domingo, 30 de novembro de 2008

"Schatten..." ("collage/superimposition" do titular do blog)


"All That See", um tributo pessoal a Beckett... ("collage" do titular do blog)


"A velha «Almirante Reis»"


A Avenida Almirante Reis, no início do século XX: à direita o Asilo de Sto. António--"para a Infância Desvalida" de seu nome completo


A velha, pois--porque "a de hoje" não tem rigorosamente nada que ver com "a minha"...
Nesta, podia-se brincar (brincava-se, aliás, no Jardim dos Anjos que fica logo a seguir ao Asilo, à direita e que tinha no topo uma espécie de plataforma empedrada onde se jogaram grandes partidas de futebol. Aí ocorreu a minha primeira (e até agora única!)... "internacionalização". Como entre os miúdos que aqui brincavam havia um que era espanhol (o Barrueco) quando joguei contra ele ("muda aos cinco e acaba aos dez"...) fui internacional.
Fui, pronto! Não teve lá muito mérito o modo como o fui?
Pois... se calhar, não teve mas foi o que se pôde arranjar e hoje posso dizer que sou internacional que ("tecnicamente, pelo menos...) não estou a mentir.
Muito...
Mas voltando à 'Almirante Reis' da minha infância.
De algum modo, tudo girava em torno dela: ia-se ao cinema (sobretudo!) nela (às matinés do "Lys", como recordo noutro ponto); ia-se ao médico nela (à "Policlínica dos Anjos", ao Dr. Anastácio Gonçalves nela); ia-se ao café depois do cinema, para não variar, nela (à "Delta" que era por baixo da Policlínica); (à Escola, na "Luís de Camões" que ficava no mesmo edifício entre a "Policlínica" e a "Delta"); iam-se comprar cigarros ao "Campos", na esquina com a Rua Maria e, se houvesse festa, cigarrilhas ao 'outro' Campos, do lado do Regueirão dos Anjos...
Tenho a vaga ideia de ter visto este quiosque ainda mas talvez esteja enganado.
A 'Almirante Reis' era para a pequeníssima burguesia funcionária dos Anjos onde se inscrevia o meu Pai, veterinário na Junta Nacional dos Produtos Pecuários, a promoção, o luxo, um luxo.
O bairro tinha "leitarias", a Almirante Reis... pastelarias--o que está muito longe de ser a mesma coisa!

Outro aspecto da 'Almirante Reis' do início do século passado. A meio, do lado direito, o (para mim, mítico...) cinema Lys. Junto a ele, uma casa de tecidos onde houve durante muito tempo uma espécie de "lobby photo" de um filme francês (de René Clair) com Pierre Brasseur ("La Porte des Lilacs") que eu ia admirar invariavelmente fascinado sempre que saía da "Luís de Camões")


Era o tempo da Lisboa pós-rural (ou pré-urbana) em que cada bairro (como ainda hoje sucede, de resto, oficialmente na toponimia britânica ou belga) era, de facto, uma "vila" ou uma "aldeia" (raramente, uma "cidade") independente que pouco tinha a ver com as outras limítrofes e de onde havia muito boa gente que apenas saía para ir à tropa...
Claro que a "gente dos Anjos" ia à Graça (quem ia, claro!...) ao Liceu, ao 'Gil'; se houvesse dinheiro, subia a Avenida e ia ao "Império", se não o houvesse, fazia exactamente o oposto, descia-a, e ia ao "Piolho", no Martim Moniz ou ao "Olympia", já na Baixa.

Na "Baixa" menor e quase clandestina que seguia paralela ao luxo da Avenida da Liberdade--que era já outro mundo, completamente diferente!
O nosso bairro era (literalmente!) a nossa casa, a nossa família.


Ainda a "velha" Almirante eis aqui numa foto de 1908. À direita, abria-se o mundo fascinante porque proibido do "Intendente", cujo nome apenas se articulava, no seio das famílias respeitáveis num conveniente cício. Esta zona da 'Almirante Reis' era, de rsto, uma espécie de fronteira invisível, na década de '50. Para cima, a Lisboa respeitável, séria. Daqui para baixo, até ao Martim Moniz e à Mouraria (inclusive, em ambos os casos) , a "cidade proibida". Por exemplo, ao "Lys", iam as famílias, ao "Rex", "os operários" e (claro!) as prostitutas. Entre a sólida "respeitabilidade" do meio do século havia uma linha muito ténue e fluida a separar ambas essas (por razões em si mesmas distintas: profundamente inquietantes!) entidades...

Era um problema fumar porque toda a gente se conhecia dos Anjos à Graça, por um lado e à Praça do Chile, por outro (eu, pelo menos, assim acreditei durante muito tempo!...) e ia contar tudo ao "velho".
Curiosamente, fui re/encontrar esta cidade pluralizada e granular (quando já morava no anonimíssimo Bairro de Sta. Cruz um dos vários pontos onde a cidade se desarticulara e se começara já fatalmente a des-integrar, no final da década de '60) em Paris, no início da década seguinte, a de '70.
Montparnasse, por exemplo, era um verdadeitro Alto do Pina apenas um pouco mais acima ou mais a leste do que o outro...
Ao fim de uma semana, já conhecíamos toda a gente e já toda a gente se nos dirigia com a familiaridade que apenas se usa para os "nossos"...
As pessoas viam-nos as silhuetas entrar nas lojas, desconfiavam, começavam bruscamentre a retrair-se mas mal nos reconheciam havia, de imediato, aquele tranquilizador descontrair-se de "Ah! C' est vous!" que reconhecíamos imediatamente como um código secreto entre cúmplices...
A padeira da Rue Raymond Losserand ia logo buscar os inesquecíveis "pains brisés" que só ela fazia, a senhora da "brasserie" começava logo a fritar os ovos e o presunto antes mesmo de a gente pedir porque os ovos e o presunto foram, em Paris, uma fantasia de que não abríamos por nada deste mundo mão...


França, Paris, Montparnasse-Bienvenue, a Rue Raymond Losserand (onde se situava o "nosso" Hôtel de la Paix) numa imagem extremamente curiosa feita durante a "Ocupação"

"«Mon Oncle» encore une fois..."

Ontem foi dia de S. Oliveira: vi "Belle Toujours" de que, desde já o admito, ao contrário do que aconteceu com "O Quinto Império" por exemplo e, sobretudo, com o belíssim' "O Espelho Mágico") não gostei, com toda a franqueza, especialmente.
Talvez seja, ainda uma vez, neste caso, uma questão de deixar que da fase do "estranhar-se" (quase inevitável nos primeiros contactos com o realizador d' "O Espelho Mágico"...) se passe finalmente à do "entranhar-se", na frase célebre, não sei.
Sei que, como teatro, é interessante, muito... "francês", aqui-e-ali, muito Sacha Guitry, mas também curiosa e um pouco estranhamente muito... Noel Coward.
Muito intelectualizado.
Muito expositivo, muito "didáctico".
Muito... "o-menino-que-abre-o-brinquedo-para-ver-o-que-tem-lá-dentro" (e é por isso que o brinquedo deixa, de algum modo, de funcionar?...)
É (para o bem e para o mal), numa palavra, muito Oliveira...
...O que não é, obviamente, de forma necessária (longe disso!) mau, entendamo-nos!
O problema só se põe desta forma, aliás, porque o filme se reporta confessadamente a Buñuel: ao seminal, truculento e sacrílego Buñuel.
...Do qual era suposto ser uma espécie de "glosa" mais ou menos livre, como se sabe.
Do qual, porém, reconhecivelmente pouco tem.
O filme não é, de facto, sobre Buñuel e sobre "Belle de Jour": é claramente sobre Oliveira.
Acho, todavia, volto a dizer (e permita-se-me a vulgaridade da imagem...) que, como naqueles "apanhados" em que um fulano ou fulana, de forma inexplicável, se obstina teimosamente em "explicar" com minúcia ao público, antes e depois delas ocorrerem, cada "situação", em "Belle Toujours" há um determinado "explicar" (via quase obsessivo "racionalizar") do filme anterior que, de algum modo, o des-sacraliza e até (pior ainda!) banaliza um pouco.
É essa, pelo menos, a minha opinião...
A minha impressão imediata, em todo o caso...
Considero, porém, que tal poderia não ter acontecido, a meu ver, se Oliveira tivesse pretendido (ou tivesse conseguido?) re-criar "Belle de Jour", de algum modo assumido, de algum modo, resoluto e efectivamente independente (de algum modo assumido que até poderia--porque não?!--ser um modo deliberadamente "sacrílego", como o era, aliás, na sua essência, a própria 'maravilha' buñueliana).
Para pô-la em causa, para verberá-la, para ultrapassá-la, para superá-la, para lhe manifestar cinematograficamente amor ou ódio, aprovação ou denúncia; enfim, para fazer dela e com ela uma coisa qualquer planeada e realmente nova... dialéctica.

Uma coisa nova...
Ora, não me parece, sinceramente, que a via escolhida (a especulação fria, quase 'gélida e lucidamente desapaixonada', o "jogo", o "xadrez" intelectual) tenha conseguido justificar, em última análise, a pequena glosa.

Entendamo-nos!
O filme não é belo?
É belíssimo!
A música (de Dvorjak) esplendorosa.
Oliveira, mesmo quando a ele não se adere de imediato, fatalmente sumptuoso, provocatório e esclarecidamente estimulante.
Piccoli (traído, embora, pela extensão muito oliveiriana de alguns planos que o levam a repetir-se e até ocasionalmente a caricaturar-se aqui-e-ali um pouco...); Piccoli, dizia, profissionalíssimo, "il se laisse simplement aller", todo 'métier', todo distinção e essência ainda quando tem de mudar bruscamente de tom ou quando, pelo contrário, se atarda e insiste "un peu trop" num.
Apenas Ricardo Trêpa (tinham sido francamente bons, notáveis mesmo, os seus "D. Sebastião" em "O Quinto Império" e o jovem ex-presidiário d' "O Espelho Mágico"!); apenas Ricardo Trêpa, dizia,"traído" este por uma fonética francesa, com a qual visivelmente não se entende de todo, tropeça em demasia nas respectivas falas (não se liberta, desta feita, claramente da carpintaria do papel que aqui assume, sobretudo, a forma de um grave problema linguístico) e acaba ingloriamente vencido por elas; Bulle Ogier (assim como, já agora, as duas prostitutas!) estão a mais (a "Séverine" de Ogier não tem rigorosamente nada que ver com a Séverine original: não tem propriamente mistério, não tem a espantosa beleza "greta-garboiana" de Catherine Deneuve para profanar, excitando o 'Eu sacrílego' que há--que, segundo Buñuel, deve haver!--em cada um de nós e que era uma das chaves essenciais do "apelo" pessoal e artístico do co-realizador de "Un Chien Andalou": o seu "Belle de Jour" é todo ele precisamente sobre a revolta prometaica, sacrílega, contra a perfeição e o 'excesso de Luz' assim como, por extensão, um hino ao ódio 'justo' e devastadoramente profan(ad)o(r) contra a inatingibilidade absoluta da Razão e/ou do próprio sagrado); Paris é... Paris (e, então, à noite não é--e isto sem qualquer tolo pedantismo, entenda-se!...--pura e simplesmente descritível...); há, enfim, em "Belle Toujours" uma Beleza absoluta e por vezes quase desesperada, sumptuosa e trágica (um trágico, paradoxal, desesperado anseio de luz através de todo um "programa" in/essencialmene latente de desesperada subversão); uma Beleza definitiva, final, total, que acaba, todavia, situando-se, por tudo quanto disse, nos antípodas do "buñuelismo" original.
E as prostitutas (uma delas, a magnífica falsa "Virgem" d' "O Espelho Mágico"): que fazem elas, com efeito ali?
Se o filme tivesse propriamente uma perspectiva autónoma definida sobre a questão essencial da "revolta" contra a tirania do Bem e da Luz como algo que se pretende impor unilateral e previamente à consciência que era a essência da temática buñueliana (e não apenas ou não sobretudo o discurso sobretudo verbal em torno de uma espécie de meta-personagem omnipresencial configurada numa Culpa "bavardeuse" e comovedoramente um pouco senil que cobre tudo) poderiam ser "bruxas" como as de "Macbeth", por exemplo...
Assim...).

Muito interessante (e estimulante!) é o debate que se reabre, por outro lado, no filme em torno de um velho equívoco/conflito "oliveiriano" relativamente ao Cinema--algo que estava já nos textos "teóricos", didascálicos referentes à "Benilde", por exemplo.
Por uma razão qualquer, Oliveira acha que a relação entre Teatro e Cinema deve ser uma relação desigual e, sobretudo, ancilar do Cinema relativamente ao Teatro com aquele a veicular docilmente a mensagem específicamente dramática.
Di-lo, repito, concretamente a propósito de "Benilde ou a Vigem Mãe".
Num certo sentido, a sua proposta teórica de Cinema (o "específico cinematográfico" para Oliveira) assenta precisamente aí, em essência.
É verdade que a indústria violou o Cinema esvaziando-o ao fazê-lo "mutar", pós-modernamente sobretudo, de um conteúdo numa mera forma criando a sua própria ilusão de conteúdo. É verdade que a via da revalorização da cinematividade do Cinema pode (e, se calhar, deve! Deve seguramente!) passar por uma consciente reconsideração do próprio meio como tal--o que não exclue (bem pelo contrário) como defende o próprio liveira, a apologia e a prática de u minimalismo purificador.
O que eu pessoalmente me atrevo a questionar é que o minimalismo seja re/criado a fim de ser afinal, ainda uma vez, usado, agora como mero dispositivo utensilar da dramaturgia e da Palavra.
Até porque "o melhor" Oliveira (para mim, volto a dizer) não está, em última análise (de modo algum!) no cinema "didáctico" e in/essencialmente verbal de "Non", por exemplo (nas partes em que "Non" é terrivelmente verbal) mas no cinema-cinema que usa o património das várias Artes, sim, mas num registo e com um espírito próprio, sem deixar, portanto, em momento algum, de ser Cinema--como a Obra do próprio Oliveira demonstra num vastíssimo arco que vai desde "Douro Faina Fluvial" a, por exemplo, "O Espelho Mágico", por isso mesmo uma das minhas obras preferidas do Mestre.

Ora isto, esta "questão" de episteme cinematográfica, estética (explica-se assim a imagem que seleccionei para ilustrar esta "entrada") já está tudo "resolvido" (e de que--verdadeiramente genial!--maneira!) no meu cineasta "de cabeceira"--Jacques Tati...

"Moderato Cantabile"

Esta é para ti, excelente Duras!

"Jimbo"

Jimbo, ol' pal!...

"A Testemunha"

De quê?...

"A Loucura é um Lugar de Deus"

Eu acho...

sábado, 29 de novembro de 2008

"(Mais) algumas reflexões benfiquistas"


Escrevo hoje, dia 29.11.08, dois ou três dias após o "meu" Benfica ter sido copiosamente derrotado no Pireu e ter deixado enterrado ali, no fundo, para aí setenta ou oitenta (senão for mais) por cento de um projecto que ainda mal tinha começado e já ameaça desmoronar-se por completo: o 'projecto Rui Costa-"Quique" Flores'.
Escrevo, portanto, meia dúzia de dias após ter dito dos jogadores, do Clube, do técnico e do presidente aquilo que Mafoma não disse do toucinho em tudo quanto era blog por esse mundo fora...
Agora, estou compreensivelmente mais calmo--que é como quem diz: mais conformado (na realidade: proporcionalmente desencantado).
E escrevo agora aqui para dizer (já com a cabeça mais "fresca", como dizia o velho Acabado, meu pai) o seguinte: o 'projecto Rui Costa' (que com um bom ponta-de-lança poderia perfeitamente ter representado uma espécie de época-charneira ou de... "despedida-de-solteiro competitiva" triunfante na História do Clube) queiramo-lo ou não parece ter já, de algum modo, chegado ao fim, antes mesmo de ter começado, como disse.
Sejamos claros: como também escrevi noutro sítio, o futuro do Benfica (se é que o Benfica tem realmente futuro: essa é outra questão...) apenas pode passar por duas possibilidades completamente exclusivas e radicalmente alternativas entre si: ou o desmanchar imediato da feira com a venda progressiva dos jogadores "de nome" que adquiriu mas não conseguiu obviamente rentabilizar (o 'projecto Rui Costa' assentava nuclearmente--e esse era já o plano B, ham?--nos quartos-de-final da Taça Uefa onde o Benfica não vai obviamente chegar) e a "sportinguização" do Clube, isto é, a sua reconversão numa "potência" puramente local incomparavelmente mais "barata"; ou o desenvolvimento natural do modelo "industrial" iniciado, de algum modo, com a criação da SAD e a consequente aceitação da venda do Clube a um investidor privado, por um lado e a decorrente "iberização" ou mesmo, a prazo "europeização integral" do Clube, de modo a tornar a referida venda possível porque rentável.
O que me parece ter-se provado manifestamente insuficiente é a aposta num brumoso e hesitante meio-termo configurado na conservação do modelo "híbrido" SAD+Clube assente, por sua vez, na compra de jogadores de segunda para os lançar na competição com os de autêntica "primeira" (i.e. os restos do Inter de Milão; os restos do Real Madrid; uma "ocasião" avulsa resultante da desgraça do Valência etc.) como digo para os relançar na luta directa com aqueles de que os clubes em causa não quiseram desfazer-se e que são, de facto, as respectivas primeiríssimas escolhas, as elites a manter.
O que eu digo é que, se quer mesmo evoluir, o Benfica tem de crescer--mas crescer a sério. Tem, por outras palavras, de levar o paradigma da empresarialização iniciada até às derradeiras consequências.
Tem de seguir os exemplos dos Manchesters, Chelseas e Man Cities.
Em tese, tem mercado para isso mas tem de perceber que a "mercearia do sr. Zé" mesmo com obras e uma pintura nova nunca poderá competir realmente com o supermercado do "Ti Belmiro".
Portugal é um país com um capitalismo "de primeira" onde cabe toda uma sociedade e até um mal--disfarçado proletariado para aí "de terceira": berra por quantas tem que não pode permitir-se um "social" "à europeia" porque é pobre mas não hesita em aceitar ter um sector investimental perfeitamente "europeu" nos lucros que tem e nos que pretende ainda ter (é, aliás, a isso que eu chamo, por razões que de tão óbvias me dispenso de enunciar, o "paradoxo dos dois Portugais").
Mas esses são contos largos que abordarei noutro momento e noutro lugar: para aqui, interessa, sobretudo, reter a ideia de que há em Portugal UM Clube que pode ser no plano competitivo ("Desporto" e "Desportivo" "are words I rarely use without thinking", como na canção do Donovan...) o que determinados supermercados e certas empresas de construção civil são, no plano empresarial "puro": formações completamente estranhas à (isto é, macrocéfalas, grandes demais para a) realidade global (social, económica, etc.) nacional.
As outras, vão vender "para fora", claro, porque isto de haver "dois Portugais" significa que um deles vende mas o outro não pode pura e simplesmente comprar pelo que a única saída é.. a "Europa" (para isso é que ela foi feita e por isso é que eu não consigo falar em "União" "europeia" a propósito do que continua, afinal, a ser--de facto e até de direito--um mercado comum e nada mais).
Falo obviamente do Clube cuja imagem escolhi para ilustrar esta 'entrada': "no other than" o Sport Lisboa e Benfica.
Mas, se as "outras" vão vender "para fora" porque, com as condições que foram criadas ou que elas próprias criaram para chegarem ao ponto de serem o que são, os "de dentro" não podem comprar, como podem os clubes que aspiram a rivalizar com os grandes europeus não fazer no domínio específico onde actuam, exactamente a mesma coisa?...
Essa é que é a grande questão.
E é exactamente por isso que eu digo que ao Benfica (que, continuo a dizer, é o único representante da Competição entre nós que pode chegar a ser o "Incontinente" ou o "Fodelo" da Europa--chamo-lhes assim porque não me pagam para fazer propaganda seja a quem for, ham?...--na dimensão das receitas e consequentemente na dos lucros gerados) apenas resta, para poder crescer "ir para fora", competir (como defende, de resto, abertamente o presidente do Sporting, o Dr. Soares "Fraco") numa qualquer liga europeia que há-de formar-se um dia, mais cedo ou mais tarde.
Que há-de formar-se como a chamada "Liga dos Campeões" se formou da "Taça dos Campeões Europeus", para não irmos mais longe.
A questão não é, pois, se o Benfica vai: é, em última instância, quando vai.
Para terminar: eu digo que o Benfica é o único que pode ir.
Porquê?
Bom porque o Porto não parece conseguir deixar de ser um clube de região (eu não digo "regional" que é demasiado feio mas "de região" com certeza: foi uma escolha feita pelo clube, como demonstro noutro lado) e o Sporting não tem nem nunca teve qualquer significado europeu pelo que, a consumar-se a sua "europeização", esse significado teria de ser criado completamente ex-nihilo, digamos assim. Um catalão pode pagar para ver o Barcelona "vingar" aquela final dos 3X2 em Berna: há uma tradição envolvendo o Benfica e o Barcelona que pode ser usada como intrumento de marketing; o mesmo acontece, até em maior escala, com o Real Madrid.
E com o Sporting?
Com o Sporting acontece como naquela vez em Bruxelas em que eu falando com um grupo onde estavam belgas e espanhois da STIB referi o nome do clube e toda a gente desatou a rir pensando que estava a brincar.
A brincar com os nomes do Sporting Club Anderlechtois, num caso e com... o Sporting de Gijón no outro...
Melhor (mais eloquente, mais conclusiva!) comprovação de quanto aqui deixo dito era seguramente difícil de encontrar...
[Na imagem: um (o principal!..) dos preciosos cromos da colecção dos anos '30 que refiro noutro ponto deste "Diário"]

"«À Iguinórância» da «Juventudji» é um «Issepanto»!..."


E não é que... é??!!

Do "Diário de Notícias" de 10.10.08 retiro esta prova verdadeiramente 'arrepiante' da sua presença "ao mais alto nível" (?) da (chamada) (i) "comunicação" e (ii) "social".
A propósito do escândalo da atribuição de casas ditas, elas mesmas "sociais", pela Câmara de Lisboa (que, ao longo de anos as parece ter ido atribuindo como quiseram diversos dos seus incontáveis funcionários, no quadro de um "jogo", ao que tudo indica vulgar, de tráfico de vaidades e conveniências--senão mesmo de óbvias influências) escreve, a dado passo, um anónimo sob o título: "João Soares foi quem cedeu mais casas" esta pérola de erudição, rigor informativo e respeito pela História:

"No mandato do primeiro presidente da autarquia eleito democraticamente após o 25 de Abril, Aquilino Ribeiro Machado, foram atribuídas 75 habitações, enquanto antes da revolução de 1975 [sublinhado meu], foram cedidas 708 casas".

Da "revolução de 1975"??!!
Oh, pá! Por amor de Deus! Vai mas é trabalhar, como dizia o "outro"! Vai estudar História, pá! Se tu, sejas lá quem fores que escreves mas não assinas, com os acontecimentos que afinal te permitiram que estivesses aí, onde (para mal dos nossos pecados e dos da própria História...) estás, dizendo as asneiras que dizes, tens o respeito que obviamente (não!) tens, como carga d' água queres tu que a gente acredite no resto???!!...
É por essas e por outras que eu, entre "críticos de futebol" que aproveitam o desporto para despejar peçonha sobre uma classe profissional inteira de que---eles lá saberão porquê---não gostam (através do expediente menor de "ir-lhe aos sindicalistas") e graciosos-de-três-ao-pataco apostados em fazer, domingo-a-domingo da imbecilidade uma nova ciência ao "D.N.", só o compro se (como diz também o outro)... "tiver mesmo de"

Para terminar: o tipo que escreveu isto é um jovem?
Francamente não sei--ele nem sequer se identifica, claro, mas adulto, verdadeiramente adulto (civicamente crescido) não deve ser: pessoa alguma, com um mínimo de maturidade (e de conhecimento!) era capaz de, de uma forma tão leviana, "put the clock", neste caso "forward" de um modo tão cretino, tão irresponsável e tão ignorante e deslocar a revolução exactamente trezentos e sessenta e cinco dias (!!) para fora do ano em que (pelos vistos para nada--mas essa é outra "estória"...) teve efectivamente lugar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

"Papa Siggy" ("collage" do titular do blog realizada sobre uma obra de António Carneiro e divulgada com texto em "Um Não-Alexandre Onírico")


Como gosto realmente muito de Freud e me fascina a sua Obra mesmo nos aspectos em que se revela hoje-por-hoje datada, quis repetir aqui a exposição de um "collage" onde sentidamente lhe presto como posso uma devotada homenagem.

"Goddo" ("collage" divulgado no "Um Não-Alexandre Onírico")


"Alguns «espelhos» clássicos no Cinema"

"The Sea Chase" (John Farrow)
"The Lady From Shanghai" (I e II) (Orson Wells)
"O Espelho Mágico" (Manoel de Oliveira)
"Vertigo" (Alfred Hitchcock)
"The Lady in the Lake" (Robert Montgomery)

"Desconstrução/mutilação surrealizante de um clássico"

Sobre um fragmento de tela de Leonardo e fotografia de origem desconhecida [ver "Um Não-Alexandre Onírico"].

"Monty Clift e Lee Remick, o par "romântico" de "Wild River" de Elia Kazan


"O Espelho Mágico", filme de Manoel de Oliveira


Adicionar imagem Quero começar por dizer que estou cada vez mais firmemente persuadido de (pelo menos...) duas coisas relativamente ao Cinema de Manoel de Oliveira.

A primeira é que, tal como vem objectivamente sucedendo, por exemplo, com a Obra de outro "caso" cultu(r)al nacional de referência, o de Fernando Pessoa, o realizador de "Razão e Utopia" e "Belle Toujours" não beneficiará de facto muito com a extrema exposição a que (no seu "caso", o próprio Autor a si mesmo) se sujeita.

Isto é, filmando continuamente e vendo os seus filmes exibidos quase podíamos dizer: literalmente "em tempo real", Oliveira corre (a meu ver, pelo menos) em tese, o possível risco de não se seleccionar suficientemente a si próprio, produzindo obras um tanto desiguais (às vezes, com a particularidade típica adicional---perfeitamente dispensável, aliás---de um didacticismo exagerado, não-raro extremamente desconfortável, no contexto de uma Obra onde os valores plásticos possuem, em regra e em si mesmos, um valor específico tal que podiam perfeitamente atingir a eloquência ideal sem precisarem de recorrer à muleta indesejável desse revestimento apócrifo da "lição" teórica infiltrada "par dessus le marché" num mundo narrativo onde está, com frequência, insisto, não-raro, claramente a mais).

É esse um modo pessoal de entender o cinema e, especificamente, a sua relação particular com o Teatro e com a Palavra?

É-o, assumidamente.

Basta ver o que o próprio Oliveira diz sobre a sua ideia de como filmar o drama (o de Régio, especificamente)---e é, portanto, preciso perceber (e dizer!) que, mesmo nos casos em que haja dessa sua pessoalíssima visão, responsável discordância é sempre à luz dessa ideia ou desse princípio teórico básico de que "as coisas" não acontecem ali assim por acaso mas, bem ao contrário, em resultado de uma deliberada opção estética, plástica,narrativa que há que ver o "produto" final do cinema do realizador de "Benilde" ou "Belle Toujours".

A segunda coisa que comecei por referir é que (idealmente roubada a uma anti/cultura de clichés como aquela em que vivemos e que tudo reduz a "fórmulas" acriticamente 'transaccionadas' entre e no próprio interior de audiências alimentadas, por sua vez, a doses maciças de ignorância e boçalidade---também--estética, narracional), a Obra do realizador de "O Espelho Mágico", como sucede, de resto, com de uns quantos outros Autores verdadeiramente originais (Ferreri, Straub, Lynch, Cronenberg, o próprio Oshima, Bergman, etc.) primeiro estranha-se (e quanto pode a de Oliveira, efectivamente não-raro estranhar-se!...) para depois se entranhar, então, na melhor das hipóteses, definitivamente.

Eu diria, aliás, que o "caso" deste "Espelho Mágico" é a esse propósito verdadeiramente paradigmático.
Filme onde Oliveira resiste claramente ao didacticismo de tantos outros filmes (ou melhor: onde o didacticismo sempre latente do Cinema de Oliveira aparece sublimemente "cortado" por um registo quase buñueliano de insistente absurdo que o subverte por inteiro, esvaziando-o completamente daquilo que o "didacticismo" tem sempre de irritantemente condescendente, importuno e superior---e assim o redime integralmente usando-o subversivamente na determinada construção de uma atmosfera de extasiante, permanente onirismo que tudo envolve e que se plasma, aliás, imediatamente nas cores e na luz do próprio filme como tal); filme onde Oliveira, dizia, foge decididamente da constante tentação da exposição---da "conferência"---e do didacticismo, "O Espelho Mágico" surge, em última instância, exactamente ao contrário disso, como um portentoso discurso, esplendorosamente visual, sobre a Inquietação e a Dúvida.

Sobre a Inquietação e a Dúvida tornadas imagem, o que é de facto notável.

Não sei se involuntariamente, o filme "cheira" à distância, como disse, a Buñuel (de quem Oliveira filmou, como se sabe, aliás, uma espécie de "sequel" pessoal de "Belle de Jour") e, concretamente, a "Tristana" (um dos meus filmes favoritos do realizador de "Un Chien Andalou").

O que é, sobretudo, soberbo no filme é, diria eu, o modo como Oliveira trabalha de modo de facto extremamente original e brilhante, verdadeiramente sábio (como tantas vezes fez também Buñuel, aliás!) na imprecisa fronteira entre a Razão e a Loucura, entre a Vigília e o Son(h)o.

Concretamente Oliveira trabalha, poderia (com) a propósito dizer-se: ao espelho.

(A fragmentação---a mutilação?---deliberada muito subtil da sequencialidade "natural" das coisas (bocados de possível realidade tão contínua quando des-continuamente devolvidos por uma espécie de 'espelho ôntico' imóvel e friamente indiferente a tudo); a fragmentalidade premeditada, dizia, da narração sublinha de modo aliás notável, esse registo geral de irrealidade e de sonho que, de um modo tão característico, marca indelevelmente todo o filme.)

Toda a vida, diz ele, é um espelho.

Há, é claro, para começar, aquela ideia de que a própria morte é um espelho do nascimento---o que significa obviamente que, de um modo ou de outro, no meio existem apenas imagens a que hoje chamaríamos caracteristicamente virtuais; ou seja, a irrealidade da "realidade", a mera suposição muito... berkeleyiana das coisas e das pessoas configurada na questão-chave: existimos, mesmo?...

...Ou é a vida na verdade uma (im?) pura elipse, uma 'ilusão de óptica ôntica', redutível, em última instância, às inquietações e inextinguíveis dúvidas que ela própria à consciência vai (des?) continuamente levantando?

Na verdade, toda a realidade é ela mesma, a seu modo, um espelho: não por acaso, a personagem de Glória de Matos (uma escatológica e pantagruélica personagem de "comédia negra" ou de "comédia sombria" chamada a potenciar ulteriormente o registo geral de afiada loucura do filme) faz uma subtilíssima reflexão sobre o Eu que se projecta, tão constante quanto caleidoscopicamente, nos objectos, isto é, na angustiante, obsessiva suposição geral de realidade que nos rodeia.

E é aí que, a meu ver, reside a própria chave do filme: o real não passa, em última instância, de uma parede brilhante que nos devolve sempre, até ao limite, infatigavelmente (se assim se pode dizer) imagens especulares completamente inconclusivas e insubstantivas das nossas próprias inquietações, dúvidas e obsessivas angústias.

Ou seja, o verdadeiro "espelho mágico" é aquilo a que ambiciosamente chamamos de "a realidade" em geral.

O que é particularmente brilhante no filme é, volto a dizer, o modo verdadeiramente esplendoroso, hipnótico, como Oliveira "põe isto directamente em imagens, em cores, em sombras e luzes", num registo geral de subtilmente 'velado' cromatismo onde a sugestão onírica se concretiza na perfeição: "la vida es (aqui, efectivamente!) sueño".

...E tal como faz Beckett em tantos momentos (designadamente num que tive o privilégio de traduzir e ver representado pela "Comuna, Teatro de Pesquisa": "All That Fall", uma peça radiofónica) sugerindo a inexistência da própria vida como tal por meio de crípticas e "simbólicas" referências a modos diversos de referir a sua própria negação (1), também aqui, Oliveira me parece comprazer-se em desenvolver a ideia da imaterialidade como estado natural da própria condição humana---desde logo, na angustiada/angustiante esterilidade material de Alfreda e/ou do marido.

Não existindo a não ser em tese os indivíduos (Alfreda morrerá, como se sabe, sem ver simbologicamente a virgem, isto é, no desconhecimento de se a sua pessoalidade enquanto tal possui, de facto, alguma efectiva viabilidade, substancialidade e sentido: alguma viabilidade dada por um possível sentido orgânico geral para as coisas) como podem eles gerar novos indivíduos--Vida, numa palavra?

Não será a esterilidade integral a condição natural dos estéreis?

E um simbológico torpor ou pré-coma invade adequadamente a dado ponto tudo e todos naquele inquietante "deserto ôntico dos tártaros" do filme--a partir da experiência autofágica de Alfreda.

É, por outro lado, extremamente curioso observar o modo (ainda e--talvez--sempre buñueliano?) como é admissível supor que, por uma vez, o crente Oliveira nos surja no seu próprio espelho mágico pessoal que é o cinema como o céptico sarcástico que substitui Deus por um burlão (é a personagem de Cintra quem se propõe, como se sabe, enviar a Alfreda a sua própria "Virgem"...) que troça da angústia e da inquietação de alguém que sofre desesperadamente por uma Verdade associada a ela "où l'on arrive pourtant jammais", como no título de um romance célebre de Eugène Dâbit...

Há, em qualquer caso, em "O Espelho Mágico", a meu ver (ou a meu... sentir) ecos de um certo Torga desafiador e raivosamente iconoclasta---o homem que provoca Deus para tentar fazê-lo decidir-se a sair do seu "esconderijo ôntico" e existir e (aspecto para mim particularmente interessante! Talvez por puro desejo intelectual o veja aqui inserido) de Büchner, do Büchner de "Dantons Tod", o homem que se dilui tragicamente nas próprias palavras enquanto marcas ou símbolos imateriais da sua própria impotência e dos seus próprios limites: as palavras (o discurso) como grande labirinto ontológico e concretamente como aquilo que separa o (possível) Homem não apenas da objectualidade im/pura e simples como tal mas, de modo paradoxal, também da própria essência ou verdade última possível das coisas...


NOTA

(1) Permiti-me, de resto, propósito cunhar o termo "naughtopy" ou "projecção e representação nulotópicas" em Beckett, uma ideia que, não sendo propriamente, exactamente como tal, comum a Oliveira, tem com ele, designadamente no que considero ser a temática latente deste "Espelho Mágico", algumas possíveis analogias e simulitudes.

Sem exagerar, alguma admissível, tética, proximidade, em todo o caso...

Oliveira partilha com Beckett, diria eu, neste caso, em concreto, um certo pendor sarcástica e, ao mesmo tempo, subtilmente escatológico onde está plasmada toda a (profundamente ambígua!) ironia dos seus autores relativamente à própria fragilidade da Humanidade como tal: numa palavra: o Homem é fraco e limitado, é verdade mas o que é (ou parece ser!) facto é que não há alternativa para ele, "diz" Oliveira...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

"Elia Kazan e a questão dos compromissos"

Sempre me pareceu (mas admito que "sempre me pareceu" pode ser aqui---e não apenas para mim...---sinónimo de "começou quase irresistivelmente a parecer-me desde que soube que...) que Elia Kazan era um fulano---um realizador, um artista---que, a partir de dada altura da sua carreira, começou a lidar particularmente mal com a culpa.
Isso, porém, é óbvio.
A questão é que me parece (e aqui é que entra a possível originalidade da análise que me proponho fazer) que ele lida mal, mais do que com a culpa, com a necessidade que a vida frequentemente impõe a cada um de nós de assumir posicionamentos ou compromissos determinados, claros, precisos---desde logo, políticos (não por acaso, um dos últimos filmes de Kazan chamava-se precisamente "O Compromisso", "The Engagement"...).
Ora, eu creio que essa ideia resulta muito clara quando se visiona (e se... psicanalisa---mesmo se apenas muito sumária e, sobretudo, muito amadoristicamente---que é o único modo por que eu pessoalmente posso fazê-lo...---o seu "Wild River", um filme que à época levantou bastante celeuma por ocasião da sua estreia entre nós.
Eu creio mesmo que o conteúdo latente do filme---o seu "genoma narracional" ou a sua "identidade epistemológica", se assim me posso exprimir...---consiste na equacionação (na desencantadíssima e angustiada equacionação) da antinomia "casa decisional" (status quo acticional) vs. necessidade imposta de "evoluir", de procurar vias autónomas fora dele, de arriscar de um modo ou de outro, relativamente a esse estado naturalmente familiar e naturalmente reconfortante que é a (aceitação tácita e fácil da) ordem estabelecida.
No filme, Chuck chega à pequena localidade que vai ser submersa e encontra uma Miss Ellie/Jo van Fleet (teatral, "herdada" directamente de "East Of Eden" do mesmo Kazan e do Kazan original cuja prática vem como se sabe do teatro) que opera até dado ponto da narrativa como um símbolo material de obstinada dignidade perante a fatalidade e perante a própria vida de uma maneira geral.
A verdade, porém, é que do nobilíssimo "suicídio" da personagem a que essa atitude de trágica dignidade a conduz não resulta propriamente a catarse que até dado momento parece ir sair dali como ideia final do filme.
Ou seja, este não é decididamente um filme sobre actos de admirável resistência isolada e de coragem pessoal exemplar.
Qualquer desses sentimentos ou dessas posturas é algo que parece, aliás, embaraçar visivelmente o Kazan deste período---mas--lá está!---talvez seja possível supô-lo apenas porque realmente todos conhecemos a "estória" pessoal do próprio Kazan...
Seja como for, muito mais do que sobre a exemplar resistência de uma mulher frágil e só a forças incomensuravelmente maiores, o filme é de facto sobre a abjecção de quem não é capaz de agir em consonância com essa espantosa lição de coragem (a sequência em que Remick luta "por" Clift com o rufião local é absolutamente penosa e chega mesmo a causar, pela brutal violência pessoal e cultu(r)al, dor física no espectador!).
"Wild River" é um filme sobre um (anti!) herói frágil e cobarde que preferia não ter tido de optar (que, de facto, não opta, aliás!) entre (a) algo que é do ponto de vista da sua coragem pessoal literalmente inatingível, algo que é grande demais para si (já o dise: agir em consonância com a coragem desesperada de Miss Ellie) e (b) aquilo que vai realmente fazer: desalojá-la---e, no, limite, executá-la, cedendo completamente às tais forças superiores (da realidade, da História, do que quiserem ver ali representado).
É verdade que, no fim (numa imagem, aliás, horrível de mau gosto!) Kazan põe em evidência a barragem que, assim, aparece como sugestão final de "legitimação": a barragem, com efeito, aparece no filme como "justificação" final (isto é, a-posterirística) para a pusilanimidade do "herói" numa espécie de recuperação "oblíqua" do velho princípio de de que os fins justificam e legitimam os meios ou de que a cobardia, às vezes, "acerta" não agindo nem fazendo opções (éticas, políticas) de qualquer espécie.
Chuck aparece aqui, de facto, claramente como o indivíduo fraco que usa o Progresso como alibi para a sua própria pusilanimidade.
É o homem cheio de hesitações e dúvidas que Kazan claramente tenta reabilitar---ou, no mínimo, tornar simpático e humano, uma tarefa a que um notável Monty Clift confere uma "espessura" narrativa de facto notável.
A dado passo (na recusa à luta com o rufião parolo da aldeia), a personagem de Clift faz pensar nos heróis de (Anthony) Mann ou do próprio (grande!) Ford: no 'Will Lockhart' de "The Man From Laramie" ou (exemplo máximo!) no 'Rance Stoddard' de "The Man Who Shot Liberty Valance", homens para quem a coragem individual se plasmava no reconhecimento dos valores da Justiça e da dignidade em detrimento da força, como grandes (como únicos e essenciais!) motores da acção humana na sua difícil interrelação com forças aparentemente (muito!) mais poderosas.
Muito mais do que um filme (ou um discurso) sobre a ética da acção humana, "Wild River" é uma amarga (e culpada!) reflexão sobre a a humanidade, não (como titulava Nietszsche "para além do Bem e do Mal" mas e facto "para aquém" deles.
Independentemente deles. Simpático porque humano.
Essencialmente isso: humano.
Aliás enquanto 'pedaço' de uma dilacerante tragédia existencial, o filme funciona porque como encenador e cineasta Kazan não era, de facto, "um qualquer" e consegue, realmente (tentando embora dizer muitas coisas---ou mesmo "tudo"---ao mesmo tempo...) arrastar-no para uma "descida aos infernos" de uma consciência culpada angustiadamente de todo incapaz de expiar de vez a própria culpa.
É claro que é sempre tentador (embora possa admissivelmente não ser justo) ver no cinema de Kazan a tentativa constante da justificação, o pedido recorrente da compreensão---e do perdão.
Eu pessoalmente, volto a dizê-lo, é exactamente isso que vejo em "Wild River", concretamente: o drama---a tragédia!---do indivíduo a quem a Vida obrigou a ter de tomar uma posição---e ele tomou a que mais lhe repugnava por não coragem para tomar a outra.
Daí, o olhar nostálgico pela morte não já (ou não inteiramente) como um símbolo de coragem mas de tranquilidade e de paz.
Se virmos, aliás, bem, no filme, Chuck nunca decide: vai com os acontecimentos, seguindo-os e erigindo ese seguidismo como um alibi e como uma defesa.
"Wild River" é um filme sobre o "fiz porque tinha de ser, logo não sou verdadeiramente culpado de coisa alguma.
E, depois, há o Progresso, claro, que "explica" tudo quanto (não!) fiz..."
O "quem-me-dera-não-ter-tido-de-decidir" como utopia (a) moral perfeita...
Do ponto de vista plástico (mesmo exibido com aquela barbaridade de cortar-lhe duas valentes "fatias" de cada lado com que a RTP costuma "respeitar" os filmes e o cinema em geral...) custa ver tanto talento narrativo desperdiçado nas mãos de alguém eticamente desprezível---e que, de resto, até ao fim da vida nunca perdoou, como se sabe, a si próprio a cobardia de ter delatado...

Sobre os actores: van Fleet, teatral e steinbeckiana dá, como dise, o tom teatral (e até, de algum modo, steinbeckianamente arquetípico e 'bíblico'); Clift é realmente notável na sua máscara quase tragicamente impassível pós-acidente (versão contemporânea da máscara trágica grega...) mas Remick consegue superá-lo, numa prestação verdadeiramente sublime de Brando-de-saias, imagem simbólica da compreensão, do reconhecimento e do perdão para a Culpa que Chuck/Kazan não cessam de implorar...

"Lee Silveira ou Leonor Remick?..."

"Dá para ver a semelhança?..."


terça-feira, 25 de novembro de 2008

"Cry, The Beloved Country"

Um dos meus "collages" preferidos.
Gosto, de um modo muito especial, do facto de a sua concepção me transportar de volta para o início da década de '70, para a brutal ambiência (como dizer?) "vaporosamente genocida" que à época se vivia no mundo dito "ocidental", com as diversas colónias (as formais e as outras...) a conseguirem, "tant bien que mal", libertar-se do jugo dos respectivos "amigos" e "civilizadores" originários do tal "Ocidente".
Foi neste espírito de revolta contra a apologia oficial do "genocídio civilizado(r)" que vi (e que Ralph Nelson ao que tudo indica realizou) o meu referencial "Soldier Blue", cuja "sombra" paira obviamente aqui nesta tina repleta do sangue de uma anónima vítima, sobre cuja origem étnica simbólica o "typee" sinistramente iluminado no meio das ominosas (e "desérticas", vazias, "simbologicamente des-humanizadas", se se quiser...) trevas (ou Noite) circundante(s) não deixa a mínima dúvida.
Impressiona-me particularmente a sugestão inquietante de puro absurdo que se desprende da imagem deste "typee" isolado onde alguém se lembrou de ir depositar (para quê? Para ocultá-lo? Por escárnio?) um corpo anónimo numa tina gélida como se do cadáver de um animal (ou mesmo o... de um objecto---se os objectos tivessem cadáveres) se tratasse.
Toda a horrorosa e insolúvel, irremediável, fatalidade (e anonimato induzindo a ideia final de coisificação!) da morte está presente nesta desconcertante ideia da deposição de um corpo que já foi humano numa espécie de macabro "altar" grotesca (ou---volto a insistir: sarcasticamente) iluminado.
Absurdo ritual?
Gesto de escarninha revolta contra a in/essencial vulnerabilidade da "condition humaine"?...
Impossível determinar---e responder...

domingo, 23 de novembro de 2008

"Dunas"

Sobre uma fotografia de Evelyn Kahn. Ver a propósito "Um Não-Alexandre Onírico".
(Talvez aos "collages" que faço devesse chamar de facto "rearranjos"...)

"O Deserto Vermelho"


Conheci pessoalmente Michealangelo Antonioni aqui em Montemor, numa sessão na Biblioteca. Eu tinha levado da minha biblioteca uma cópia do guião de "Deserto Rosso" que me tinha sido oferecida pelo Sr. Mimoso Mendes. Quis que o realizador a autografasse mas a paralisia impediu-o.
Na altura, fiquei furioso, abandonei a sala e já não assisti ao fim da sessão.
Nunca esqueci o incidente e nunca mais vi os filmes dele com os mesmos olhos.
Ou com a mesma instintiva empatia. "Blow-up", porém (que os americanos felizmente não entenderam!) é um filme fabuloso, apocalíptico, pós-nuclear, muito kubrickeano.
A metáfora final do ténis é um achado.
A fotografia de Evelyn Kahn de onde parte o presente "collage" capta muito bem a subtil impressão de "void" e de ameaça/fascinação que o filme, por outro lado, me sugere. Há também, no "collage", um grupo do artista espanhol Muñoz (que homenageio também numa série de outros "collages").
Esta quis que fosse uma espécie de críptica ironia sobre o esmagamento das coisas e das pessoas pelas respectivas "qualidades" assim como sobre a perda (a dissociação, o "shedding") de atributos por parte dos corpos em geral---e dos humanos em particular.
O facto de na imagem nada haver de vermelho alude obviamente ao jogo sem bola de "Blow-Up".

"A Feira Depressiva e Cabisbaixa"

Sobre esta foto de Evelyn Kahn (publicada numa brochura comercial distribuída com o jornal "Público") e representando a Rua da Escola Politécnica, a Rua onde morou o Alexandre O'Neill, do lado esquerdo de quem sobe para o Príncipe Real, quase a chegar já ao jardim, ocorreu-me de modo irresistível, homenageando de passo a Autora da fotografia, tributar a minha admiração ao fabuloso "lisboeta por condição e sobretudo por vocação" (ser lisboeta, disse-lhe eu, uma vez em que teve a enorme gentileza de me receber, exactamente aqui, na casa da rua da Escola Politécnica é, de algum modo uma arte mas muito em especial um dom...) que foi o Alexandre O' Neill.
Tentei fazê-lo com a colagem que "anexo" onde se "fala" precisamente da sua sombra tutelar pairando sobre essa "lisboicidade concentrada e melancólica, encantatoriamente extáctica" que Evelyn Kahn tão bem captou.

"Uma gracinha" (sem bonecos meus desta feita...)

Tendo-me chegado próximo da boca de "Não-Digo-Quem", ocorreu-me, de súbito, de modo verdadeiramente irreprimível, um trocadilho a-propósito: aquele que "cita" directamente o conhecido anexim que, por sua vez, defende que "o hábito faz o monge".
Ora, a boca requintadamente... "perfumada" de "Não-Digo-Quem" obriga-me a "rever" o anexim em causa trocando-o por um outro bem mais... aromático que afirma, por seu turno, que, se é verdade que "o hábito faz o monge", mais depressa e mais eficazmente ainda... "o hálito faz o longe".
E se faz!...


[Ilustração extraída com vénia de healthyliving-wellness.blogspot.com]

"The Man Who Would Be King" de John Huston

Vi ontem (quase!) integralmente o filme do Huston.
(Digo que vi "quase" porque os acasos da programação televisiva que marcaram "As Aventuras de D. Juan" com o Erroll Flynn e a Viveca Linfors para as três e qualquer coisa da madrugada, encavalitaram este "The Man Who Would Be King" de que eu já vira fragmentos brutalmente mutilados na "RTP Memória" no Oliveira d' "O Espelho Mágico" e me obrigaram a andar numa roda viva, gravando o Oliveira e tentando não perder muito do Huston...)
Ora, sobre este, devo confessar, para começar, que gosto particularmente deste fulano, o Huston.

Como muito boa gente, aliás!

Era, como se sabe, como sabe quem gosta (mesmo apenas amadoristicamente como eu) "destas coisas" do cinema, um fulano extremamente talentoso e excessivo (um "Howard Hawks irregular e descontínuo") que fez coisas notáveis como essa inesquecível (e muito "steinbeckiana"!...) às vezes irresistivelmente "poética" reflexão sobre a fragilidade estrutural da condição humana e da sua irreprimível vocação para o aniquilamento, baseada numa obra do, em geral, não menos injustamente menorizado Bill Travers.

Gosto do Huston, gosto da filha, da Angelika Huston (que o Allen, o Woody, percebeu muito bem pode ser---que é!---uma excelente actriz de cinema) e até gosto do cabotino incurável do marido desta, o Nicholson que, tirando o facto de ser um chato de todo o tamanho, consegue, quando apanha um papel à medida (com o do Joker) arrancar "exibições" realmente "epustuflantes" e empolgantes.

Enfim, gostos, pronto! Eu gosto, há outros que sim, também, outros ainda nem por isso...
Não interessa muito para o caso.

Quanto ao filme: é um trabalho assinalável (desde logo, do "fabulante" do Connery que teve uma espécie de carreira "à Clint Eastwood", isto é, começou por ser profundamnte desprezado (com muita razão, de resto...) pela intelectualidade em geral: o Eastwood por causa daquelas "barracadas" todas do "Harry Calaghan", do "Joe Kidd" e por aí fora: o supremo fascista, "make my day" e essas coisas todas...; o Connery por causa da "fascistice sexual" e/ou do "imperialismo glandular" do Bond, acabando ambos, de modos circunstancialmente distintos embora, reconhecidos como invulgaríssimos homens de cinema pela crítica mais séria); o filme, dizia, é uma fablosa alegoria sobre a fatalidade da derrocada dos impérios asim como sobre a sua não menos fatal intrínseca perversidade.

Os impérios, diz Kipling pela câmara de Huston, são construídos por canalhas, às vezes, simpáticos, que cumprem destinos, individuais mas, também, a dado passo, colectivos; fulanos que (como aquele "vendedor" aldrabão de um "poema" do Sandburg...) começam , um dia, estranhamente a acreditar realmente naquilo que fazem e que, no preciso instante em que essa crença potencialmente regenaradora se inicia, são apanhados por todas as vilezas e canalhices que cometeram para chegarem a dispor do poder de contribuir para alguma coisa mais nobre e mais sinificativa do que a satisfação brutal da sua própria cupidez e voracidade.

Por isso, eu falei em Steinbeck: "Ratos e Homens" é um texto extraordinário ("extraordinário" para os steinbeckianos incondicionais, pronto!...) sobre a poderosa vocação do humano, aí individualmente considerado, para a podridão e para o fim...

Com o Connery a irradiar carisma e energia, a "coisa" resulta realmente extraordinária: nem sempre muito sóbria e visual/conceptivamente elegante mas enfim quase uma variação pessoal sobre o "filme negro"...

Pelo menos, eu vejo-o desse modo...

E gosto, pronto! A verdade é essa: o filme é globalmente tão interessante que nele nem o Caine consegue estar (completamente) mal...

"Os Seis Dias da Democracia" (ou será "Da Ditadura? Já não me lembro...")


O que está "a dar" nestes últimos dias, é juntar críticas e mais críticas; censuras e mais censuras à "indignada, crítica censura" entretanto já surgida às "epustuflantes" declarações das Dra. D. Ferreira sobre os "seis dias da ditadura" (acho que era a seis dias---mas talvez fosse a seis meses ou até a seis anos: para o caso tanto faz...---que ela se referia quando dizia que só se se suspendesse por esse tempo a "democracia" é que "não sei quê mais o governo et al".
Bom, francamente, tão indiferente (senão mesmo---especialmente no caso do governo---tão alheio e até tão hostil!) me é o próprio governo como a Sra. D. Ferreira mais os seus "mots d'esprit" característicamente retorcidos e pardos de graça.
O que eu quero a propósito sublinhar é a (gritante!) imensa hipocrisia da maioria das "críticas" citadas.

Que diabo!
Que disse afinal a senhora?
Melhor: a que "democrático" fenómeno aludiu ela implicitamente nas suas recentes declarações?
Ao facto de que a "democracia" precisa afinal de ser estrategicamente mandada... "descansar" de forma mais ou menos periódica a fim de permanecer "operativa" e, no fundo, real (ou virtualmente?...) possível?
Que, para os muitos postuladores das famigeradas "maiorias absolutas" como pressuposto "essencial" de "reforma" ou reformação política é disso mesmo que se trata i.e. de suspender camufladamente o que há-de de mais estruturalmente democrático na democracia (tendo o cuidado de fingir que se trata de reforçá-la, "reformando-a"...).
Que, para esses, a "democracia" (a tal "democracia funcional" nunca confessada---porque nunca confessável!---que está de facto presente, de forma implícita, nas suas invariavelmente farfalhudas teóricas lucubrações) é óptima para gerir tempos em que as populações estão objectivamente controladas e portanto tranquilizadoramente conformes com o status quo mas que deixa imediatamente de sê-lo mal as "crises" explodem e a "democracia" precisa de "muscular-se" para se "defender"?
Para se "defender", seja em casos-limite como foi, por exemplo, o da Espanha contra a ETA, luta em que no tempo de González e dos GRAPO se atingiu o impensável; o da Inglaterra durante as intermináveis e não menos (pelo contrário!) sangrentas "perturbações" irlandesas (o que jornais "normalíssimos" como o "New Statesman" disseram, nessa altura, dos métodos da polícia e do exército ingleses na sua luta contra o I.R.A. é verdadeiramente de bradar aos céus em matéria de cavilosa selvajaria e da mais sangrenta brutalidade!) seja muito mais recentemente nesses inimaginavelmente histéricos, neo-maccarthyistas Estados Unidos "bushmen" onde a barbárie se tornou im/pura e simplesmente política-de-estado, dentro e fora do país.
Mas não só nesses "casos-limite", de facto.
O dispositivo constitucionalmente "pacífico" das maiorias absolutas nada mais é, de facto (e, pior ainda, de direito!) do que a posibilidade de, sem admiti-lo expressamente (que é como quem diz: sem confessá-lo!) introduzir "estrategicamente" ciclos de cinco ou mais anos de suspensão ou hiato democrático puros num sistema normalmente democrático que precisa, porém, segundo esses e a fim de seguir desepenhando "normalmente" as deformadas e disfuncionais funções que a economocracia global prevalecente reserva ao respectivo "revestimento politiforme" de recorrer ao seu próprio "contrário absoluto", estrategicamente instalado no próprio centro da maquinaria institucional democrática a fim de conseguir (através da eliminação cíclica do pressuposto democrático nuclear da persuasão em lugar da imposição) manter um certo regime económico, social e político, com uma certa forma fixa e imutável solidamente preso à História e livre da (im) possibilidade de transformar-se.
Aí, não são seis dias ou seis meses ou seis anos: são cinco de cada vez: foram mais de dez durante a tenebrosa noite cavaquista e já vai em quase cinco agora que vigora esse não menos sinistro "entardecer socrático".

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O que a Sra. Dra. Ferreira fez de diferente foi falar: falando, quebrou (sem querer, suponho) o encantamento da coisa...

[Ilustrações: topo, "Shipwreck" de Bruce Combs.
Rodapé: "O Grande Socratizador" (título meu) imagem (impagável!) extraida com vénia de wehavekaosinthegarden]

"E Eu Até Gosto de Futebol, ham?..."

Pois gosto! Talvez nem tanto, admito, de futebol como do Benfica.
Do Benfica que eu inventei, entenda-se, desse seguramente gosto---e muito!...
Mas desse já eu falei que bastasse noutro ponto do "Diário".
Para já, pelo menos...
...E se agora aqui o fui re/buscar foi por causa de uma "coisa" absolutamente inominável publicada no (esse sempre inominável!) "Diário de Notícias" (neste caso, no de 23.11.08) "à boleia" do futebol.
...Futebol de que francamente não gosto quando, como aqui, se deixa escandalosamente instrumentalizar a fim de abrir a porta à emissão tendenciosa de juízos (?) (de uma mais do que discutível isenção , ainda por cima!) sobre matérias que deveriam merecer francamente mais respeito e, sobretudo, um tratamento global digno, dado por quem esteja à altura de fazê-lo com a seriedade e o rigor mínimo que os assuntos envolvendo directa ou indirectamente o futuro do País justificam.

Foi o caso de um senhor comentador desportivo ter decidido utilizar o desporto e em particular o futebol para emitir um parecer pessoal sobre o actual contencioso entre a ministra da Educação e a própria Educação do País (o contencioso, não tenhamos dúvidas é mesmo entre a ministra---que está, aliás, a ser amplamente goleada!...---e a Educação que alguém, seguramente muito optimista, em má hora se lembrou de lhe dar para tutelar: não é, de modo algum, entre ela e os sindicatos ou as escolas ou quaisquer grupos profissionais organizados ou não); foi o caso, dizia, de ao tal senhor ter ocorrido entre loas a um guarda-redes qualquer que até já nem joga, acho eu, e meia-dúzia de doutíssimos "bitates" sobre 'como deve jogar a selecção de futebol', debitar a... objectivíssima lucubração que se segue sobre um sindicalista da área docente: "se o meu aparelho de televisão não fosse meu, de cada vez que Mário Nogueira [o sindicalista de que o senhor não gosta] lá aparecesse (como aparece) atirava um sapato ao ecrã".
Gosto, como digo, razoavelmente de futebol (e, volto a dizer, muito do Benfica).
Gosto de gente que escreve sobre futebol quando o faz como um Luís Freitas Lobo, um António Tadeia ou até um João Lopes (que escreve habitualmente sobre outras coisas) com a cabeça e não com os pés ou mesmo só com os sapatos sem os pés.
Gosto de gente que escreve sobre futebol porque gosta dele e o respeita.
Não gosto, francamente, é de gente (e de jornais) que usam directa ou indirectamente o futebol como arma-de-arremesso contra os deveres de isenção e inteligência que devem nortear quem escreve para "toda-a-gente-e-ninguém", acreditando (e 'confirmando'!) tacitamente que ele, futebol, é, na realidade, uma espécie de bobo ou de eterno 'palhaço pobre da lucidez', dispensado por esse (nada nobilitante, como se percebe!...) "facto" de substanciar o que diz e garantir desse modo que isso que diz merece ser ouvido e, sobretudo, estimado: parte legítima de uma verdadeira cultura do esclarecimento, da isenção e da inteligência.

...E termino pensando: eu (que até comprei o jornal apenas porque dava um filme mas pronto, comprei!...) tenho mais sorte do que o comentador.
É que felizmente um jornal não é um televisor, custa (e muitas vezes---o que, de um certo ponto de vista, até nem é fácil!---vale!...) bem menos e, agora que já tenho o filme, vai dar-me um gozo danado seguir a sugestão do comentarista e atirar-lhe mesmo (ao jornal, claro!) com a valente sapatada que merecem os objectos e as pessoas que tentam "dar-nos a volta" para um lado, imaginando sonsamente apanhar-nos desprevenidos a olhar para outro!...


[Ilustração: cromos dos anos '30 de uma preciosa colecção adquirida em tempos na velhinha Feira da Ladra. A página escolhida para ilustrar estas notas refere-se a quatro clubes da cidade de Lisboa: um Shell Sport Club de que não possuo qualquer outra referência ou memória alternativa; o Sport Bom Sucesso que suponho continuar a existir ainda hoje, o velhinho Palmense da Palma de Baixo, a Benfica e o próprio Benfica, o Sport Lisboa e Benfica.]