O grande problema da democracia... são, na realidade (a meu ver, pelo menos) três: primeiro, o de as massas perceberem o que é realmente o poder e como "poder" e "exercício funcional do poder" são (como dizer?) duas 'partes', duas meras componentes, duas... 'parcelas', completamente dissociáveis entre si, de uma mesma realidade que é o próprio poder.
Segundo problema: a democracia não existe: está-se sempre a fazer.
A construir.
É, na realidade, um processo que dificilmente pode ser dado por concluído.
À medida que esse processo vai sendo construído, nas verdadeiras democracias, vai-se, de imediato, plasmando em instituições.
A verdade é que pode, em tese (e no limite) haver ditaduras (e até ditaduras ferozes!) que usem, com grande aparato momentâneo, formas exteriormente associáveis, de imediato, à Democracia, mas na realidade apenas para distorcê-las e desfigurá-las (para usá-las perversamente contra si próprias) exactamente porque não existe subjacente a tudo uma verdadeira atitude e consciência democráticas, unindo o aparecimento (e o uso) dos objectos, digamos assim, avulsos da Democracia num processo consistente, participado, tendo lugar sem que a propriedade do poder deixe em momento algum os seus legítimos proprietários que são as sociedades esclarecidas e civica e politicamente conscientes, no seu todo.
Há um filme extraordinário de Fritz Lang (um dos filmes que reputo "da minha vida") intitulado "M..." com Peter Lorre onde Lang discorre com óbvio azedume, em termos do conteúdo latente do filme, sobre a manipulação das massas pelos nazis, numa paródia trágica de mobilização popular, em cujo contexto a Lei e a marginalidade deixam de poder distinguir-se definitivamente uma da outra, no que, descobrimo-lo no final, não passa, afinal, de um linchamento, disfarçado de "justiça popular", conveniente para ambas aquelas entidades: a Lei mas, de igual modo, o próprio Crime.
O pedófilo no filme (papel desempenhado pelo excelente actor que, bem dirigido, foi Peter Lorre) é-nos, nessa altura revelado, como alguém que não age na condição de verdadeiro agente dos actos (e, por conseguinte, efectivo culpado) que pratica.
De facto, ele surge, de alguma forma bem demonstrável (ou, no mínimo, bem argumentável) como uma espécie de subtil metáfora do judeu, i.e., alguém muito mais "atravessado" pela culpa do que efectivamente agente directo e integral dela.
O protagonista de "M..." não é, insisto, a meu ver, estr(e)itamente um culpado: é alguém cujos actos "vêm muito de trás" da sua vontade, um doente cuja conduta não pode dissociar-se de causas (concretamente, uma pulsão mórbida) que ele não controla.
O que Lang, em meu entender, propõe é que revejamos, sempre com rigor e sem histerismos ou fanatismos, o problema da "culpa" nas sociedades humanas civilizadas.
O problema da responsabilidade.
Da responsabilidade da responsabilidade e/ou da culpa da culpa.
Tal como ninguém é 'culpado de ser judeu' e não deve, por isso, expiar individualmente (nesse caso) "culpas" colectivas, um doente que viola e mata (é aquilo que a dado passo descobrimos ser a personagem de Lorre) não pode constituir ensejo para o desencadear brutal e cego daquilo a que os anglo-saxónicos chamam de "vigilante-ism", sobretudo se, como claramente acontece no filme, o que está verdadeiramente em causa, é por parte do submundo urbano, assegurar a prossecução em "tranquilidade" do seu próprio modo criminoso de vida, para o que obtêm, aliás, significativamente, a cumplicidade da própria polícia, i.e. da "ordem" estabelecida, interessada em provar a sua eficácia.
Aparentemente, "aquilo" possui 'algo de democracia': a mobilização e o envolvimento directo da sociedade civil na resolução de problemas envolvendo aspectos importantes de cidadania é algo que a Democracia deve em todos os casos encorajar e fomentar---para conter.
O problema, porém, não se fica, em termos genuinamente democráticos, por aí: é essencial que as massas mobilizando-se e envolvendo-se o façam com a perfeita consciência da justeza dos modos escolhidos para actuar, tanto com a da perfeita utilidade colectiva, social, dos actos que vão praticar.
É um equívoco comum pensar-se que uma sociedade que possui, por exemplo, um sistema eleitoral e separação (muitas vezes, apenas fomal mas enfim...) de poderes é já, ipso facto, uma sociedade democrática.
Como digo imediatamente antes (e reconfirmo imediatamente a seguir), uma sociedade democrática é uma sociedade em permanente processo que, porque assenta numa cidadania realmente esclarecida e consciente, sabe em todos os momentos questionar-se, vigiar-se e permanecer responsavelmente não apenas questionada como (como hoje se diz, usando um anglicismo útil:) "monitorizada".
Por fim (terceiro problema): em democracia cede-se, como comcei por afirmar, o exercício do poder, em caso algum o próprio poder.
Ora, precisamente a fim de que o poder não seja inadvertida (ou, em alternativa: subtilmente) cedido com o respectivo exercício funcional verifica-se aquele que é o terceiro---o último mas, se calhar, o primeiro!---dos aspectos enunciados na abertura: a constatação da circunstância de que só começa a existir de facto (e de direito!) democracia quando a consciência cívica e política das massas estiver efectivamente difundida por uma esmagadora maioria dentro do perímetro material da própria Democracia.
Muitos charlatães da política gostam de citar Churchill quando este dizia que a "democacia é o pior dos sistemas---tirando todos os outros".
Vale, desde logo, a pena chamar a atenção do leitor para o relativismo do próprio postulado churchilleano.
Mas o que importa, sobretudo, relativamente a ele fazer é notar que a única possibilidade de a frase de Churchill fazer algum efectivo sentido é reportá-la a uma ideia de "Democracia" estruturalmente diferente da maioria das "demomorfias instrumentais" ou "funcionais" (incluindo a actualmente em vigor entre nós) que facilmente somos persuadidos pela propaganda oficial a confundir com a "tal" 'democracia' de que falava Churchill.
Não pretendo (não posso!) alongar-me demasiado aqui relativamente a este ponto (cuja análise reservo, porém, para outro lugar onde possa fazê-lo com incomparavelmente com maior detalhe) mas sempre vou dizendo que é, no mínimo, revelador de uma tão infinita quanto perigosa ingenuidade confundir um sistema simplesmente... "dismocrático" como aquele sob o qual temos hoje-por-hoje de viver (um sistema caracterizado pela dissociação des/estrutural e nuclear do próprio "Tempo" ou da própria "temporicidade do poder" em dois: um tempo activo destinado ao exercício efectivo do poder e um tempo completamente passivo ou apenas "moral" destinado à crítica abstracta do poder) com uma Democracia onde o Tempo ou a temporicidade consnstituem algo de orgânico, um continuum cuja institucionalização se inscreve num quadro jurídico transparente que, devido a esse escrúpulo essencial, não oferece, em caso algum, dúvidas ou equívicos.
Muito menos, equívocos...
Sem comentários:
Enviar um comentário