segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

"É A História, Meu Caro!..."


Santana Lopes [Santana Lopes "of all people"!...] reflecte no "Sol" de 12.11.10 ["Que é feito da Espanha católica?"] sobre o que entende ser a "laicização radical do país vizinho".

Não vou agora aqui pronunciar-me sobre a evolução da 'Espanha mental, cultu[r]al, social e sociológica' no pós-franquismo.

Não sou antropólogo ou sociólogo para me abalançar a fazê-lo de uma forma minimamente séria e responsável.

Digamos, no entanto, que tenho uma "educada impressão" da questão, formada a partir, sobretudo, do meu contacto directo com a sociedade espanhola [sem excluir outras fontes mais académicas e literárias sem falar na imprensa, desde logo e por exemplo] e que essa "educada impressão" vai francamente no sentido da formulação de uma ideia globalmente lisongeira da evolução da Espanha, sobretudo da Espanha urbana, nesse período da sua História mental, cultu[r]al e até política recente.

Não ignoro o bem consolidado consumismo da sociedade espanhola nem, por outro lado e noutro plano mais relevante envolvendo a vida colectiva, a cedência substantiva de uma parte importante da sociedade espanhola a um mitário [como dizer?] "facilmente demomórfico" [isto é, mais determinado pela acção de lugares-comuns eufónicos e, por essa razão, de fácil assimilação pelo cidadão médio do que por uma verdadeira reflexão de ordem realmente e, sobretudo, consistentemente política] que a levou, por exemplo, à eleição dos ilusórios Felipe González ou José Luis Zapatero [para já não falar no embaraçoso "deslize" democrático e até humanitário que foi o do politicamente minúsculo Aznar].

A Espanha é, no entanto, em termos globais um país ainda fortemente traumatizado pela sangrenta Guerra Civil resultante da sedição franquista e pelo doloroso [e não menos sangrento] processo de consolidação da ditadura que se lhe seguiu e que deixou, a meu ver, fundas marcas no inconsciente colectivo espanhol.

Ora é minha firme convicção que aí a cumplicidade do catolicismo oficial e institucional com a opressão/repressão fascista terá, por isso mesmo, i.e. porque se tratou de pactuar com [e até de oficialmente con/sagrar] um regime com aspectos dificilmente contornáveis de ditadura militar e política obscurantista, ultramontana, instrumentalmente genocída onde as 'operações' de sanguinária "limpeza" política ["political cleansing"] atingiram limites que não alcançaram, desde logo, entre nós, onde o salazarismo [cujas cumplicidades no plano eclesial institucional, assumiram aspectos, porém, substancialmente similares] se revelou, como é sabido, basicamente um fascismo... "descafeinado" cujas mãos puderam sempre sujar-se "a bom recato" [nos calabouços e salas de "interrogatório" da Pide] ou suficientemente longe [e entre povos... "primitivos"] para não incomodar demasiado as consciências, em geral; é minha firme convicção, dizia, que essa cumplicidade e esse papel consagrador da ditadura por parte da igreja católica oficial desempenhou um papel decisivo, no modo como a consciência espanhola relativamente às suas próprias instituições e ao seu passado se foi formando e desenvolvendo.

Não me custa, por isso, admitir como tese que a repugnância mesmo se muitas vezes instalada, sobretudo, como digo, sob forma muita vaga e muito 'esquemática', demasiado linear, até, talvez, em tese, no subconsciente colectivo da Espanha resistentemente legalista e/ou civilizada; não me custa, por isso, dizia, a crer que a repugnância ou mesmo até simplesmente a indiferença de uma parte considerável da Espanha contemporânea relativamente a esse trágico período da História do país com as inúmeras abjecções e vilezas que trouxe consigo [a começar pela da própria sedição que está nos genes do franquismo e com a qual muitos, de uma forma ou outra, acabaram por pactuar] e por quem o protagonizou ou caucionou tenha acelerado um processo de, a meu ver, inevitável laicização generalizada das sociedades modernas---uma laicização para cujo ascenso muito terá contribuído a tenaz obstinação da estrutura vaticana e naturalmente das suas ramificações locais no sentido de se eternizarem como um persistente corpo cada vez mais estranho no tecido [ético mas também cultural, mental, cognicional, especificamente científico, etc.] da sociedade moderna e com a sua dificilmente compreensível teimosia em não percebê-la não só onde ela é mais lúcida e esclarecida do que a própria igreja mas também onde ela é simplesmente vã e desprovida de substância humanista assim como de verdadeiros valores.

Santana Lopes espanta-se [e inquieta-se] com a laicização espanhola; eu, sinceramente, não.

Isto é, inquieto-me---porque acredito que uma Igreja-consciência poderia ter um papel absolutamente vital na humanização global de um mundo que perdeu já, por completo, a noção de demasiadas coisas essenciais para poder permanecer, em termos genéricos, civilizacionalmente respeitável e digno---mas não me espanto.

Se eu fosse dado a clichés e esse tipo de coisa que dá, aliás, sempre muito jeito para "fechar" textos e reflexões como esta---sendo, como sou, além disso, uma pessoa em geral verbalmente contida e bem educada---seria tentado a encerrar esta brevíssima "lucubração" com a frase dirigida ao autor do artigo do "Sol", atirando-lhe, mutatis mutandis, com o já clássico 'bushismo': "É a História... meu caro!..."


[Na imagem: "As Horas de Maria" da série "Sacrilégios Escolhidos", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado, inédito]

Sem comentários: