Se eu tivesse de indicar qual é, em meu entender, o maior problema da democracia, acabaria muito provavelmente por dizer que é a ilusão, verdadeiramente fatal, de que ela existe...
De facto, tal como eu a vejo, a democracia possui o atributo realmente singular de ser algo que é preciso reiniciar, recomeçar--num certo sentido preciso: reinventar--a cada novo instante da nossa vida individual e colectiva.
Algo que [curiosamente, como os mandamentos moisaicos...] uma vez criado, existe muito mais para impedir e limitar; algo que idealmente se define ou vai definindo, em última análise, por quanto evita muito mais do que por quanto, de forma directa, possibilita e oferece.
Não se trata, porém, quero desde já dizer, de uma visão restritiva e artificialmente ascética, possivelmente "sacrificial", mesmo, da democracia: uma vez criada e continuamente re/ajustada, a si mesma e ao universo mental e social, político--humano--a que se reporta, a democracia [que é, também num certo sentido 'genético' motor, sobretudo o seu próprio espírito] assume-se como o "manual de instruções" das sociedades verdadeiramente civilizadas ou daquelas que aspiram realmente a sê-lo.
É, diria eu, num certo sentido transmissor, sempre dialéctico, de "significado", a racionalização ideal do primitivo tabu, o grande alimentador da organicidade das culturas humanas originais em matéria de sentido individual e colectivo para a sua própria existência.
Elementos vitais da democracia são, obviamente, a inteligência e a propriedade colectiva, não-dissociada, do conhecimento essencial para poder gerar em todos os pontos da comunidade as formas estáveis de 'inteligência da realidade' que evitam que o poder [como dizer?] "se quebre" e, por conseguinte, se aliene quando se transmite ou se torna função ou 'operação'.
Quando se converte em História---numa História.
Em Portugal, como no conjunto dos países capitalistas, o conhecimento assim como, naturalmente, a inteligência que dele pode derivar, são mantidos na condição estruturalmente des-igual de propriedade e de função.
Uma propriedade privada utilizada na produção de capital.
Uma propriedade que não se distingue na prática da sua função económica mas também política.
É essa natureza privada e [vou cunhar um neologismo útil] "proprietacional" do conhecimento que explica que a inteligência, quando se forma em geral, na sociedade, o faça de modo em larguíssima e des/estrutural medida, inorgânico e que, por isso, nunca chega verdadeiramente a constituir, no conjunto das sociedades capitalistas, um atributo reconhecível--e muito menos tópico!--na formação colectiva daquela inteligência da realidade de que atrás falo.
É este último aspecto que explica, a meu ver, por que motivo não existe nas sociedades que apresentam este tipo de característica de des-igualdade na propriedade do que poderia, a partir de Marx, chamar 'os meios de produção' de conhecimento e, por conseguinte e por extensão, de inteligência, uma ciência ou uma ciencialidade--um «olhar [verdadeira e organicamente] causal»--sobre os mecanismos materiais, concretosa, objectuais, da democracia, a começar por esse aspecto absolutamente crucial e nuclear que é votar.
A incapacidade para estabelecere nexos realmente estruturais entre o acto de votar, a escolha eleitoral, e a siutuação politica concreta que dele deriva é, no fundo, aquilo que melhor define o funcionamento demoformal que confundimos comummente com "democracia".
Enquanto as pessoas forem votando no político A porque foi agredido ou porque essas mesmas pessoas ofereceram a si próprias um avental ou uma esferográfica barata por intermediação do político B [que não é propriamente o mesmo que dizer--o que já seria, de resto, suficientemente mau mas enfim...--que o político B lhes ofereceu o referido avental ou a caneta em causa]; enquanto [e isto, é no fundo, exactamente a mesma coisa dita de outro modo] as pessoas não tiverem a total percepção de que o poder que, de uma forma ou de outras, imediatamente a seguir a um acto eleitoral as explora, ignora ou mesmo oprime resulta objectiva ou seja: realmente da sua acção [cá está a tal ausência de "olhar causal" de que atrás falo!] e que é precisamente para isso, para gerar resultados concretos e eleger políticos que servem as eleições e não para qualquer outra coisa alienadamente "moral" ou arbitrariamente pessoal, continuaremos a ter sonhos eleitorais que se tornam, se dificuldade, instantaneamente pesadelos, mal cumprido o acto eleitoral.
Isto não será em si novo nem difícil de perceber: o que talvez o seja é a explicação que aqui pretendo avançar e que relaciona, de forma causal directa, o modo como se aliena comummente o uso da própria democracia [o voto] com a forma como, por outro lado, enquanto modo de produção, integramos económica e politicamente o conhecimento.
Dito de outro modo: a forma estruturalmente des-igual como permitimos que os modelos ou paradigmas de inteligência em geral sejam, entre nós, topicamente produzidos.
Não, pois, a partir da propriedade realmente democratizada e, portanto, verdadeiramente democrática do conhecimento mas como algo que pode formar-se, isto é, nascer e desenvolver-se, parea todos os efeitos, independentemente dele e de forma, por conseguinte, in-orgânica relativamente àquela propriedade--a qual, ao longo de todo o processo de formação de inteligência, permaneceu sempre inatacável e sempre, em geral, inargumentadamente privado.
É esse mesmo "corte gnoseomórfico" entre acto e consequências [ao lado de doses suicidárias de des-conhecimento objectivo das leis da República, é preciso reconhecer] que explicam, de outro modo, as coisas, muitas vezes, dificilmente imagináveis, quase surrealistas, que têm vindo a ser pedidas aos candidatos à presidência da república.
Na verdade, ouvindo certas "antenas abertas", "opiniões públicas" e por aí adiante percebe-se claramente como o "olhar vagamente cívico" que muitos cidadãos anónimos, descontentes com a Política e por ela ameaçados, lançam sobre a campanha e os candidatos releva muito mais do olhar inorgânico e "mágico" ou mesmo, num certo sentido, proviodencial e "místico", directamente reportável à prece do que ao olhar que, de forma intelectual, cívica e politicamente sã--causalmente límpido, transparente--um cidadão deve lançar sobre as figuras do presidente, do voto e sobre a Política em geral.
Muitos não percebem que se encontram na triste situação de terem de pedir ao presidente, como pediriam ao "Pai" ou a um... Zeus qualquer, que intervenha na História concreta de todaos nós corrija os excessos e as loucuras, as iniquidades, de um governo inepto e composto, em muitos pontos de verdadeiros imbecis, exactamente porque ainda não há muito que ele chegou ao poder em resultado de um acto que cada uma dessas pessoas--muitas delas, em todo o caso--praticou e podia não ter praticado e que, por conseguinte, a censura que pedem, agora em desespero, ao futuro presidente que apresente ao poder seria lógica e naturalmente a si mesmas que deveriam, em bom rigor [em bom rigor causal!] apresentar.
Esta ausência de um olhar causal sobre a realidade e o seu funcionamento, para além de constituir uma consequência, volto a dizer: directa e inevitável das formas políticas desiguais vigentes de partilha política do conhecimento e da inteligência [dos «meios de produção» de inteligência] opera como uma das principais armas de dominação e controlo ou mesmo de manipulação políticos por parte da economocracia no poder.
Parece-me, por conseguinte, diria para concluir, que uma das tarefas verdadeiramente básicas e essenciais da Esquerda e, de um forma mais geral, da Revolução hoje passa nuclearmente pelo encontrar e fazer com que se instalem na mente dos indivíduos estratégias claras e eficazes de religação ou reorganicização teórica [e prática!] da realidade de modo a tornar o funcionamento desta realmente acessível a todos.
[Na imagem: poster eleitoral soviético extraído com a devidas vénia de Soviet Posters]
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