quinta-feira, 27 de novembro de 2008

"Elia Kazan e a questão dos compromissos"

Sempre me pareceu (mas admito que "sempre me pareceu" pode ser aqui---e não apenas para mim...---sinónimo de "começou quase irresistivelmente a parecer-me desde que soube que...) que Elia Kazan era um fulano---um realizador, um artista---que, a partir de dada altura da sua carreira, começou a lidar particularmente mal com a culpa.
Isso, porém, é óbvio.
A questão é que me parece (e aqui é que entra a possível originalidade da análise que me proponho fazer) que ele lida mal, mais do que com a culpa, com a necessidade que a vida frequentemente impõe a cada um de nós de assumir posicionamentos ou compromissos determinados, claros, precisos---desde logo, políticos (não por acaso, um dos últimos filmes de Kazan chamava-se precisamente "O Compromisso", "The Engagement"...).
Ora, eu creio que essa ideia resulta muito clara quando se visiona (e se... psicanalisa---mesmo se apenas muito sumária e, sobretudo, muito amadoristicamente---que é o único modo por que eu pessoalmente posso fazê-lo...---o seu "Wild River", um filme que à época levantou bastante celeuma por ocasião da sua estreia entre nós.
Eu creio mesmo que o conteúdo latente do filme---o seu "genoma narracional" ou a sua "identidade epistemológica", se assim me posso exprimir...---consiste na equacionação (na desencantadíssima e angustiada equacionação) da antinomia "casa decisional" (status quo acticional) vs. necessidade imposta de "evoluir", de procurar vias autónomas fora dele, de arriscar de um modo ou de outro, relativamente a esse estado naturalmente familiar e naturalmente reconfortante que é a (aceitação tácita e fácil da) ordem estabelecida.
No filme, Chuck chega à pequena localidade que vai ser submersa e encontra uma Miss Ellie/Jo van Fleet (teatral, "herdada" directamente de "East Of Eden" do mesmo Kazan e do Kazan original cuja prática vem como se sabe do teatro) que opera até dado ponto da narrativa como um símbolo material de obstinada dignidade perante a fatalidade e perante a própria vida de uma maneira geral.
A verdade, porém, é que do nobilíssimo "suicídio" da personagem a que essa atitude de trágica dignidade a conduz não resulta propriamente a catarse que até dado momento parece ir sair dali como ideia final do filme.
Ou seja, este não é decididamente um filme sobre actos de admirável resistência isolada e de coragem pessoal exemplar.
Qualquer desses sentimentos ou dessas posturas é algo que parece, aliás, embaraçar visivelmente o Kazan deste período---mas--lá está!---talvez seja possível supô-lo apenas porque realmente todos conhecemos a "estória" pessoal do próprio Kazan...
Seja como for, muito mais do que sobre a exemplar resistência de uma mulher frágil e só a forças incomensuravelmente maiores, o filme é de facto sobre a abjecção de quem não é capaz de agir em consonância com essa espantosa lição de coragem (a sequência em que Remick luta "por" Clift com o rufião local é absolutamente penosa e chega mesmo a causar, pela brutal violência pessoal e cultu(r)al, dor física no espectador!).
"Wild River" é um filme sobre um (anti!) herói frágil e cobarde que preferia não ter tido de optar (que, de facto, não opta, aliás!) entre (a) algo que é do ponto de vista da sua coragem pessoal literalmente inatingível, algo que é grande demais para si (já o dise: agir em consonância com a coragem desesperada de Miss Ellie) e (b) aquilo que vai realmente fazer: desalojá-la---e, no, limite, executá-la, cedendo completamente às tais forças superiores (da realidade, da História, do que quiserem ver ali representado).
É verdade que, no fim (numa imagem, aliás, horrível de mau gosto!) Kazan põe em evidência a barragem que, assim, aparece como sugestão final de "legitimação": a barragem, com efeito, aparece no filme como "justificação" final (isto é, a-posterirística) para a pusilanimidade do "herói" numa espécie de recuperação "oblíqua" do velho princípio de de que os fins justificam e legitimam os meios ou de que a cobardia, às vezes, "acerta" não agindo nem fazendo opções (éticas, políticas) de qualquer espécie.
Chuck aparece aqui, de facto, claramente como o indivíduo fraco que usa o Progresso como alibi para a sua própria pusilanimidade.
É o homem cheio de hesitações e dúvidas que Kazan claramente tenta reabilitar---ou, no mínimo, tornar simpático e humano, uma tarefa a que um notável Monty Clift confere uma "espessura" narrativa de facto notável.
A dado passo (na recusa à luta com o rufião parolo da aldeia), a personagem de Clift faz pensar nos heróis de (Anthony) Mann ou do próprio (grande!) Ford: no 'Will Lockhart' de "The Man From Laramie" ou (exemplo máximo!) no 'Rance Stoddard' de "The Man Who Shot Liberty Valance", homens para quem a coragem individual se plasmava no reconhecimento dos valores da Justiça e da dignidade em detrimento da força, como grandes (como únicos e essenciais!) motores da acção humana na sua difícil interrelação com forças aparentemente (muito!) mais poderosas.
Muito mais do que um filme (ou um discurso) sobre a ética da acção humana, "Wild River" é uma amarga (e culpada!) reflexão sobre a a humanidade, não (como titulava Nietszsche "para além do Bem e do Mal" mas e facto "para aquém" deles.
Independentemente deles. Simpático porque humano.
Essencialmente isso: humano.
Aliás enquanto 'pedaço' de uma dilacerante tragédia existencial, o filme funciona porque como encenador e cineasta Kazan não era, de facto, "um qualquer" e consegue, realmente (tentando embora dizer muitas coisas---ou mesmo "tudo"---ao mesmo tempo...) arrastar-no para uma "descida aos infernos" de uma consciência culpada angustiadamente de todo incapaz de expiar de vez a própria culpa.
É claro que é sempre tentador (embora possa admissivelmente não ser justo) ver no cinema de Kazan a tentativa constante da justificação, o pedido recorrente da compreensão---e do perdão.
Eu pessoalmente, volto a dizê-lo, é exactamente isso que vejo em "Wild River", concretamente: o drama---a tragédia!---do indivíduo a quem a Vida obrigou a ter de tomar uma posição---e ele tomou a que mais lhe repugnava por não coragem para tomar a outra.
Daí, o olhar nostálgico pela morte não já (ou não inteiramente) como um símbolo de coragem mas de tranquilidade e de paz.
Se virmos, aliás, bem, no filme, Chuck nunca decide: vai com os acontecimentos, seguindo-os e erigindo ese seguidismo como um alibi e como uma defesa.
"Wild River" é um filme sobre o "fiz porque tinha de ser, logo não sou verdadeiramente culpado de coisa alguma.
E, depois, há o Progresso, claro, que "explica" tudo quanto (não!) fiz..."
O "quem-me-dera-não-ter-tido-de-decidir" como utopia (a) moral perfeita...
Do ponto de vista plástico (mesmo exibido com aquela barbaridade de cortar-lhe duas valentes "fatias" de cada lado com que a RTP costuma "respeitar" os filmes e o cinema em geral...) custa ver tanto talento narrativo desperdiçado nas mãos de alguém eticamente desprezível---e que, de resto, até ao fim da vida nunca perdoou, como se sabe, a si próprio a cobardia de ter delatado...

Sobre os actores: van Fleet, teatral e steinbeckiana dá, como dise, o tom teatral (e até, de algum modo, steinbeckianamente arquetípico e 'bíblico'); Clift é realmente notável na sua máscara quase tragicamente impassível pós-acidente (versão contemporânea da máscara trágica grega...) mas Remick consegue superá-lo, numa prestação verdadeiramente sublime de Brando-de-saias, imagem simbólica da compreensão, do reconhecimento e do perdão para a Culpa que Chuck/Kazan não cessam de implorar...

Sem comentários: