Ontem foi dia de S. Oliveira: vi "Belle Toujours" de que, desde já o admito, ao contrário do que aconteceu com "O Quinto Império" por exemplo e, sobretudo, com o belíssim' "O Espelho Mágico") não gostei, com toda a franqueza, especialmente.
Talvez seja, ainda uma vez, neste caso, uma questão de deixar que da fase do "estranhar-se" (quase inevitável nos primeiros contactos com o realizador d' "O Espelho Mágico"...) se passe finalmente à do "entranhar-se", na frase célebre, não sei.
Sei que, como teatro, é interessante, muito... "francês", aqui-e-ali, muito Sacha Guitry, mas também curiosa e um pouco estranhamente muito... Noel Coward.
Muito intelectualizado.
Muito expositivo, muito "didáctico".
Muito... "o-menino-que-abre-o-brinquedo-para-ver-o-que-tem-lá-dentro" (e é por isso que o brinquedo deixa, de algum modo, de funcionar?...)
É (para o bem e para o mal), numa palavra, muito Oliveira...
...O que não é, obviamente, de forma necessária (longe disso!) mau, entendamo-nos!O problema só se põe desta forma, aliás, porque o filme se reporta confessadamente a Buñuel: ao seminal, truculento e sacrílego Buñuel.
...Do qual era suposto ser uma espécie de "glosa" mais ou menos livre, como se sabe.
Do qual, porém, reconhecivelmente pouco tem.
O filme não é, de facto, sobre Buñuel e sobre "Belle de Jour": é claramente sobre Oliveira.
Acho, todavia, volto a dizer (e permita-se-me a vulgaridade da imagem...) que, como naqueles "apanhados" em que um fulano ou fulana, de forma inexplicável, se obstina teimosamente em "explicar" com minúcia ao público, antes e depois delas ocorrerem, cada "situação", em "Belle Toujours" há um determinado "explicar" (via quase obsessivo "racionalizar") do filme anterior que, de algum modo, o des-sacraliza e até (pior ainda!) banaliza um pouco.
É essa, pelo menos, a minha opinião...
A minha impressão imediata, em todo o caso...
Considero, porém, que tal poderia não ter acontecido, a meu ver, se Oliveira tivesse pretendido (ou tivesse conseguido?) re-criar "Belle de Jour", de algum modo assumido, de algum modo, resoluto e efectivamente independente (de algum modo assumido que até poderia--porque não?!--ser um modo deliberadamente "sacrílego", como o era, aliás, na sua essência, a própria 'maravilha' buñueliana).
Para pô-la em causa, para verberá-la, para ultrapassá-la, para superá-la, para lhe manifestar cinematograficamente amor ou ódio, aprovação ou denúncia; enfim, para fazer dela e com ela uma coisa qualquer planeada e realmente nova... dialéctica.
Uma coisa nova...
Ora, não me parece, sinceramente, que a via escolhida (a especulação fria, quase 'gélida e lucidamente desapaixonada', o "jogo", o "xadrez" intelectual) tenha conseguido justificar, em última análise, a pequena glosa.
Entendamo-nos!
O filme não é belo?
É belíssimo!
A música (de Dvorjak) esplendorosa.
Oliveira, mesmo quando a ele não se adere de imediato, fatalmente sumptuoso, provocatório e esclarecidamente estimulante.
Piccoli (traído, embora, pela extensão muito oliveiriana de alguns planos que o levam a repetir-se e até ocasionalmente a caricaturar-se aqui-e-ali um pouco...); Piccoli, dizia, profissionalíssimo, "il se laisse simplement aller", todo 'métier', todo distinção e essência ainda quando tem de mudar bruscamente de tom ou quando, pelo contrário, se atarda e insiste "un peu trop" num.
Apenas Ricardo Trêpa (tinham sido francamente bons, notáveis mesmo, os seus "D. Sebastião" em "O Quinto Império" e o jovem ex-presidiário d' "O Espelho Mágico"!); apenas Ricardo Trêpa, dizia,"traído" este por uma fonética francesa, com a qual visivelmente não se entende de todo, tropeça em demasia nas respectivas falas (não se liberta, desta feita, claramente da carpintaria do papel que aqui assume, sobretudo, a forma de um grave problema linguístico) e acaba ingloriamente vencido por elas; Bulle Ogier (assim como, já agora, as duas prostitutas!) estão a mais (a "Séverine" de Ogier não tem rigorosamente nada que ver com a Séverine original: não tem propriamente mistério, não tem a espantosa beleza "greta-garboiana" de Catherine Deneuve para profanar, excitando o 'Eu sacrílego' que há--que, segundo Buñuel, deve haver!--em cada um de nós e que era uma das chaves essenciais do "apelo" pessoal e artístico do co-realizador de "Un Chien Andalou": o seu "Belle de Jour" é todo ele precisamente sobre a revolta prometaica, sacrílega, contra a perfeição e o 'excesso de Luz' assim como, por extensão, um hino ao ódio 'justo' e devastadoramente profan(ad)o(r) contra a inatingibilidade absoluta da Razão e/ou do próprio sagrado); Paris é... Paris (e, então, à noite não é--e isto sem qualquer tolo pedantismo, entenda-se!...--pura e simplesmente descritível...); há, enfim, em "Belle Toujours" uma Beleza absoluta e por vezes quase desesperada, sumptuosa e trágica (um trágico, paradoxal, desesperado anseio de luz através de todo um "programa" in/essencialmene latente de desesperada subversão); uma Beleza definitiva, final, total, que acaba, todavia, situando-se, por tudo quanto disse, nos antípodas do "buñuelismo" original.
E as prostitutas (uma delas, a magnífica falsa "Virgem" d' "O Espelho Mágico"): que fazem elas, com efeito ali? Se o filme tivesse propriamente uma perspectiva autónoma definida sobre a questão essencial da "revolta" contra a tirania do Bem e da Luz como algo que se pretende impor unilateral e previamente à consciência que era a essência da temática buñueliana (e não apenas ou não sobretudo o discurso sobretudo verbal em torno de uma espécie de meta-personagem omnipresencial configurada numa Culpa "bavardeuse" e comovedoramente um pouco senil que cobre tudo) poderiam ser "bruxas" como as de "Macbeth", por exemplo...
Assim...).
Muito interessante (e estimulante!) é o debate que se reabre, por outro lado, no filme em torno de um velho equívoco/conflito "oliveiriano" relativamente ao Cinema--algo que estava já nos textos "teóricos", didascálicos referentes à "Benilde", por exemplo.
Muito interessante (e estimulante!) é o debate que se reabre, por outro lado, no filme em torno de um velho equívoco/conflito "oliveiriano" relativamente ao Cinema--algo que estava já nos textos "teóricos", didascálicos referentes à "Benilde", por exemplo.
Por uma razão qualquer, Oliveira acha que a relação entre Teatro e Cinema deve ser uma relação desigual e, sobretudo, ancilar do Cinema relativamente ao Teatro com aquele a veicular docilmente a mensagem específicamente dramática.
Di-lo, repito, concretamente a propósito de "Benilde ou a Vigem Mãe".
Num certo sentido, a sua proposta teórica de Cinema (o "específico cinematográfico" para Oliveira) assenta precisamente aí, em essência.
É verdade que a indústria violou o Cinema esvaziando-o ao fazê-lo "mutar", pós-modernamente sobretudo, de um conteúdo numa mera forma criando a sua própria ilusão de conteúdo. É verdade que a via da revalorização da cinematividade do Cinema pode (e, se calhar, deve! Deve seguramente!) passar por uma consciente reconsideração do próprio meio como tal--o que não exclue (bem pelo contrário) como defende o próprio liveira, a apologia e a prática de u minimalismo purificador.
O que eu pessoalmente me atrevo a questionar é que o minimalismo seja re/criado a fim de ser afinal, ainda uma vez, usado, agora como mero dispositivo utensilar da dramaturgia e da Palavra.
Até porque "o melhor" Oliveira (para mim, volto a dizer) não está, em última análise (de modo algum!) no cinema "didáctico" e in/essencialmente verbal de "Non", por exemplo (nas partes em que "Non" é terrivelmente verbal) mas no cinema-cinema que usa o património das várias Artes, sim, mas num registo e com um espírito próprio, sem deixar, portanto, em momento algum, de ser Cinema--como a Obra do próprio Oliveira demonstra num vastíssimo arco que vai desde "Douro Faina Fluvial" a, por exemplo, "O Espelho Mágico", por isso mesmo uma das minhas obras preferidas do Mestre.
Ora isto, esta "questão" de episteme cinematográfica, estética (explica-se assim a imagem que seleccionei para ilustrar esta "entrada") já está tudo "resolvido" (e de que--verdadeiramente genial!--maneira!) no meu cineasta "de cabeceira"--Jacques Tati...
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