Num texto de jornal que cito noutro lugar deste "Diário" [cf. "D.N." de 09.02.10, "Papa afirma que inferno existe e pede aos fiéis jejum de palavras"] faço referência a uma notícia envolvendo a defesa da realidade física do Inferno feita, em pleno século XXI pelo actual Papa, supostamente um abalizado pensador e reputado teólogo cristão.
Sobre o primeiro destes aspectos, pronuncio-me noutro lugar do "Quisto": não tenciono, por isso, regressar, para já, aqui, a ele.
Sobre o segundo e ao segundo, sim.
Teimou ele em acudir-me recorrentemente à memória desde que dele tive conhecimento e não resisto a trazê-lo agora aqui ao ler, de Ana Vicente ["membro", diz o jornal, "do movimento Internacional Nós Somos Igreja e investigadora"] uma referência à praga da pedofilia protagonizada por eclesiásticos e, pelos vistos, segundo esta investigadora, também por eclesiásticas num inquietante quadro fenomenológico ou fenoménico de incidência sexual desviante que não pode, a meu ver, dissociar-se do tipo de concepção profundamente disfuncional da própria igreja em matéria de sexulidade e de que deste, trágico embora, caso da pedofilia está longe de constituir sintoma isolado.
Mas, dizia, eu, sucede que a primeira daquelas referências que citei me acorreu, desta última vez, irresistivelmente ao espírito ao ler o que Ana Vicente escreve sobre uma amiga sua, norte-americana, também ela abusada em criança, com sete anos de idade, pelo prior, suponho que da sua freguesia ou, pelo menos, de uma freguesia próxima, ignoro se em Portugal, se nos Estados Unidos onde, como se sabe [vai-se, aos poucos, descobrindo...] o problema atingiu, aliás, tambem as inquietantes proporções de autêntica epidemia que teve noutros lugares.
Ocorreu-me a referência àquele "jejum" [singular palavra, insidiosamente censória e hipocritamente repressora e silenciadora, esta, no contexto!] "de palavras" pedido pelo Papa aos fiéis ao ler que à vítima dos abusos narrados por Ana Vicente foi prometida assistência terapêutica especializada pela própria igreja [onde, refere ainda a autora, quando a amiga desta pôde afastar-se do lugar dos abusos, outras crianças permaneceram "num estado de extrema vulnerabilidade"] no sentido de ajudá-la a lidar com as sequelas traumáticas da violência a que fora [assim, reconhecidamente] sujeita se [imagine-se!] aceitasse "asssinar um documento a afirmar que jamais falaria do caso" [!]
É espantoso [e arrepia!] que tenha sido possível a uma instituição, apesar de tudo, de referência moral no mundo em que vivemos [e que jura, aliás, a pés juntos ter feito e continuar a fazer tudo o que estava ao seu alcance para lidar frontalmente com esta verdadeira calamidade endémica dos abusos sexuais praticados por padres e outros membros da instituição]; é espantoso, dizia, que tenha sido possível à igreja, a alguém em nome dela e por ela, fazer uma exigência desta natureza que a torna obviamente cúmplice directa dos abusos praticados e avançar com uma condição deste jaez quando a sua óbvia [e gritante!] única obrigação era [i] responsabilizar directamente o abusador, não pactuando, fosse como fosse, com as práticas sexuais desviantes a que comprovadamente se entregara e [ii] pôr-se decorrentemente à incondicional disposição da vítima ou vítimas [Ana Vicente sugere, como disse, que o caso não ficou por aqui o que torna tudo isto de uma gravidade ainda maior] no sentido de ressarci-las por todos os meios previstos na lei como na consciência e no sentido humanista e moral dos seus membros da imperdoável agressão sofrida.
Escandaliza-me, confesso, que seja possível à igreja vir dizer não apenas que, enquanto instituição, não considera haver o que quer que seja no seu património educacional e formativo; na sua identidade cosmovisional e especificamente pedagógica, prática, formadora e multiplicadora de identidade e consubstanciadora activa de uma praxis global própria para propiciar a emergência de situações que são, porém, recorrentes e se estendem demonstravelmente por todo e qualquer o lugar onde haja padres como que cumulativamente se permita afirmar, com idêntica ousadia que nunca tentou ocultar essas situações ou deixou de lutar contra elas onde casuisticamente surgiram.
Meter a cabeça na areia, como tantas vezes vimos fazer no passado [e testemunha a própria autora do segundo dos artigos que cito] já seria suficientemente mau para uma instituição que se pretende tutela moral de todo um universo cultu[r]al e civilizacional; fugir para a frente e mentir abertamente parece-me, então, não há violta a dar a isto, repugnante, objectivamente criminoso e absolutamente imperdoável.
[Imagem extraída, com a devida vénia, de ca70-dot-blogspot-dot-com]
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