Do "Público" de 31.12.10 relevo um texto de José Manuel Fernandes ["O novo fardo do homem, e cristão"] sobre o que segundo o ex-director do jornal tem vindo a constituir a discriminatória e supostamente generalizada "indiferença" do Ocidente perante alguns ataques de que tem sido ultimamente vítima [os exemplos que dá são todos recentes] a prática do cristianismo no mundo.
Contrapõe Fernandes essa indiferença [o termo é seu] às denúncias que, em sua opinião, invariavelmente acompanham a intolerância religiosa sempre que estão em causa outras confissões que não as que compõem o cristianismo.
Ora, não passará pela cabeça de nenhum homem ou mulher de hoje civilizados e minimamente bem formados caucionar a intolerância, seja sob que forma for e seja ela praticada pelo ou contra qualquer parecela do universo religioso, incluindo, naturalmente, o seu próprio.
Aliás, discriminar, comparar, graduar poderá já até ser, no limite, entendido como uma forma---muito subtil, embora e até aparentemente piedosa---de abrir discretissimamente a porta a uma atitude muito subtilmente "significada" que é, a meu ver, em tese, debatível se não fará já mesmo parte de uma espécie de 'cone de penumbra mental e crítico' do qual não andará já muito longe, em embrião, larvarmente, a própria intolerância, como tal.
Mas seja como for o que me interessa aqui, sobretudo, a mim, sempre partindo desse pressuposto prévio de que não há intolerâncias boas e más [mas de que tão pouco há humanisticamente, de um modo ou de outro, um "ranking" delas...] é tentar perceber---e fundamentar credivelmente---as origens assim como algumas decorrências e possíveis ilações do que poderá, em tese, ser visto como a "parte" da intolerância [e da intolerância reactiva desgraçaadamente generalizada que "coube" ao cristianismo na grande massa das que continuam teimosamente a afectar o mundo "civilizado" de hoje e a marcar, de forma indelével, os paradigmas relacionais inter-humanos e inter-cul[r]ais contemporâneos, em geral.
Em última instância, aquilo que suubjaz a muita dessa intolerância é reaccional, residuantemente reaccional, e prende-se, em muitos casos, de forma óbvia, com o modelo de organização imperial [de "imperialização"] mundial que marcou, por seu turno, topicamente, de um modo ou de outro, a História das Civilizações.
A partir, sobretudo, das Descobertas portuguesas e espanholas, com muitas das nações europeias definitivamente estabilizadas e detentoras de comparativamente maior poder tecnológico global, o modelo "europeicizou-se" definitivamente e ganhou uma espécie de 'identidade civilizacional' estável que não veio propriamente a ser negada, antes acrescentada e reforçada com a emergência geo-política dos E.U.A. num matiz identitário "aggiornado" que só muito recentemente começa, de resto, a ser posto em causa com a emergência de novas potências geo-económicas e geo-políticas.
Embora citando Bérnard-Henry Lévy, Fernandes fale, no seu artigo, de "disparate imenso" a verdade é que é difícil não concordar com a ideia de que, de um modo ou de outro, o cristianismo sempre forneceu voluntariamente o ensejo legitimador do impulso expansionista/imperialista europeu operando no seio dos mecanismos de apropriação e gestão da História como um polo estável fixador e redifusor do etnocentrismo cultu[r]al mas também político, muitas vezes, abertamente genocida, sistemática quando não sistemicamente devorista e saqueador, «reorganizador significado» unilateral do mundo [ainda hoje há ene conflitos em África e na própria Ásia emergente que são directa ou indirectamente resultantes das políticas de "state engineeering" resultantes da partilha imperial do mundo e da imposição de modos de pensar e sentir a realidade que interessavam, em exclusivo, ao colonizador, extractor de matérias-primas e cumulativo construtor de mercados].
É difícil não ver tudo isso assim como é difícil não entender como num grande leque de universos cultu[r]ais situados sistemicamente "do lado errado" da imperialicização mundial ou heerdeiros desses, objecto de "cruzadas" cíclicas, interiorizaram e culturalizaram, inclusive com recurso às suas próprias formas de religião, formas de planteamento reactivo que tendem, por seu turno, pendularmente a regressar ao primeiro plano da História---fenómeno que verdadeiras e inomináveis barbaridades e novas "cruzadas" [movidas, aliás, por motivações de um tipo que faz com que, em última instância, em pouco ou nada difiram das que substanciaram o colonialismo económico clássico, como a recente abominação económica, militar e política das invasões do Iraque, por exemplo] não contribuiram, como é evidente, em nada, para atenuar...
Este, um aspecto que queria aqui abordar a propósito do texto de José Manuel Fernandes: como tantas culturas e nações [incluindo a 'nossa' própria] descobriram amargamente, mais cedo ou mais tarde, não se coloniza sem um ónus, i.e., sem custos históricos que além de serem elevadíssimos, é muito raro que se circunscrevam também tranquilizadoramente no tempo.
E que, por outro lado, não se fornece ao aparelho colonizador/imperializador todo um argumentário teórico preciso e à sua maneira sistémico [como aconteceu no caso das Cruzadas] sem se ser naturalmente chamado, a dado passo, a partilhar desses mesmos custos.
Claro que é preciso contextualizar a violência, seja ela militar, cultural ou política mas a minha tese [que me parece, aliás, óbvia!] é que não é menos necessário contextualizar adequadamente as formas de integração ou de assimilação cultural e política [leia-se: de "culturalização"] do impulso ou impulsos reactivos desencadeados a partir dos fenómenos [e epifenómenos!] originais que, por sua vez, desencadearam todo o processo de fabrico e construção ou partilha des-iguais anterior da História.
E vou mesmo mais longe: não se trata aqui de sempre debatíveis pedidos de desculpas a posteriori.
Trata-se, sim---e a meu ver, o ensejo cultu[r]al dificilmente podia, por diversos motivos, alguns deles, aliás, bem mauzinhos, ser mais propício!---de o próprio cristianismo institucional perceber, de uma vez por todas, que a via para a reconversão ou readequação histórica e sobretudo civilizacional; para a credível modernização do seu papel na História não passa---não pode admissivelmente, por todos os motivos e mais um, passar!---pela insistência num modelo gnoseomórfico completamente esgotado, moralmente insubstantivo, epistemologicamente unilateral que o coloca em conflito com a própria inteligência, cultu[r]al e até intelectualmente intrusivo porque arbitrariamente impositivo mas, exactamente ao invés, pela adopção de um pensar de natureza ou de raiz, humilde mas, ao mesmo tempo, corajosamente fenomenológica, capaz de "empocher" aqueles aspectos ligados a uma fase ela própria esgotada de pensamento científico em favor da assunção de um papel transversal ou "transversantemente" ético genuinamente 'ecuménico' que lige em vez de separar e, sobretudo, que contribua para dotar a História de uma consciência e de um rigor ético e consciencial que ela há muito já perdeu.
[Imagem Flickr]
Contrapõe Fernandes essa indiferença [o termo é seu] às denúncias que, em sua opinião, invariavelmente acompanham a intolerância religiosa sempre que estão em causa outras confissões que não as que compõem o cristianismo.
Ora, não passará pela cabeça de nenhum homem ou mulher de hoje civilizados e minimamente bem formados caucionar a intolerância, seja sob que forma for e seja ela praticada pelo ou contra qualquer parecela do universo religioso, incluindo, naturalmente, o seu próprio.
Aliás, discriminar, comparar, graduar poderá já até ser, no limite, entendido como uma forma---muito subtil, embora e até aparentemente piedosa---de abrir discretissimamente a porta a uma atitude muito subtilmente "significada" que é, a meu ver, em tese, debatível se não fará já mesmo parte de uma espécie de 'cone de penumbra mental e crítico' do qual não andará já muito longe, em embrião, larvarmente, a própria intolerância, como tal.
Mas seja como for o que me interessa aqui, sobretudo, a mim, sempre partindo desse pressuposto prévio de que não há intolerâncias boas e más [mas de que tão pouco há humanisticamente, de um modo ou de outro, um "ranking" delas...] é tentar perceber---e fundamentar credivelmente---as origens assim como algumas decorrências e possíveis ilações do que poderá, em tese, ser visto como a "parte" da intolerância [e da intolerância reactiva desgraçaadamente generalizada que "coube" ao cristianismo na grande massa das que continuam teimosamente a afectar o mundo "civilizado" de hoje e a marcar, de forma indelével, os paradigmas relacionais inter-humanos e inter-cul[r]ais contemporâneos, em geral.
Em última instância, aquilo que suubjaz a muita dessa intolerância é reaccional, residuantemente reaccional, e prende-se, em muitos casos, de forma óbvia, com o modelo de organização imperial [de "imperialização"] mundial que marcou, por seu turno, topicamente, de um modo ou de outro, a História das Civilizações.
A partir, sobretudo, das Descobertas portuguesas e espanholas, com muitas das nações europeias definitivamente estabilizadas e detentoras de comparativamente maior poder tecnológico global, o modelo "europeicizou-se" definitivamente e ganhou uma espécie de 'identidade civilizacional' estável que não veio propriamente a ser negada, antes acrescentada e reforçada com a emergência geo-política dos E.U.A. num matiz identitário "aggiornado" que só muito recentemente começa, de resto, a ser posto em causa com a emergência de novas potências geo-económicas e geo-políticas.
Embora citando Bérnard-Henry Lévy, Fernandes fale, no seu artigo, de "disparate imenso" a verdade é que é difícil não concordar com a ideia de que, de um modo ou de outro, o cristianismo sempre forneceu voluntariamente o ensejo legitimador do impulso expansionista/imperialista europeu operando no seio dos mecanismos de apropriação e gestão da História como um polo estável fixador e redifusor do etnocentrismo cultu[r]al mas também político, muitas vezes, abertamente genocida, sistemática quando não sistemicamente devorista e saqueador, «reorganizador significado» unilateral do mundo [ainda hoje há ene conflitos em África e na própria Ásia emergente que são directa ou indirectamente resultantes das políticas de "state engineeering" resultantes da partilha imperial do mundo e da imposição de modos de pensar e sentir a realidade que interessavam, em exclusivo, ao colonizador, extractor de matérias-primas e cumulativo construtor de mercados].
É difícil não ver tudo isso assim como é difícil não entender como num grande leque de universos cultu[r]ais situados sistemicamente "do lado errado" da imperialicização mundial ou heerdeiros desses, objecto de "cruzadas" cíclicas, interiorizaram e culturalizaram, inclusive com recurso às suas próprias formas de religião, formas de planteamento reactivo que tendem, por seu turno, pendularmente a regressar ao primeiro plano da História---fenómeno que verdadeiras e inomináveis barbaridades e novas "cruzadas" [movidas, aliás, por motivações de um tipo que faz com que, em última instância, em pouco ou nada difiram das que substanciaram o colonialismo económico clássico, como a recente abominação económica, militar e política das invasões do Iraque, por exemplo] não contribuiram, como é evidente, em nada, para atenuar...
Este, um aspecto que queria aqui abordar a propósito do texto de José Manuel Fernandes: como tantas culturas e nações [incluindo a 'nossa' própria] descobriram amargamente, mais cedo ou mais tarde, não se coloniza sem um ónus, i.e., sem custos históricos que além de serem elevadíssimos, é muito raro que se circunscrevam também tranquilizadoramente no tempo.
E que, por outro lado, não se fornece ao aparelho colonizador/imperializador todo um argumentário teórico preciso e à sua maneira sistémico [como aconteceu no caso das Cruzadas] sem se ser naturalmente chamado, a dado passo, a partilhar desses mesmos custos.
Claro que é preciso contextualizar a violência, seja ela militar, cultural ou política mas a minha tese [que me parece, aliás, óbvia!] é que não é menos necessário contextualizar adequadamente as formas de integração ou de assimilação cultural e política [leia-se: de "culturalização"] do impulso ou impulsos reactivos desencadeados a partir dos fenómenos [e epifenómenos!] originais que, por sua vez, desencadearam todo o processo de fabrico e construção ou partilha des-iguais anterior da História.
E vou mesmo mais longe: não se trata aqui de sempre debatíveis pedidos de desculpas a posteriori.
Trata-se, sim---e a meu ver, o ensejo cultu[r]al dificilmente podia, por diversos motivos, alguns deles, aliás, bem mauzinhos, ser mais propício!---de o próprio cristianismo institucional perceber, de uma vez por todas, que a via para a reconversão ou readequação histórica e sobretudo civilizacional; para a credível modernização do seu papel na História não passa---não pode admissivelmente, por todos os motivos e mais um, passar!---pela insistência num modelo gnoseomórfico completamente esgotado, moralmente insubstantivo, epistemologicamente unilateral que o coloca em conflito com a própria inteligência, cultu[r]al e até intelectualmente intrusivo porque arbitrariamente impositivo mas, exactamente ao invés, pela adopção de um pensar de natureza ou de raiz, humilde mas, ao mesmo tempo, corajosamente fenomenológica, capaz de "empocher" aqueles aspectos ligados a uma fase ela própria esgotada de pensamento científico em favor da assunção de um papel transversal ou "transversantemente" ético genuinamente 'ecuménico' que lige em vez de separar e, sobretudo, que contribua para dotar a História de uma consciência e de um rigor ético e consciencial que ela há muito já perdeu.
[Imagem Flickr]
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