quarta-feira, 21 de julho de 2010

"«Salomé», soneto de Mário de Sá Carneiro, esboço de abordagem crítica e analítica"


Comecemos pelo texto propriamente dito do soneto de Sá Carneiro, dado à estampa em 1913, no nº 3 do "Orpheu":


Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo.

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio... Alabastro!... A minh' Alma parou...
E o seu corpo resvala a projectar estátuas...

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me...

Mordoura-se, a chorar---há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo...

Mário de Sá-Carneiro


Todo o soneto vai gradualmente sugerindo uma espécie de movimento ou de curva; de progressiva [ou pendular?] infixidez sugerindo um percurso em direcção ao êxtase , por sua vez, denotador da culminância do próprio acto sexual de que ele pode, em meu entender, ser subtilmente visto como uma poetização/intelectualização figurada: registem-se, desde logo, expressões [e ideias ou sugestões] violentamente sensoriais como "o espasmo", "endoideceu", "upou-se em cor" [desmaterializou-se/liquefez-se/transmutou-se em pura impressão sensível].

Há claramente em todas estas expressões e nas sugestões por elas veiculadas uma como que "subjectivização" consistente mas também, noutro plano, de algum modo, mais concreto, uma demonstrável "des-solidificação" tendencial dos objectos, i.e. uma perda consistente da respectiva forma e/ou em geral dos atributos físicos, materiais, objectivos ou imediatamente objectuais desses mesmos objectos---a "luz" [v. 1] convertendo-se em "medo" [ibid.] a "carne" [v. 3] em "álcool" [ibid.] a "lua" [v. 2] em "alma" [ibid.]---sugerindo a supressão momentânea da Razão substituída pela emergência vibrante, pulsátil, da acção muito poderosa dos sentidos ou, [lá está!] paralelamente, a transformação do corpo nos respectivos atributos sensoriais ou, se assim quisermos, ainda de outro modo, dizer: a como que metamorfose de todos os corpos [de todo o corpo?] enquanto tal em algo de "significadamente insólido" [O climax sexual? O sémen? Ideia potenciada, neste último caso, em meu entender, pela sugestão visual do brancura lunar---não por acaso, como mais adiante veremos, "manchada", "maculada" pela ideia sempre latente, obsessiva, de Morte...---mas, muito em especial, da do "alabastro" (v.7)]
Muito poderosa esta sugestão de "liquidificação": cf. "álcool" [remetendo, por seu turno, hipoteticamente para a «embriaguez»: o próprio climax sexual?], "alastra-se" "resvala", "golfa-me".

[Note-se como o soneto, desde a primeira quadra, deixa bem clara a indefinição ou mesmo a completa fusão não apenas dos seres em geral entre si, como vimos imediatamente atrás, mas também das fronteiras entre o eu e o real exterior: com efeito, primeiro o poema "sai desse mesmo eu para o exterior" através do jogo que o autor estabelece com a "insónia" e a "sua cor" ou a sua "coisificação/cromatização": "insónia" em si mesma um conceito, uma abstracção e, por conseguinte, algo de estruturalmente insubstantivo e abstracto ganhando cor no espaço, ao ficar ou ao projectar-se concretizada no espaço, ficando "roxa".

Está aqui, em meu entender, muito claramente expressa a vontade de conhecer ou o projecto pessoal de... "cognicionar", i.e., de achar um lugar para o eu no conhecimento das coisas e por conseguinte no contexcto global e orgânico delas, através da sensorialização ou o que poderia talvez designar-se por "imediatização experienciante" das abstracções enquanto taldo.
Se, todavia, o soneto começa por expandir-se para o exterior do modo que acabámos de ver, a verdade é que completando um ciclo no quarto verso, ele "regressa ao interior de si próprio" como fica bem claro na ideia de "a carne" convertida em "álcool" (sugestão de "embriaguez" ou de "arrebatamento" e "prazer" "se alastrar" para o eu num "espasmo de segredo": "secreto", "proibido"?]

A própria "infixidez" e "descontinuicidade ontológicas" como tal, claramente expressas ao longo do poema através de transposições/rupturas sinestesiais ou para-sinestesializadas frequentes ["insónia roxa", "carne=álcool", "aroma > cor", "luz" virgulada---i.e. espasmódica? Ritmicamente descontinuada e imediatamente a seguir retomada?] opera ou pode operar como uma espécie de sugestão fortemente subjectivizada e não menos poderosamente intelectualizada do espasmo---espasmo físicom, erótico mas também "espasmo ôntico" envolvendo o compromisso dramático de todo o ser do próprio eu poético"---onde se fundem o prazer e a dúvida, a inquietação, o questionamento, a aguda posta-em-causa do mesmo [cf. o "medo" de que fala o primeiro verso, o "frio" de que fala o sétimo] numa espécie de linha discursiva aparentemente estabilizada que vai, todavia, no verso 6 sofrer uma viragem radical ou brusca inflexão descencional ["upou-se em cor" e "quebrou"] a partir da qual se inicia a "segunda parte" do soneto.

Nesta quanto era antes experiência ou experienciação sensorial converte-se, por sua vez, em problematização e questionamento.

Consideremos, por exemplo, a expressão "projectar estátuas": através desta vemos como o movimento é percebido como uma espécie de decomposição ou intelectualização profundamente esquemática [e também dramática] de si que indica claramente a incapacidade ou ausdência de vontade de senti-lo primária e naturalmente em si, preferindo-se a essa imediada experiência uma "decomposição racionalizante" que sugere o afastamento e a racionalização ou "aporização" onde a impossibilidade de ser dá origem à reflexão e esta surge também, muito... hamletianamente, como impossibilidade de ser e/ou impotência sublimada num discurso autónomo que funciona de algum modo como um objecto em si próprio e mesmo como o verdadeiro objecto de si próprio.

"Alastra-se para mim" associado à reflexivização tópica dos verbos no poema ["virgular-se" (v. 1), "upou-se" (v. 6) "morrer-me" (v. 11), "mordoura-se" (v. 12)] sugere ou indicia, para além da ideia de que tudo ali existe e actua para si e de forma independentemente, a atitude passiva.
De facto o Eu não intervém, não cria, não determina cursos de acção ou de intervenção no real e na respectiva transformação: cada coisa cria o seu próprio movimento e estabelece cursos de actuação autónomos, não decorrentes de uma única vontade que organize [ou organicize] o todo.

A própria referência a Íris, a um "chamar em Íris" [v.9] pode cumulativamente potenciar a sugestão de persistente des-substancialização ou des-materialização constante de todo o poema, indiciando sempre o mesmo registo de tensão entre a sexualidade e a respectiva recusa senão mesmo simbólica [auto] punição se tiveremos em conta a relação que existe, na mitologia de onde provém essa filha de Taumante e de Electra, entre, por um lado, a virgindade desta e, por outro, o rapport estável entre a sua personagem mitológica e o vento mas também com o mundo dos mortos, o Hades.

Atente-se, por exemplo, no modo como algumas expressões do texto podem operar como [para reutilizar aqui uma ideia lacaniana] verdadeiros "nós", "ângulos", "vértices", ou mesmo mais subtil e subjectivamente "verticiações" semiológicas de onde irradiam inúmeras "cintilações sémicas" particularmente fecundas em termos das caleidoscópicas sugestões [ou "sugestionações"] que criam e que difundem por todo o poema.

"Luz morta de luar", por exemplo.

A expressão pode, de facto, a meu ver, ler-se de, pelo menos, duas maneiras perfeitamente distintas ainda que não necessariamente contraditórias: podemos, com efeito, lê-la vendo naquele "morta" um adjectivo [podendo, nesse caso, a frase ser por nós mentalmente reorganizada do modo que se segue: "luz de luar, morta"---e esta seria a abordagem imediatamente "denotativa" ou "denotacional" do fragmento] mas há uma outra hipótese alternativa, incomparavelmente mais... baudelaireana e mais 'simbolista' que seria imaginar [?] que "morta" funcionasse com um carácter muito mais próximo da sua "vocação verbal" original, chamemos-lhe assim, daí resultando que a ideia fosse agora a da luz da lua que tivesse por "excesso de si" morrido sufocada em e por si mesma, como se de um verdadeiro suicídio [sui+cídio] se tratasse---o que naturalmente não apenas revelaria toda a extensão da trágica fatalidade e do absurdo de uma situação ["algo que fornece naturalmente luz morre por fazê-lo] como permitiria perceber de uma forma particularmente aguda e crítica todo o carácter de "paroxística im-possibilidade" de todo o poema: uma luz que morre assassinada por aquilo que está de algum modo "condenada" a produzir, pelos seus próprios... filhos.

O uso 'significado' da personificação ["o aroma endoideceu"] surge nesta [i?] lógica de representação do real como [a] algo que é primariamente impressão sensorial pura: experienciação mais do que razão e [b] qualquer coisa que não se encaixa de forma orgânica num todo 'ontologicamente geométrico' e que manifestamente não admite colocar-se sob as alçada 'organizante' da consciência, antes flui descontínuo em sucessivas anisotropias dotadas de vida e vontade próprias que se esgotam sempre na experiência pura "extática" mas também paroxística, de si.

Sobre esta visão estruturalmente descontínua e desconstrucional da realidade, anote-se ainda o uso extensivo das reticências apontando, primariamente, para as contínuas cesuras que permitem redesenhá-lo na consciência mas também [e até, de algum modo, sobretudo] a dúvida, a hesitação, a incerteza a que um filósofo chamaria possivelmente a "relativismo gnoseológico" ou talvez mesmo "fenomenologismo experiencial" puro.

Curiosa [e, em tese, nada gratuita, do meu ponto de vista] a identificação do ritual sedutório com a ideia de Morte [primeiro terceto].
"Morrer-me": o reconhecimento encriptado [note-se a infidez da própria linguagem em geral conferindo fundamento necessário à neologização intensiva e extensiva do poema] da ligação ambígua [e disfuncional] do eu com o real: a "morte" do eu poético de que fala o primeiro terceto é um suicídio---ou, pelo menos um facto de natureza intrinsecamente endógena ["morte" causada, de um modo ou de outro, por algo que está no próprio sujeito]---ou um verdadeiro "assassinato" cometido por entidade ou entidades vindas do exterior, de Salomé: "ela quer..." ou "timbres, elmos, punhais", o amor visto como uma forma metaforizada de violência e (auto?) agressão?]

Há sempre, muito subtilmente, na relação que [verdadeiramente não?] se estabelece entre o eu poético e Salomé uma espécie de sugestão latente de masoquismo ["arder na boca imperial"] algo que Cesário, por outro exemplo, denota de forma perfeitamente reconhecível em alguns dos seus poemas mais conhecidos] associado directamente à passividade daquele mesmo eu poético para quem "amar é castigar-se" como "produzir luz pode ser morrer exactamente por produzir luz", como é admissível que possa ser o caso da "lua", na primeira quadra.
Muito relevante, do meu ponto de vista pessoal tendo em vista o conteudo referencial do "complexo de Salomé" é a "translação ôntica" que subjaz à relação do Eu poético com a figura feminina: de facto existe uma espécie de "trânsito ôntico permanente" entre ambos, i.e. entre o ser e o ter cuja 'ângulo possibilitante', chamemos-lhe assim, se situa no matiz "ser tido" ou "ser possuído" em lugar de "possuir" e que, a meu ver, remete para a homossexualidade do próprio Poeta, assumindo aqui a forma de indefinição ou mesmo "crise" da respectiva identidade sexual.

Em termos do eu poético o que, na realidade, acontece é que este, no poema, é muito mais tido do que realmente tem abrindo desse modo 'caminho percepcional e representacional' para o tornar-se e, desse modo, para o próprio ser.

Seria, em qualquer caso, de facto, difícil escolher um melhor e mais esclarecedor exemplo da dialéctica entre o desejar e o devir que, em meu entender, substancia na base, na respectiva essência---constituindo mesmo aquilo que, em última análise, o explica---o possível "complexo de Salomé".

Essa infixidez permanente e profundamente des/estruturante entre o eu e a alteridade de onde emerge a "crise ôntica" aqui claramente presente e que por via de regra não se traduz em acção sendo antes uma tentastiva, um projecto, de lidar com a impotência e a impossibilidade de estabelecer modelos organizados de acção a fim de superá-la efectivamente preferindo declaradamente a contemplação e a projecção da própria crise directamente em "experiência" ou "experienciação-em-si"---uma experiência que, neste caso, assume forma verbal marcadamente subversora e mesmo, logo a partir do plano imediatamente textual [ou textuante], abertamente subversiva.


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