quarta-feira, 14 de julho de 2010

"Um «Complexo de Salomé»?"


"Se por Filosofia se entender a teoria geral do mundo como síntese das ciências, ou a fundamentação crítica da possibilidade do próprio saber, a saudade é um acontecimento individual que se submerge apagadamente na interpretação geral da vidas psicológica; porém, se se entender que para além do Mundo que nos é dado, do qual somos espectadores, há o Mundo das qualidades e das significações, do qual somos criadores pela Arte, pela Ética e pela Metafísica, e que a Filosofia é fundamentalmente interpretação qualificativa, então a saudade pode ser elemento capital de uma interpretação metafísica da existência, por implicar uma tomada de posição perante o mundo que afecta a totalidade da existência vivida e a viver".

Joaquim Carvalho citado por Carlos Branco in "Situação Actual do Pensamento Filosófico Português e Outros Ensaios", ed. Ática, col. Ensaios, Lisboa, Junho de 1960.

Parto desta citação de Joaquim Carvalho para situar a minha própria ideia ou 'tese' ["hipótese tética"] pessoal envolvendo aquilo que o meu Amigo Armando N. Rosa designa pelo "complexo de Inês" e eu próprio, trabalhando e desenvolvendo ulteriormente a ideia, me permito chamar "tanatopia" ou "pensar tanatópico" nacional.

Neste caso, não será tanto de uma "interpretação" propriamente "metafísica" mas de uma outra natureza, de cariz mais próxima e mais... 'solidamente' sergiano, situada num plano eminentemente histórico-sociológico e centrada na recusa à acção e na consequente «triunfalização neurotiforme» ou "sacre" da "ataxia histórica e política" como modo estável e, sobretudo, tópico de lidar colectivamente [de lidar cultu(r)almente] com a impotência e/ou a irrelevância geo-política resultante do refluxo do período de "essor" nacional representado pelas Descobertas e sentida de forma mais ou menos 'abstracta' ["abstraccional" ou "abstracccionada"] pelos vários extractos ou camadas sociais e sociológicos da população, ao longo da respectiva História.

Em tese, este "projecto" de retriunfalização simbológica da Morte [ou "convexionação secundária redentora" da "queda"] enquanto representação arquetipal "perfeita" da a-patia, isto é, da total passividade perante todas as formas de acção [histórica, política, etc.] encontra expressão ideal na ideia, no 'motivo', da coroação simbológica do cadáver de Inês---uma Inês purificada pela passagem 'iniciática' através do portal da própria Morte [vista assim, esta, como um pressuposto necessário de redenção e de "Vida" na forma da imagem ou da representação especular meta-historicizada delsta] das múltiplas taras ou máculas inerentes à sua condição original de estrangeira e de imagem erótica ["madalénica"?] sendo que é a este quadro representacional estável [sob inúmeros aspectos decalcado do próprio pensar crístico pré-existente, já genericamente enraizado no consciente como no inconsciente colectivos nacionais] que eu chamo a "Tanatopia" ou "projecto" [e "pensar"---projecto de pensar] tanatópicos nacionais.

Mas é também desta perspectiva informante e formante abstraccional [abstraccionada da realidade histórica mas já transposta para uma outra dimensão ou para outro estado---gasosos, um e outra---do 'cognoscer' e do representar] que eu admito que se possa falar, por outro lado, de um "complexo de Salomé", cultu[r]almente muito menos estabilizado entre nós por possíveis razões históricas e até especificamente religiosas [Salomé é claramente, do ponto de vista judaico-cristão que fornece a perspectiva ao 'olhar tópico' nacional, uma personagem "perigosa", a evitar...].

Um "complexo", envolvendo também ele, o desejo ["wish" mas, de igual modo, "desire"] de destruir o que não se pode ter ou dominar [o próprio poder] integrando-o simbologicamente em nós, devorando-o mais ou menos simbólica ou ritualmente [a cabeça de Iokanahan como expressão totémica, fetichizada, de um "canibalismo simbológico" ou fixação necrólatra secundáría onde a impotência feminina, representada na impossibilidade de seduzir, de cumprir o desejo, desempenha um papel verdadeiramente 'angular', 'verticial', mesmo].

Qualquer dos "complexos" em causa [no fundo, trata-se do mesmo reencenado] tem por base a impotência e o desejo secundarizado da Morte resultante da inevitabilidade da presença e da realidade desta assim como da necessidade de encontrar formas, chamemos-lhes: "positivadas" ou "repositivadas", secundariamente valoradas, de lidar com o Fado, com o Destino, com o próprio Inevitável.

Salomé deseja; não conseguindo, todavia, dar expressão concreta ao desejo, mata e "devora" simbologicamente o objecto do desejo, encontrando-se com o respectivo objecto [e aqui trata-se mesmo de um objecto, não de um verdadeiro sujeito---quando muito de um "objeito" ou de um "subjecto"] na Morte, glorificando, desse modo, a própria impossibilidade na forma neurótica de uma Virtude a que se está, deste modo, "condenado" pela própria impotência e pela impotência própria.

A "Virtude" surge, neste quadro concepcional ou conceptivo, como uma secundarização forçada do desejo reprimido---sendo que desejo reprimido é também aquilo que claramente vamos encontrar, em alguma medida re-historicizado, no "complexo" de Inês.

Mas esta é também, não o esqueçamos, o símbolo erótico envolvendo a afirmação ousada mas inquietante do corpo e a des-ordem introduzida [na família, na "Pátria", na envolvência subjecccional... tribal] pela emergência do desejo que deve, por isso, ser no limite fatalmente punido.

Há na ideia de Virtude assim entendida---e representada---o cumprimento de uma pulsão auto-repressional socializadora ou "sociante", em geral [todas as formas de sociação assentam inevitavelmente na integração da morte---da dos instintos descentrantes, das pulsões egóticas centrífugas, desde logo] mas também, como é evidente, o de linhas gerais de um pensamento "pedagógico" crístico com larga expressão antropológica, onde aquela informação está, de resto, presente [a morte e a ressurreição de Cristo podem ser, em tese, entendidas como constituindo uma representação encriptada daquele "antroponema" ou "sociema" atrás referido]; mas há, também [no caso da "Salomé" de Wilde isso parece-me particularmente evidente!] uma espécie de secundaricização/neurotização do desejo---do mal camuflado, para-prometaico, desejo de rebelião contra a própria pressão repressional configurado, exactamente na fetichização da sensualidade aí apresentada---e representada.

Salomé é, por definição, uma figura demasiado trágica [ela representa, nunca a ultrapassando e nunca a superando redencionalmente, a expressão final da impossiibilidade do desejo ou auto/castração erótica simbológica] a meu ver, para se compaginar completamente com o arco témico básico do pensar judaico-cristão, naturalmente vocacionado, como é sabido, para encontrar sempre, no limite, "soluções" témicas [e totémicas!] para a Morte e/ou para o Nada.

Também por isso, admito-o eu igualmente como tese, estava condenada a deixar-se vencer no imaginário [e especificamente no mitário] colectivo nacional por uma Inês que venceu, essa, a Morte e até precisou essencialmente dela para ganhar o lugar que Garcia de Resende nas "Trovas" [comparando-a subtilmente o próprio Cristo de cuja morte Pilatos---nas "Trovas" o rei pai---lava classicamente as mãos] e Afonso Lopes Vieira em "A Paixão de Pedro o Cru" ["sepultando-a" ao lado da Rainha Santa] de forma expressa lhe reservam.

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