Na esteira do que o meu amigo, o dramaturgo Armando Nascimento Rosa, propõe relativamente a Inês de Castro [i.e. a hipótese de existência de uma espécie de "complexo" de tipo freudiano] ocorreu-me que talvez não fosse completamente destituído de pertinência de, ao menos como tese, admitir a possibilidade da existência do que poderia talvez designar-se por "complexo de Salomé", envolvendo algo que, a meu ver, se prende indissoluvelmente com uma ambiguidade fundadora da própria consciência humana.
Salomé, tal como eu a vejo, é a representação arquetipal das contradições ocorridas na consciência/inconsciência feminina com a emergência do desejo sexual, recebido de forma contraditória como algo poderosamente afirmativo mas também inquietantemente novo, subversor da tranquilidade da "inocência" e, de algum modo, "proibido", algo que já está na imagem de Eva tal como ela chega aos nossos dias e à nossa cultura judaico-cristã.
Tal como no-la apresenta Oscar Wilde, Salomé é uma mulher possuída pelo desejo sexual nascente, um desejo sexual topicamente contraditório que nela existe na forma de sujeito/objecto de uma pressão repressiva [a recusa de Jokanaan a satisfazê-lo onde ela vê---ou onde nós próprios podemos ver---a marca reobjectivada da proibição e da violação do "tabu" que é naturalmente a inocência, essa era préfálica ou "idade de ouro dos sentidos"---Salomé é, claramente um motivo iniciático] que se torna secundariamente auto-repressiva e neurótica, histérica [quando o écrã simbológico que é Jokanaan reprojecta sobre ela a censura];
É em resultado deste processo de ruptura identitária funcional [de re-nascimento que é o despertar da sexualidade] que vai do interior para o exterior da consciência e regressa ao interior que se verifica [e se explica] a ressublimação secundária do desejo que toma, a partir daí, a forma [ou assume o estatuto secundário---neurotiforme] de "virtude".
Na realidade o motivo de Salomé lida mitomórfica e/ou ficcionalmente, de forma, a meu ver, tópica, com a dupla pulsão envolvendo a mergência do desejo e o próprio desejo [o devorismo sexual que comanda a integração do outro no eu e do próprio eu no outro---fenomenicidade envolvendo um quadro de antropofagia onto-sensorial de que Platão no mito do hermafrodita nos fornece uma outra imagem, uma imagem, no fundo, especular desta] e de forma contraditória, identitariamente dialectiforme a vontade de destruir o outro e sobre ele projectar a Culpa própria como forma de marcar a percepção da necessidade de auto-repressão.
Na verdade, a minha hipótese é que toda a cultura envolve a necessidade de lidar subconsciente ou inconscientemente com formas nucleares determinantes de represão e auto-repressão, sendo, no limite, possível e legítimo supor que toda a cultura é repressão e é também a forma ou formas de com ela lidarem os indivíduos e as sociedades, forma essa que passa a fazer parte integrante da sua identidade individual e colectiva e por conseguinte do mitário específico de ambas.
Toda a cultura é, pois, o seu conteúdo mas também a sua forma e é nessa dupla composição que ela [como dizer?] entra em si mesma dando, então, finalmente, lugar, à Cultura ou abrindo espaço na História para esta.
[Na imagem: Oscar Wilde na figura de Salomé]
Sem comentários:
Enviar um comentário