sexta-feira, 28 de novembro de 2008

"O Espelho Mágico", filme de Manoel de Oliveira


Adicionar imagem Quero começar por dizer que estou cada vez mais firmemente persuadido de (pelo menos...) duas coisas relativamente ao Cinema de Manoel de Oliveira.

A primeira é que, tal como vem objectivamente sucedendo, por exemplo, com a Obra de outro "caso" cultu(r)al nacional de referência, o de Fernando Pessoa, o realizador de "Razão e Utopia" e "Belle Toujours" não beneficiará de facto muito com a extrema exposição a que (no seu "caso", o próprio Autor a si mesmo) se sujeita.

Isto é, filmando continuamente e vendo os seus filmes exibidos quase podíamos dizer: literalmente "em tempo real", Oliveira corre (a meu ver, pelo menos) em tese, o possível risco de não se seleccionar suficientemente a si próprio, produzindo obras um tanto desiguais (às vezes, com a particularidade típica adicional---perfeitamente dispensável, aliás---de um didacticismo exagerado, não-raro extremamente desconfortável, no contexto de uma Obra onde os valores plásticos possuem, em regra e em si mesmos, um valor específico tal que podiam perfeitamente atingir a eloquência ideal sem precisarem de recorrer à muleta indesejável desse revestimento apócrifo da "lição" teórica infiltrada "par dessus le marché" num mundo narrativo onde está, com frequência, insisto, não-raro, claramente a mais).

É esse um modo pessoal de entender o cinema e, especificamente, a sua relação particular com o Teatro e com a Palavra?

É-o, assumidamente.

Basta ver o que o próprio Oliveira diz sobre a sua ideia de como filmar o drama (o de Régio, especificamente)---e é, portanto, preciso perceber (e dizer!) que, mesmo nos casos em que haja dessa sua pessoalíssima visão, responsável discordância é sempre à luz dessa ideia ou desse princípio teórico básico de que "as coisas" não acontecem ali assim por acaso mas, bem ao contrário, em resultado de uma deliberada opção estética, plástica,narrativa que há que ver o "produto" final do cinema do realizador de "Benilde" ou "Belle Toujours".

A segunda coisa que comecei por referir é que (idealmente roubada a uma anti/cultura de clichés como aquela em que vivemos e que tudo reduz a "fórmulas" acriticamente 'transaccionadas' entre e no próprio interior de audiências alimentadas, por sua vez, a doses maciças de ignorância e boçalidade---também--estética, narracional), a Obra do realizador de "O Espelho Mágico", como sucede, de resto, com de uns quantos outros Autores verdadeiramente originais (Ferreri, Straub, Lynch, Cronenberg, o próprio Oshima, Bergman, etc.) primeiro estranha-se (e quanto pode a de Oliveira, efectivamente não-raro estranhar-se!...) para depois se entranhar, então, na melhor das hipóteses, definitivamente.

Eu diria, aliás, que o "caso" deste "Espelho Mágico" é a esse propósito verdadeiramente paradigmático.
Filme onde Oliveira resiste claramente ao didacticismo de tantos outros filmes (ou melhor: onde o didacticismo sempre latente do Cinema de Oliveira aparece sublimemente "cortado" por um registo quase buñueliano de insistente absurdo que o subverte por inteiro, esvaziando-o completamente daquilo que o "didacticismo" tem sempre de irritantemente condescendente, importuno e superior---e assim o redime integralmente usando-o subversivamente na determinada construção de uma atmosfera de extasiante, permanente onirismo que tudo envolve e que se plasma, aliás, imediatamente nas cores e na luz do próprio filme como tal); filme onde Oliveira, dizia, foge decididamente da constante tentação da exposição---da "conferência"---e do didacticismo, "O Espelho Mágico" surge, em última instância, exactamente ao contrário disso, como um portentoso discurso, esplendorosamente visual, sobre a Inquietação e a Dúvida.

Sobre a Inquietação e a Dúvida tornadas imagem, o que é de facto notável.

Não sei se involuntariamente, o filme "cheira" à distância, como disse, a Buñuel (de quem Oliveira filmou, como se sabe, aliás, uma espécie de "sequel" pessoal de "Belle de Jour") e, concretamente, a "Tristana" (um dos meus filmes favoritos do realizador de "Un Chien Andalou").

O que é, sobretudo, soberbo no filme é, diria eu, o modo como Oliveira trabalha de modo de facto extremamente original e brilhante, verdadeiramente sábio (como tantas vezes fez também Buñuel, aliás!) na imprecisa fronteira entre a Razão e a Loucura, entre a Vigília e o Son(h)o.

Concretamente Oliveira trabalha, poderia (com) a propósito dizer-se: ao espelho.

(A fragmentação---a mutilação?---deliberada muito subtil da sequencialidade "natural" das coisas (bocados de possível realidade tão contínua quando des-continuamente devolvidos por uma espécie de 'espelho ôntico' imóvel e friamente indiferente a tudo); a fragmentalidade premeditada, dizia, da narração sublinha de modo aliás notável, esse registo geral de irrealidade e de sonho que, de um modo tão característico, marca indelevelmente todo o filme.)

Toda a vida, diz ele, é um espelho.

Há, é claro, para começar, aquela ideia de que a própria morte é um espelho do nascimento---o que significa obviamente que, de um modo ou de outro, no meio existem apenas imagens a que hoje chamaríamos caracteristicamente virtuais; ou seja, a irrealidade da "realidade", a mera suposição muito... berkeleyiana das coisas e das pessoas configurada na questão-chave: existimos, mesmo?...

...Ou é a vida na verdade uma (im?) pura elipse, uma 'ilusão de óptica ôntica', redutível, em última instância, às inquietações e inextinguíveis dúvidas que ela própria à consciência vai (des?) continuamente levantando?

Na verdade, toda a realidade é ela mesma, a seu modo, um espelho: não por acaso, a personagem de Glória de Matos (uma escatológica e pantagruélica personagem de "comédia negra" ou de "comédia sombria" chamada a potenciar ulteriormente o registo geral de afiada loucura do filme) faz uma subtilíssima reflexão sobre o Eu que se projecta, tão constante quanto caleidoscopicamente, nos objectos, isto é, na angustiante, obsessiva suposição geral de realidade que nos rodeia.

E é aí que, a meu ver, reside a própria chave do filme: o real não passa, em última instância, de uma parede brilhante que nos devolve sempre, até ao limite, infatigavelmente (se assim se pode dizer) imagens especulares completamente inconclusivas e insubstantivas das nossas próprias inquietações, dúvidas e obsessivas angústias.

Ou seja, o verdadeiro "espelho mágico" é aquilo a que ambiciosamente chamamos de "a realidade" em geral.

O que é particularmente brilhante no filme é, volto a dizer, o modo verdadeiramente esplendoroso, hipnótico, como Oliveira "põe isto directamente em imagens, em cores, em sombras e luzes", num registo geral de subtilmente 'velado' cromatismo onde a sugestão onírica se concretiza na perfeição: "la vida es (aqui, efectivamente!) sueño".

...E tal como faz Beckett em tantos momentos (designadamente num que tive o privilégio de traduzir e ver representado pela "Comuna, Teatro de Pesquisa": "All That Fall", uma peça radiofónica) sugerindo a inexistência da própria vida como tal por meio de crípticas e "simbólicas" referências a modos diversos de referir a sua própria negação (1), também aqui, Oliveira me parece comprazer-se em desenvolver a ideia da imaterialidade como estado natural da própria condição humana---desde logo, na angustiada/angustiante esterilidade material de Alfreda e/ou do marido.

Não existindo a não ser em tese os indivíduos (Alfreda morrerá, como se sabe, sem ver simbologicamente a virgem, isto é, no desconhecimento de se a sua pessoalidade enquanto tal possui, de facto, alguma efectiva viabilidade, substancialidade e sentido: alguma viabilidade dada por um possível sentido orgânico geral para as coisas) como podem eles gerar novos indivíduos--Vida, numa palavra?

Não será a esterilidade integral a condição natural dos estéreis?

E um simbológico torpor ou pré-coma invade adequadamente a dado ponto tudo e todos naquele inquietante "deserto ôntico dos tártaros" do filme--a partir da experiência autofágica de Alfreda.

É, por outro lado, extremamente curioso observar o modo (ainda e--talvez--sempre buñueliano?) como é admissível supor que, por uma vez, o crente Oliveira nos surja no seu próprio espelho mágico pessoal que é o cinema como o céptico sarcástico que substitui Deus por um burlão (é a personagem de Cintra quem se propõe, como se sabe, enviar a Alfreda a sua própria "Virgem"...) que troça da angústia e da inquietação de alguém que sofre desesperadamente por uma Verdade associada a ela "où l'on arrive pourtant jammais", como no título de um romance célebre de Eugène Dâbit...

Há, em qualquer caso, em "O Espelho Mágico", a meu ver (ou a meu... sentir) ecos de um certo Torga desafiador e raivosamente iconoclasta---o homem que provoca Deus para tentar fazê-lo decidir-se a sair do seu "esconderijo ôntico" e existir e (aspecto para mim particularmente interessante! Talvez por puro desejo intelectual o veja aqui inserido) de Büchner, do Büchner de "Dantons Tod", o homem que se dilui tragicamente nas próprias palavras enquanto marcas ou símbolos imateriais da sua própria impotência e dos seus próprios limites: as palavras (o discurso) como grande labirinto ontológico e concretamente como aquilo que separa o (possível) Homem não apenas da objectualidade im/pura e simples como tal mas, de modo paradoxal, também da própria essência ou verdade última possível das coisas...


NOTA

(1) Permiti-me, de resto, propósito cunhar o termo "naughtopy" ou "projecção e representação nulotópicas" em Beckett, uma ideia que, não sendo propriamente, exactamente como tal, comum a Oliveira, tem com ele, designadamente no que considero ser a temática latente deste "Espelho Mágico", algumas possíveis analogias e simulitudes.

Sem exagerar, alguma admissível, tética, proximidade, em todo o caso...

Oliveira partilha com Beckett, diria eu, neste caso, em concreto, um certo pendor sarcástica e, ao mesmo tempo, subtilmente escatológico onde está plasmada toda a (profundamente ambígua!) ironia dos seus autores relativamente à própria fragilidade da Humanidade como tal: numa palavra: o Homem é fraco e limitado, é verdade mas o que é (ou parece ser!) facto é que não há alternativa para ele, "diz" Oliveira...

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