sábado, 1 de janeiro de 2011

"«Os Eles»" [Texto em construção]


1 de Janeiro de 2011: primeiro dia de um ano que se anuncia negro, marcado pela ideia de 'saque', adoptada, como é sabido e, esgotados todos os outros, como último e desesperado recurso para simular uma política e, por trás dela, um país.

Sempre tive a impressão [com a brevíssima excepção do período a que chamo de "laboratório social" entalado entre 25 de Abril de '74 e o tenebroso dia 25 de Novembro de '75] de que Portugal era um país ocupado.

Uma terra sob ocupação estrangeira.

Com essa maravilhosa mas fugacíssima excepção, sempre dei, com efeito, comigo a falar do poder como "eles": "os Eles".

De Salazar---o 'bafiento e repulsivo objecto cultu[r]al e genético' que com esse nome volta-e-meia lá regressa aos tombos pelo não-espaço/tempo fora à arena dos nossos pesadelos colectivos mais persistentes e que foi o primeiro "Ele" que [graças a Zeus não] conheci---a Sócrates a última das "sete pragas" que politicamente nos couberam, na lotaria da História e do "Progresso".

Vieram, entretanto, o patético Caetano [que nem de ser verdadeiramente mau foi capaz] e uma enfiada de outros "Eles" de muitos dos quais já nem sequer memória minimamente aproveitável ficou.

Há, agora, pois, repito, este tal Sócrates---que, no momento em que escrevo ainda parece mexer politicamente mas que, cá para mim, é um "Ele" com os dias contados, i.e. com a 'ficha' já feita e guia de marcha para um lugar qualquer no Olimpo dos galifões onde, ao que tudo indica, ficará ainda, muitos e... maus, como tantos outros que, de debaixo da asa tutelar da geringonça a que, por uma razão qualquer, hoje teimamos em chamar "governo" e "português", em seu tempo já saíram para as Eurominas, Motas-Engis e sei-lá-que-mais desse fabuloso "rai-que-os-parta-a-todos" que eu e outros como eu andamos há anos a alimentar a pão-de-ló, jurando a pés juntos que temos de fazê-lo a fim de "cruiarmos postos de trabalho" porque "geram" uma "riqueza" a que, de resto, muito poucos tiveram, todavia, até hoje o raríssimo privilégio de pôr a vista em cima.

Mas, dizia eu, que sempre, de um modo ou de outro, tive, a propósito deste "meu" desgraçado país; desta roupa-de-franceses económica e política a que chamamos Portugal, aquela ideia de uma terra ocupada que, mais cedo ou mais tarde, iria ser declarada, como a Roma de Rossellini, "cidade aberta", esgotada que fosse a capacidade de resistência ao invasor dos nativos.

A disponibilidade destes para oporem ao invasor o simulacro de uma [ao menos, possível!] indignação que lhes metesse algum medo---o bastante, em todo o caso, para os fazer pensar duas vezes [eles que só se desviam da sua obsessão milenar pelo dinheiro---a única coisa que parece, realmente, fazer aquelas cabeças produzirem qualquer coisa que se pareça remotamente com um pensamento...---para pensarem em mais dinheiro...] antes de completarem a obra de secar a mina a que parecem, todos à vez, obstinadamente agarrados.

Pois, terá chegado o momento!

O instante fatal do saque: persuadidos finalmente de que o inimigo está vencido, chegou, dos altos comandos do ocupante, a ordem para o saque!

Passou, pois... "o instante do judeu".

O "instante do judeu" é uma velha "private joke" familiar e tem a ver com uma antiquíssima "estória" meio anti-semita [polidamente anti-semita, uma coisa asim muito açucaradamente... dreyffusiana que os "Almanaques Bertrand"---que como os bébés vinham de França, do Papá Hachette a que eu não chegava por causa da língua que o "Français au Lycée" não dava para grandes voos linguísticos---me trouxeram em criança]; uma "estória" lida num daqueles míticos "Almanaques Bertrand" da minha meninice [emprestado por um tio com biblioteca que mos ia pasando um a um, desde o de 1907 o meu preferido, o mais fascinante porque mais sublimemente "arqueológico"] protagonizada por um judeu oculista que ensinava o filho a vender dizendo-lhe: "Quando o cliente escolheu as lentes, fazes o preço: tantos escudos [na altura, eram "réis"] e tantos centavos".

"Se o cliente [na altura era "freguês"] não disser nada, acrescentas melifluamente" [os judeus da minha infância eram todos muito bons a sorrir melifluamente, uma coisa que faziam na perfeição por baixo de narizes aduncos de bruxa macbethiana, de preferência decorados com verrugas a condizer...] "Só a armação, claro!"

Se, ainda assim, o freguês se limitar a acenar afirmativamente com a cabeça, continuas: "As lentes são tantos réis!"

Se, mesmo então, o silêncio anuente persistir, não hesitas e avanças: "Cada lente, claro!"

Sempre sondando subtilmente a reacção da "vítima", vais paulatinamente tecendo a tua teia: "Tantos réis aos quais é preciso juntar, como é evidente, a mão-de-obra, a taxa de importação dos parafusos, o imposto sobre o vidro, o outro imposto sobre o metal, o desconto para o Sindicato dos Mineiros e para a Sociedade Protectora das Tartarugas e por aí adiante até detectares os sinais inequívocos de rejeição que fatalmente hão-de surgir".

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Ignoro se o tal Sócrates é judeu---pelo menos em sentido literal, estrito.

Mas, se não é, à face daquela injustíssima mas perfeitamente instalada ideia de "judeu" [com expressão semântica própria consagrada e tudo] parece.

A táctica que o ocupante [de que ele é administrador-de-posto---e "o outro" régulo e soba confirmado] parece decalcadinha ponto-por-ponto da desses astutíssimos personagens de almanaque onde o anti-semitismo e a discriminação se convertiam mais ou menos reconfortantemente em simpática e bonómica anedota familiar.

Foi ele, ocupante, sempre pé-ante-pé vendo até onde é que podia ir com segurança na estratégia-da-aranha de depenar o país e deixá-lo exangue ["la chegaremos! Lá Chegaremos! Deixem-nos trabalhar!...] e só quando percebeu que podia... ir longe, desfechou o golpe fatal, o "coup de grâce" orçamental---cujo momento, ao que tudo parece indicar, finalmente chegou.

...E tão hábil se revelou a fazê-lo que os "fregueses" [que somos todos nós, portugueses] nem tiveram, como o "almanáquico" cliente do velho Shylock oculista, artes de reclamar com o aparecimento da "conta" final: quando deu por si, já estava comprador e não havia volta a dar à coisa.

Isto de a política ter sido levada; de ela ter descido ao nível de um miserável esquema de venda de colchões a casais de reformados é uma fatalidade nacional---é, como diria um inglês, "it's the story of our lives"...

Não estranha, não surpreende, já nem incomoda: pelo contrário, identifica.

Tranquiliza.

Um historiador, Jacinto Baptista, descreve o 5 de Outubro como [cito completamente de cor] 'uma coisa de tiros na Rotunda e burgueses pachorentos, em mangas de camisa, a sachar paulatinamente pés de couve em Campolide'...

Confirmei-o, hoje mesmo, de manhã: saindo com as minhas cadelas para o passeio diário, abordou-me excitadíssima uma vaga vizinha, gesticulante e rumorosa, que, acercando-se de mim pelas costas, me desfecha bruscamente à queima-roupa: "Estou felicíssima! Ganhou o António!!!"

Ainda atordoado, tento: "O Oliveira? O de Santa Comba? Esse ganha sempre! Mesmo depois de morto nunca deixou de ganhar. De voltar e de ganhar. É o nosso espectro hamletiano nacional, o Benfica da nossa miséria mental e política colectiva!"

"Qual Oliveira! O António "da" TVI! Grande programa! O quê?? Não sabia?! Você não vê?! Mas... em que mundo vive você, afinal??!!"

Se calhar, no outro, D. Teresa!!

Se calhar, morri já e não dei por isso.

Se calhar, isto onde me encontro já não é Portugal, o meu Portugal, o Portugal real, o que, entre Salazares e D. Joões Terceiros a dar com um pau, ainda teve artes e energia para parir meia-dúzia de Eças, uns O'Neis sortidos e alguns Saramagos pelo meio; se calhar, já não é o Portugal do "nós", da desesperada inteligência mas o Purgatório ou o Inferno---o Purgatório ou o Inferno "themselves"!---e V. Excia. um diabinho disfarçado, um enviado de Lúcifer, divindade natural d' "os Eles" todos desta Terra, que vem cumprir o programa diário de tortura a que terei sido condenado por me obstinar em tentar teimosamente resistir ao que parece ser um verdadeiro destino, um autêntico desígnio colectivo nacional: a estupidificação, a mumificação mental em vida, a decadência como projectom ou modo-de-vida e táctica para atingir, um dia, esse inspirado estado de cataléptica graça intelectual, mental, crítica, colectiva que é o "fim", como luminosamente anteviu e titulou António Patrício há quase dois séculos, num apólogo dramático eloquente, hoje piedosamente ["et pour cause"] quase esquecido...

Portugal é hoje, com efeito, um narcótico poderoso, um veneno que embriaga e leva fatalmente à loucura; uma gigantesca coisa de ligar-e-desligar cuja utilidade muito poucos verdadeiramente conhecem já e cujo mecanismo interior dá ideia de se ter avariado de vez ou de estar prestes a fazê-lo; um objecto familiar, caro, no fundo, inexplicável e à sua maneira, por vezes, tragicamente divertido que alguém se prepara para declarar inderdito---e encerrar de vez por falta de utilidade e de viabilidade cívica e mental...

[Na imagem: Eça de Queiroz, extraído com a devida vénia de bnportugal-dot-pt]

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