Democracia é, antes de mais, esclarecimento: na imagem, poster de João Abel Manta, publicado no extinto "Jornal"
De um "Público" (o de 31.10.08) dou comigo a respigar um conjunto de notícias, todas elas, possuindo uma espécie de fundo comum sobre o qual pretendo alinhar algumas reflexões particulares.
Falo especificamente de um dossier temático sobre o tráfico de armas para Angola durante a guerra levada a cabo pelo governo contra os rebeldes da Unita; de uma reflexão (entre outras coisas) sobre a questão dos contentores que vão tomar conta da chamada "frente ribeirinha do Tejo" assinada pelo ex-ministro P.S. Campos e Cunha e, por fim, de um outro dossier sobre o mesmo assunto composto por textos subscritos por Inês Sequeira ("Liscont garante que muralha de contentores não vai subir") e Luciano Alvarez ("Manuel Alegre muito duro nas perguntas ao governo").
O que tudo isto tem em comum é, de um modo ou de outro, um motivo a meu ver particularmente relevante do ponto de vista de uma reflexão muito séria a fazer sobre o tema "democracia" em Portugal no século XXI é, a saber, a velha-e-relha questão do "interesse nacional" invocado (literalmente!) a torto-e-a-direito por quantos têm poder(es) para fazê-lo, sempre que entre as deliberações por eles desejadas tomar e a respectiva concretização se ergue a barreira da própria Lei.
Na prática (a mim que não sou jurista) parece-me legítimo supor que o resultado da existência (e, claro, da implementação) desta singular figura política (incomparavelmente mais política, com efeito, do que jurídica) possa ser a de "compensar a gosto" a existência de uma outra figura política (e especificamente democrática) nobilíssima essa, que é a da separação de poderes.
Concretamente do judicial relativamente ao executivo.
A razão invocada para a prorrogação do prazo de concessão à tal Liscont por mais 27 anos, sem concurso público, excedendo o limite legal de 30 anos, dos direitos de exploração da área (alargada) onde vão permanecer os contentores é, ao que parece, ainda e sempre, essa do "interesse público", neste caso, na urgência da respectiva concessão.
Já no outro "caso" referido, o das armas para Angola, um "interesse" substancialmente análogo terá, segundo o "Público" logrado sobrepor-se à aplicação normal da própria Lei exinmindo políticos importantes de comparecerem em tribunal respondendo por diversos crimes. Facilmente confundido com interesses empresariais (multinacionais) puros e duros, esse "interesse (duplamente) nacional" (é o da França onde as coisas vão até ao nível de ex-ministro e filho de ex-presidente da república e o de Angola onde está o um amplo leque de gente do governo incluindo o próprio presidente da república) levou a que fossem estabelecidos acordos no sentido da referida isenção.
Isenção que é, note-se, tanto a de responder na condição de acusado como, inclusive, de comparecer em juízo na condição de testemunha.
Poderíamos a estes, sem grande dificuldade, juntar inúmeros outros casos de "interesse nacional" invocado e recorrentemente substanciado em exclusivo na palavra e no poder decisório de esta ou aquela entidade quando deste ou daquele indivíduo.
A meu ver, o que tudo isto claramente revela é que há qualquer coisa---um elemento-chave---que falta em geral às democracias (à semelhança daquilo que acontece, pelos vistos, também nos outros regimes, naqueles que o não são, o que não deixa, aliás, de ser uma singularíssima "coincidência"...) para que elas sejam realmente democracias; algo que venho defendendo há muito, a saber, a implementação de modelos rigorosos e obrigatórios de avaliação regular das actividades de representação política (através de uma Mesa ou Tribunal de Conferência Programática e Política instituído à semelhança do Tribunal de Contas, por exemplo) onde pudessem ser adequadamente julgados os desempenhos dos políticos, desde logo, em referência a programas políticos explícitos, aí previamente depositados e de cumprimento tão obrigatório quanto exclusivo. Isto é: é preciso acabar com a prática des/estruturalmente não-democrática de eleger políticos com virtualmente carta branca ou um cheque em branco para fazerem (literalmente) quanto quiserem e lhes apetecer.
É preciso eleger políticos para cumprirem programas específicos previamente negociados com os eleitorados---e apenas esses. Assim como é preciso que possam ser formalmente punidos (com penas públicas de suspensão) os políticos que não se limitem a isso.
Ou seja, não me canso de dizer: é preciso que ceder o exercício instrumental e funcional do poder não se confunda, em caso algum, com ceder o próprio poder: na diferença entre ambas essas realidades, na essência opostas, está a própria diferença entre Democracia e autocracia disfarçada---ou plebiscitária.
É preciso que os políticos e os partidos apenas possam ser declarados aptos a desempenhar cargos de representação política depois de começarem por tornar público, como disse, um programa de acção preciso que obrigatoriamente os vincule mas não só: é igualmente preciso que façam público junto de entidades oficiais tecnicamente capacitadas de um plano específico contendo os cálculos constantes do programa. É vital, a fim de credibilizar o próprio sistema político que deixem de poder apresentar-se ao eleitorado políticos que prometem, de uma única penada, por exemplo, baixar impostos, subir salários e reduzir impostos...
Têm, antes (é preciso que tenham antes!) de especificar clara e exactamente como pensam em concreto fazê-lo---mas que tenham de fazê-lo junto de quem está, de facto, capacitado para avaliar da exequibilidade dos compromissos assumidos que o mesmo é dizer da fiabilidade (ou, se assim se preferir: da honestidade) das promessas avançadas...
É vital, em suma, que um Tribunal como aquele que não me canso de propor disponha igualmente de poderes para pronunciar-se (e emitir sentença vinculativa responsabilizando politicamente os eventuais prevaricadores) sobre casos de "interesse público" unilateralmente invocado e nunca (ou raramente) susceptível de questionamento pela cidadania que é como quem diz por quantos os "representantes populares" são supostos em todos oas casos, representarem...
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