mais um caso.
Que por... acaso, é também "o meu caso".
O meu que sou professor e o de dezenas de milhar de outros que por "lá" andam tentado cumprir "reformas" que até os órgãos sindicais dos inspectores do Ministério declaram, sem hesitação (e cito) literalmente "inexequiveis".
Não será, julgo eu, exactamente o "caso" do autor do artigo do "Público" que, sendo com certeza um distinto jurista, não é, que eu saiba, professor.
Admitamos que fala (e isso confere-lhe, de resto, é preciso dizê-lo desde já, uma legitimidade absolutamente inatacável para fazê-lo!) enquanto cidadão: a verdade é que o modo como a Cidadania é invariavelmente trazida, entre nós, para o debate em torno das questões fulcrais da Educação é emblemática do modo como a Educação passou (e esse é, claramente, um primeiríssimo aspecto a lançar pelas piores razões no deve-e-haver da gestão do actual poder político) da esfera naturalmente técnica que lhe convém para a esfera atabalhoadamente instrumental do (pior!) "Político".
Sucede que se fala, entre nós, muito (e, a meu ver, mal!) de uma "sociedade do conhecimento" e, agora, também, de passo, de uma coisa nebulosamente insondável e misteriosa à qual os publicitários e "criativos" do regime chamam, pomposamente, de "(electro?) choque tecnológico".
Ora, uma "sociedade do conhecimento", implementada ou não por mediação de qualquer "choque" tecnológico, científico, etc. passa, antes de mais pela construção e, sobretudo, pela implantação, amplas, democratizadas, democráticas de um verdadeiro pensamento científico que eleve a sociedade onde idealmente ele venha a estabelecer-se e institucionalizar-se de uma sociedade "de simples produtos e de meras utilizações avulsas dos produtos inertes do conhecimento" para uma em que o "acesso causal directo à realidade e às fontes determinantes desta", i.e. aos respectivos fundamentos epistemológicos, constitua a própria base estável e típica do 'modo cultu(r)al' generalizado, universal, de ver, entender e re/organizar continuamente o mundo.
Nada que se pareça, pois, com o que acontece entre nós com governos e especificamente com ministros e ministras da Educação tristemente famosos in/exactamente por meterem (aliás, com uma leviandade e uma irresponsabilidade que até arrepiam!) regularmente os pés pelas mãos em questões tão fulcrais e tão determinantes para o futuro do País como a da formação e avaliação (da avaliação como elemento fulcralmente orgânico da formação, entenda-se!) dos técnicos na área da Educação.
Formar os técnicos?!
Mas... para quê formá-los? Não basta ir continuamente "metendo-os na ordem"?
"Trucidá-los" se não cumpram objectivos de mera "politicalidade" instrumental imediata e menor, arrancados violentamente à sua respectiva arquitectura ou encaixe técnico de episteme, às determinações e considerandos de ordem estritamente pedagógica, didáctica e, por conseguinte, estável e legitimamente científica?
Agora "cá" formar técnicos!...
Onde é que já se viu?
Quando e onde se pode ter um secretário-de-estado virulento, verboso e truculentamente minaz para quê gastar dinheiro em "Piagets, Montessoris e/ou Makarenkos"?...
Reflexão teórica?
Autonomia técnica do sistema?
Cientificização estável e orgânica dele?
"Bull!"---como diria um norte-americano ou um inglês, recorrendo a a um termo pop conhecido e bem expressivo...


E é porque o debate educativo se habituou a sair (leia-se: a ser in/consistentemente desviado) da área técnica e científica nobre de onde nunca o teriam retirado pessoas intelectualmente responsáveis e cientificamente idóneas que vemos, a cada passo, nos jornais juristas (distintos, embora) e até jornalistas desportivos (!) substituindo-se a um amplo debate técnico que não existe, pronunciarem-se "ex-cathedra" sobre os mais diversos aspectos de uma questão que interessa a todos e envolve (ou devia envolver a todos), é facto, mas, em caso algum, enquanto realidade técnica específica de direito próprio.

Com os erros e as deformações que são de prever.

Do artigo do "Público", por exemplo, começo por ressaltar uma afirmação que apenas pode explicar-se pelo facto de a reflexão ai produzida ser feita completamente de fora do universo profissional da docência.
Já a (ou)vi feita, tal-e-qual nos aparece no artigo, por políticos da mais diversa inspiração e matiz, donas-de-casa animadas das melhores das intenções e pelos proverbiais taxistas que "sabem de tudo e gostam de Salazar"...
Refiro-me àquela que as duas recentísimas citações escolhidas para epígrafe evidenciam envolvendo uma suposta aversão (instintiva? Inata? Fatal?) da classe docente (portuguesa?) relativamente à circunstância de ser avaliada.
Começo por ela porque já não há (permita-se-me o plebeísmo...) com todo o respeito, pachorra para ouvi-la!
É preciso dizer que na realidade, ela configura um verdadeiro disparate: a minha experiência de mais de três décadas de docência diz-me que o acontece é precisamente o contrário disso!
Desgraçadamente (ao invés do que afirmam com a ousadia que dá o completo desconhecimento de causa muitos "críticos" exógenos ao sistema) a classe docente não é, em geral, caracterizada por aquele tipo de poderossíssima "força gravitacional" de natureza corporativa que (volto a dizer: por puro desconhecimento da realidade) alguns lhe atribuem.
Pelo contrário, infelizmente: é preciso (vou ser deliberadamente brutal!) que muita burrice seja cometida e muita inépcia negocial investida num processo para que centenas de milhar de docentes se reencontrem finalmente com a solidariedade profissional que alguns (entre os quais me incluo...) gostariam de ver materializada sempre e em todos os casos.
Basta consultar os índices de sindicalização docente para confirmá-lo com algum grau de evidência.
Só quem nunca lecionou antes do 25 de Abril ignora o que era, por um lado, a periclitante condição dos professores chamados então 'provisórios' e, por outro, o desespero pela não abrtura de vagas para o que era, à época designado pelo "exame de estado" e que abria aos docentes as portas da efectividade.
Segundo a impiedosa hierarquia da época, os professores provisórios não recebiam três meses em cada doze (!); eram avaliados e classificados segundo tipologias de avaliação que desconheciam na (quase?) totalidade por professores com quem conviviam como distanciamento que a i/lógica hierárquica da época impunha e a única via que se lhes abria para um exercício (chamemos-lhe...) pleno (?) da profissão consistia exactamente no tal "exame de estado" (que a actual equipa ministerial decidiu aparentemente exumar).
É claro que muitos reagiam com desagrado à hipótese de verem (a sempre muito relativa mas enfim!...) segurança profissional dependente de um "exame" feito (ao contrário do que a mais básica e mais primária lógica determinaria) no final de um longo ciclo formacional cumprido no liceu e, em seguida, na universidade.
A verdade, porém, é, durante essa fase da minha própria carreira, convivi com inúmeros professores que, apesar de tudo, se dispunham a ser "examinados" (porque isso lhes possibilitava o acesso a um nível superior da carreira---e sublinho sem mais comentários: "superior": cada um que faça a sua própria re/leitura do modo como intencionalmente deliberei formular o meu ponto de vista nesta matéria...); muitos mais seguramente do que aqueles que valoravam, sobretudo, a contestação mesmo se apenas objectiva ou objectual através do acto de não se candidatar pura e simplesmente ao "exame de estado".
Exactamente porque a percepção individual e colectiva da hierarquia dentro da profissão sempre foi (e o regime obviamente potenciava-a como táctica e estratégia para reforçar o seu poder e a sua influência no seio da classe!) particularmente sensível e aguda.
Como em qualquer profissão, para o bem e para o mal, o desejo de "subir" é uma realidade e, mais do que uma realidade, de um modo ou outro, uma inevitabilidade, independentemente dos aspectos de (inevitável) menor solidariedade interpessoal que presupõe e implica.
Qualquer pessoa de boa fé e básica inteligência entende que ninguém goste de estagnar profisionalmente.
Mesmo com doses maciças de cinismo relativamente aos móbeis atribuídos aos profissionais envolvidos, é honestamente impossível pensar, julgo eu, que alguém que pode ganhar mais, se conforme pura e simplesmente a não fazê-lo.
Só por estupidez, diria eu, é possível pensar que, por "irem para o ensino", pessoas "normais" fiquem subitamente tontinhas e magicamente conformistas...
Ou que só vão para lá as que o não são, o que vai dar ao mesmo...
Qualquer pessoa entende, pois, que o problema (mesmo para os profissionais menos talhados para a generosidade, para a filantropia e para a pura satisfação moral de um trabalho bem feito, independentemente de recompensas materiais) não reside logicamente na avaliação (que é uma condição generalizada de progressão no modelo particular de sociedade estruturalmente concorrencial em que vivemos, na actividade docente como em qualquer outra com a possível excepção de político...) mas nos modos precisos, concretos, de materializar a referida avaliação.
Na justiça, no rigor e na transparência dos mesmos---ou na ausência maior ou menor dessas componentes---envolvidas no próprio processo de avaliar.
Desde os tempos da ditadura que é, para mim evidente (e experiencialmente demonstrável) insisto, que a ideia de progredir se achava no próprio tecido da prática de todos nós, professores. No modo de concebê-la e percebê-la a partir do seu próprio núcleo ou centro.
A tal ponto que uma das primeiras reivindicações que me recordo de ver constar dos projectos do movimento pró-sindical docente no início da década de '70 respeitava precisamente ao imperativo de alargamento das vagas para professor efectivo e à natural reformulação das fórmulas e modelos de acesso.

Problema, aliás, nunca resolvido por décadas de governação socialista e social-democrata.

Cansa, por isso (e incomoda porque significa que o debate está à partida inquinado), ouvir constantemente repetido o mesmo disparate de que os professores não querem ("está visto"!) ser avaliados: haja quem se disponha a "recientificizar" adequadamente o processo e logo verão como a classe reage (volto a dizer sem mais comentários) para o bem e para o mal à implementação da racionalidade, do espírito científico e da honestidade intelectual no paradigma concorrencial envolvendo-a e aos mecanismos de progressão que a regem.
Este um aspecto da questão que me parece que vai sendo tempo de perspectivar e tratar com a seriedade e o rigor que justifica.
Outro: a conclusão (volto a recorrer ao artigo do "Público" que é, neste ponto, por razões óbvias, insuspeito) de que a inépcia investida no processo da "reforma" do ensino público em curso configura "uma machadada" neste e (mais grave ainda) "algo que poderia ser inventado por um suposto lobby do ensino privado, pois este beneficia evidentemente deste estado de coisas (sublinhado meu).
Ah pois beneficia!
Como beneficiaram (e beneficiam! E de que maneira!) os interesses privados na Saúde com a desarticulação do Serviço Nacional respectivo e/ou (para não irmos mais longe) na Justiça.
Quem certamente não beneficia, embora o articulista o não mencione, é a sociedade portuguesa no seu todo.

E das mais diversas formas.

Já se pensou, por exemplo, nas repercussões que têm no ensino privado (no sistema de Educação como negócio e/ou investimento) a degradação dos modelos de avaliação (falo aqui especificamente no caso dos alunos enquanto tal e digo "enquanto tal" porque obviamente os alunos de hoje são os professores, médicos e engenheiros de amanhã!) no próprio ensino privado e nos modos de este avaliar e ensinar?
Já se pensou, com efeito, em que, por acto mágico (em resultado de um toque de varinha dessa fada ou dessa bruxa da mediocridade em que converteu decididamente a tutela, desatarem, de um momento para o outro, a "pipocar" dezoitos, dezanoves e vintes no ensino público, como irão previsivelmente reagir os privados no sentido de blindar os seus sujeitos da concorrência?
Isto é: já se pensou como a irresponsabilidade reiterada, contumaz, de um minisério pode contaminar fatalmente todo o sistema, mesmo naquelas áeras e pontos dele em que a desgraça ainda não se instalou?
É por isso que (lá volta a questão das críticas feitas com desconhecimento de causa) é reduor dizer que a mediocridade poderia ter sido "inventada" e "plantada" no público, como uma espécie de bomba relógio, pelos lobbies e interesses privados impelidos pela ideia de fazer implodir um concorrente incómodo: é que, vendo as coisas "por dentro", fica óbvio que nem estes (num primeiro momento pelo menos) estão imunes às ondas de choque da inépcia e da (enorme!) incompetência...

Para finalizar, um terceiro aspecto: a crítica evidente à ideia de que, subitamente, terão começado a faltar "vigor" e "determinação" a um projecto "necessário" de saneamento de um suposto "igualitarismo" no exercício típico da função docente pública entre nós.
Sobre o modelo em si muito haveria a dizer. Fico-me, todavia, por imperativos de espaço e tempo por uma única reflexão que, de resto, já fiz num artigo publicado na revista "O Professor" a propósito de um texto, dessa vez da autoria de Vasco Polido Valente.
Uma reflexão que, curiosamente (e isso mostra como, afinal, sob inúmeros aspectos se evoluíu realmente muito pouco do ensino da ditadura para os paradigmas confusamente "socialistas" e "sociais-democratas" de '74 para cá) poderia ser feita a propósito do "salazarismo educativo": que sentido faz (e como se pode falar de saneamento do paradigma educacional a propósito) que sem se investir em dispositivos orgânicos de orientação e acompanhamento vocacional, se deixe um cidadão cumprir com os custos económicos, sociais, existenciais, etc. envolvidos todo um ciclo de formação universitária para, uma vez ele cumprido, se pensar em determinar se ele "tem jeito" para uma carreira??!!
É isto razoável?
É lógico?
É humano?
É científico?
É tecnológico?
Quer dizer: choque é, com certeza, agora tecnológico!...

Concluindo: é por tudo isto (e muito mais de que falaraia se tivesse tempo) que eu defendo, para o futuro educativo do País, o figura do contrato social assente no princípio da autonomia técnica politicamente inegociável da actividade docente.
Descreve-se este assim, numa formulação muito sucinta: à sociedade compete fixar os objectivos políticos e até civilizacionais de educacionalidade; ao universo epistemológico e técnico da docência compete achar autonomamente os meios para atingir aqueles objectivos. Estes são obrigatória e democraticamente sujeitos, de forma regular ao escrutínio da sociedade, no seu todo. Aqueles, os meios usados para cumprir o 'contrato social' com a comunidade são escrutinados autonomamente pelos próprios técnicos, enquanto tal.
É a única maneira de não haver confusões nem promiscuidades entre um Político que induz e um Técnico que possibilita materialmente.
É, numa palavra, a única maneira de o País progredir. Adiar, com todo o respeito, partindo de bases erradas não resolve coisa alguma: odiar, sim!
Odiar a incompetência, a democracia mal compreendida, o carreirismo dos medíocres instalados, isso sim: não resolve por si, claro, mas constitui um ponto de partida essencial e mesmo incontornável.

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