quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

"Pirataria: Comercial ou... Cultural?..."


Singular momento aquele que o comércio de "produtos culturais gravados" escolheu para intensificar a campanha "anti-pirataria"!...

A França sarkozyana já há há muito o havia começado a fazer, de direito e de facto, com recurso àquela curiosíssima medida de suspender o acesso à Net aos prevaricadores.

Digo que é singular que o tenha feito [e que entre nós se pretenda imitá-lo] por vários motivos.

Começo por referir um que me parece particularmente relevante---significativo: a semelhança existente entre a medida em causa e uma recente proposta "europeia" de origem alemã visando condicionar o direito de voto aos países orçamentalmente incumpridores.

Disse-se, então---muito acertamentemente, aliás, a meu ver e julgo que no de qualquer pessoa minimamente bem formada e mesmo apenas medianamente esclarecida!---que se tratava de uma violação grave da democracia desde logo na medida em que estava em causa, com a medida referida, atingir as sociedades europeias em geral onde "dói mais", a saber nos seus direitos políticos básicos: básicos, de resto, em qualquer estrutura ou sistema minimamente democráticos.

Eu diria mesmo que a medida do governo francês representa, em última mas real instância, o reconhecimento implícito mas também claro da natureza decorrencial e meramente ancilar, insubstantivamente instrumental, da Política na Economocria e especificamente na i/lógica economocrata.

É, pensei e disse, a admissão do papel de "ancila economiae" que lhe foi distribuído no contexto de um dos maiores embustes políticos e civilizacionais [e atentados à democracia e ao espírito democrático] de que há memória na História moderna e Contemporânea: esta "Europa" desenhada a régua e esquadro, à maneira [e, ao que tudo indica, com consequências, sob muitos aspectos, semelhantes] das antigas 'manobras' imperiais de "engenharia nacional" típica dos colonialismos clássicos que, como se sabe, faziam e desfaziam [volto a dizer: com os invariavelmente trágicos efeitos que são hoje públicos] nações "à la carte" conforme as suas conveniências e o poder dos seus canhões e exércitos...
O modelo de «state building» ou mais exactamente de «nation engineeering» "civilizou-se" exteriormente e, do ponto de vista do projecto ou projectos de reordenamento continental, neste caso, europeu, a férrea e opaca "Berlim" de 84-85 mudou-se, hoje, para uma bem mais «simpática» ou mais... «porreira» "Lisboa" 2010 mas a i/lógica de imposição e instrumentalização política e nacional, de autoritarismo e funcionalização constitucional, é exactamente a mesma assim como a falta de dignidade democrática, repito, de todo o processo de construção e desconstrução de países, culturas e dependências ou independências que estiveram na "Berlim" original.

A tal proposta que visava retirar direitos políticos essenciais inscreve-se, pois, de forma natural, nesta i/lógica centralista e feroz---e implacavelmente!---economicista desenhada pelas grandes potências multinacionais e levada à prática pelos respectivos serventuários políticos de todo o tipo.

Ora, a minha tese é que, numa época em que, como dizia um amigo meu, "os lápis são todos virtuais e o nosso cérebro é cada vez mais electrónico" o caminho do "horizonte gnoseotópico" tantas vezes [com a ilusória designação de «sociedade do conhecimento» reclamado pelo Ocidente liberal e neo-liberal] para que alegadamente se caminha hoje-em-dia, passa, de forma irregressível e absolutamente verticial, pelo acesso [e pela cultura de acesso!] aos universos virtuais, os potenciais grandes difusores de Inteligência e de Cultura num futuro cada vez mais próximo.

Em meu entender, o acesso ao mundo virtual está para o Conhecimento e, por isso, "en fin de partie" para a própria Democracia, como esta enquanto dispositivo institucional [e mental!] está para uma verdadeira Europa que está, por seu turno, infelizmente bem longe de existir e que não é seguramente esta, a das aspas...

Atingir as pessoas ali, nos mecanismos conducentes àquela cultura de acesso aos universos virtuais onde se situam as portas, não da "Percepção" como titulava Huxley numa obra famosa, mas da Informação e da Inteligência equivale, no fundo, pois, a atingir em cheio uma população, em larga medida, iletrada [e/ou funcionalmente iletrada] e a comprometer ainda mais o respectivo acesso às formas realmente determinantes dessa mesma Inteligência e, por conseguinte, do próprio Futuro.

Tal como vem insistentemente posta a questão da pirataria é uma questão legimamente comercial, nunca ou em pequeníssima escala a vi tratada como o problema cultural e até civilizacional que é ou tem de ser.

Isto é: impõe-se, a meu ver, como algo de histórica e, insisto, civilizacionalmente essencial que se distinga muito bem o que é comércio paralelo e, por conseguinte, atentado ao legal [que eu não discuto porque não sou comerciante e o problema ou problemas dos comerciantes, por muito que reconheça naturalmente a sua legitimidade objectiva e formal não são meus] e aquilo que é, sobretudo numa altura em que os objectos da cultura, por virtude da crise, tendem a tornar-se para muitos ainda mais proibitivos, um meio ideal de fazer circular esses mesmos objectos na sociedade, pondo-se [tendo obrigatoriamente em termos éticos, políticos, civilizacionais, de se pôr!] em toda esta questão, o problema realmente central da responsabilidade social da propriedade, intelectual e comercial como noutros, se porá [e põe!] o das outras formas fisicamente mais concretas de propriedade.

"Soa bem" falar em "pirataria" e por aí adiante e diabolizá-la de forma indiscriminada mas é essencial que se percebam as decorrências políticas e, insisto, civilizacionais do problema--para o que é vital que não sejam misturados alhos e bugalhos que o mesmo é dizer intereses comerciais e, no limite, a Democracia e a própria viabilidade realmente democrática do Desenvolvimento e do Progresso.

[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de www1-dot-folha-dot-uol-dot-com-dot-br]

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